Jorge Francisco Martins Trindade Retórica e antirretórica nas farpas queirosianas Universidade do Algarve Faculdade de Ciências Humanas e Sociais 2018 Jorge Francisco Martins Trindade Retórica e antirretórica nas farpas queirosianas Doutoramento em Comunicação, Cultura e Artes Trabalho efetuado sob orientação do Professor Doutor Pedro Ferré e co- orientação da Professora Doutora Fátima Freitas Morna Universidade do Algarve Faculdade de Ciências Humanas e Sociais 2018 Declaração de autoria Declaro ser o autor deste trabalho, que é original e inédito. Autores e trabalhos consultados estão devidamente citados no texto e constam da listagem de referências incluída. __________________________________________ (Jorge Francisco Martins Trindade) Copyright  Jorge Martins Trindade A Universidade do Algarve tem o direito, perpétuo e sem limites geográficos, de arquivar e publicitar este trabalho através de exemplares impressos reproduzidos em papel ou de forma digital, ou por qualquer outro meio conhecido ou que venha a ser inventado, de o divulgar através de repositórios científicos e de admitir a sua cópia e distribuição com objetivos educacionais ou de investigação, não comerciais, desde que seja dado crédito ao autor e editor. Agradecimentos Ao Professor Doutor Pedro Ferré e à Professora Doutora Fátima Freitas Morna, agradeço a disponibilidade com que aceitaram orientar este trabalho e a confiança que depositaram em mim. À Sofia, agradeço tudo. Resumo As Farpas, na sua qualidade de projeto de matriz realista, reclamam um vínculo identitário à verdade e assumem uma forte oposição à retórica – alistando-se, deste modo, num antagonismo histórico entre estas duas entidades, que remonta a Platão mas que se agudiza a partir do século XVI. Na perspetiva de Eça, a retórica é nociva na medida em que distorce a relação de correspondência ideal entre a palavra e o mundo. As Farpas assumem, por isso, a missão de denunciar e retificar diversas manifestações de manipulação da linguagem – isto é, de distorção das condições de perceção da realidade –, nomeadamente aquelas que, provindo de entidades cuja voz tem uma repercussão social acrescida (a política, a religião, a literatura, a imprensa), ilustram de modo especialmente crítico a degradação do espaço público discursivo. Reclamando As Farpas o estatuto de voz emergente da razão e dirigindo-se estas a um auditório virtualmente universal, o seu território de intervenção deveria ser, em princípio, o da argumentação racional e não o da retórica. Mas embora Eça se empenhe em reforçar o aparato lógico dos seus textos, em particular sinalizando essa vertente, isso traduz acima de tudo a adesão a uma ideologia da racionalidade, mais do que uma vinculação ao domínio de uma argumentação lógica em sentido estrito. As farpas queirosianas mobilizam uma série de movimentos argumentativos enquadráveis na categoria perelmaniana dos argumentos quase lógicos, em especial aqueles vocacionados para a identificação e desmontagem de casos de contradição; no entanto, esses dispositivos não só não excluem o recurso a expedientes apontados às instâncias afetivas do leitor, como por vezes se encontram eles próprios investidos de um estatuto ambíguo. A abordagem do registo humorístico, um aspeto incontornável do perfil comunicacional destes textos, consolida a tese de que o discurso d’As Farpas tende a explorar recursos alternativos à argumentação e a instalar-se em zonas tingidas de uma notória ambiguidade. Palavras-chave: Retórica; Argumentação; Imprensa Portuguesa do Século XIX; Realismo; Humor. Abstract Being a project with a realistic background, As Farpas claim for an identity connection to truth and assume a strong opposition to rhetoric – thus being part of an historic antagonism between these two entities, which dates back to Plato but is exacerbated from the 16th century on. In Eça’s perspective, rhetoric is harmful as it distorts the relation of ideal correspondence between the word and the world. Consequently, As Farpas take on the mission of denouncing and rectifying various demonstrations of language manipulation – i.e., of distortion of the conditions in which reality is perceived –, namely those which, coming from entities whose voice has a higher social repercussion (politics, religion, literature, press), illustrate in a particularly critical way the discursive public space’s degradation. Considering themselves the emergent voice of reason and addressing to a virtually universal audience, As Farpas should find their intervention territory, in principle, on rational argumentation, and not on rhetoric. But though Eça strives to reinforce the logical apparatus of his texts, mostly by underlining that aspect, such behavior reflects, above all, the adherence to an ideology of rationality, more than a connection to the domain of a logical argumentation in a strict sense. The farpas of Eça de Queirós combine a series of argumentative movements which can be gathered in the perelmanian category of the quasi- logical arguments, in particular the ones aimed to identify and deconstruct contradiction cases; however, not only those devices do not foreclose the use of mechanisms pointed at the affective side of the reader, but also they are sometimes given an ambiguous status. The analysis of the humorous imprint, an essential aspect of the communication profile of these texts, reinforces the thesis according to which the discourse of As Farpas tends to explore resources that are alternative to argumentation and to deploy itself in places defined by an obvious ambiguity. Keywords: Rhetoric; Argumentation; 19th Century Portuguese Press; Realism; Humor. Índice Lista de abreviaturas 0xv 0. Introdução 001 1. Retórica, verdade e realismo 013 1.1. Retórica e verdade: tensões históricas 015 1.2. Realismo, naturalismo e retórica 026 1.2.1. Realismo: uma arte por vir 031 1.2.2. Realismo e verdade 036 1.2.2.1. Verdade e mimese 040 1.2.2.2. Verdade e ciência 043 1.2.2.3. Verdade e progresso 045 2. Máscaras retóricas do mundo: enigmas e decifrações 053 2.1. As faces da retórica 055 2.2. A linguagem como lugar crítico 064 2.2.1. Realidade e encenação discursiva 067 2.2.2. A decadência do espaço público discursivo 074 2.2.2.1. O discurso da política 077 2.2.2.2. O discurso da religião 087 2.2.2.3. O discurso da literatura 102 2.2.2.4. O discurso da imprensa 112 3. Lógica, bom senso e sensibilidade: trânsitos retóricos 125 3.1. Uma questão de lógica e bom senso 127 3.2. Retórica, argumentação, lógica 132 3.3. Sob o signo da contradição 140 3.3.1. Contradição e incompatibilidade 144 3.3.1.1. Ad hominem e racionalidade 148 3.3.2. A justiça como princípio e como regra 155 3.3.3. A lógica do absurdo 158 3.4. Racionalidade efetiva ou aparente? 163 3.5. Dividir, enumerar: do logos ao pathos 168 3.5.1. Uma retórica da ênfase 175 3.6. A presença perelmaniana: confluências históricas 182 3.7. Espaço afetivo e adesão 189 3.8. O paradoxo da objetividade 196 3.9. Da importância do pormenor 208 3.9.1. Do sintoma ao sistema 214 4. Humor, distorção e realismo: ambiguidades retóricas 219 4.1. Humor: uma geografia instável 221 4.2. De que se ri o leitor? A realidade como caricatura de si própria 225 4.2.1. Verdade, caricatura e representação 228 4.3. Humor e agressão 235 4.4. A teoria do humor como manifestação de superioridade 242 4.5. Humor e incongruência 249 4.6. Figurações do absurdo: a construção do cómico n’As Farpas 253 4.6.1. A «estranha lógica» do mundo português 255 4.6.2. O princípio antitético como operador humorístico 263 4.6.2.1. A antítese n’As Farpas: tensão, fratura, transporte 266 4.6.2.2. Coordenadas de um percurso humorístico de deceção 272 4.7. Interseções retóricas do humor queirosiano n’As Farpas 283 4.7.1. Humor, retórica: trânsitos e ambiguidades 287 5. Considerações finais 295 Bibliografia 303 Abreviaturas dos títulos das obras de Eça de Queirós citadas neste trabalho AOD Almanaques e Outros Dispersos CA O Conde de Abranhos Cap A Capital! CFM A Correspondência de Fradique Mendes (Memórias e Notas) CIFM Cartas Inéditas de Fradique Mendes e Mais Páginas Esquecidas Cnt Contos I Cor Correspondência CP Cartas Públicas CPA O Crime do Padre Amaro CS A Cidade e as Serras DE Da Colaboração no «Distrito de Évora» (1867) E O Egito e Mais Notas de Viagem F As Farpas ICR A Ilustre Casa de Ramires M Os Maias Man O Mandarim MES O Mistério da Estrada de Sintra PB O Primo Basílio R A Relíquia TI Textos de Imprensa TRF A Tragédia da Rua das Flores UCA Uma Campanha Alegre 0. Introdução 3 Na origem remota deste trabalho esteve o cruzamento mais ou menos circunstancial de duas leituras: a de Uma Campanha Alegre, a compilação, amplamente revista e editada, dos artigos que Eça de Queirós publica n’As Farpas entre maio (ou junho) de 1871 e outubro de 1872, e a de O Império Retórico, de Chaïm Perelman, uma versão bastante sintetizada do seu Tratado de Argumentação, este último escrito em parceria com Lucie Olbrechts-Tyteca. Não sei ao certo a data precisa desse cruzamento; creio que não cometerei um erro descomunal se o situar há cerca de década e meia. No que diz respeito à primeira daquelas obras, tratou-se, em rigor, de uma releitura, e não me seria possível, se tal me fosse pedido, determinar o número de ordem desse específico regresso aos textos de Uma Campanha Alegre, uma vez que esta tem sido seguramente uma das minhas leituras mais revisitadas ao longo dos últimos trinta anos. Mas os livros estabelecem entre si teias de relações por vezes inesperadas. Numa dessas leituras, aquela a que acima me refiro, haveriam de se revelar alguns aspetos textuais que até esse momento tinham permanecido na sombra, dessa vez iluminados pelas incidências teóricas da obra de Chaïm Perelman. Aquilo que primeiro me despertou a atenção foi o facto de me parecer possível recortar dos textos de Eça um catálogo exaustivo de exemplos suscetíveis de ilustrar as tipologias propostas por Perelman. O que até então me seduzira nas farpas queirosianas fora sobretudo a verve humorística de que Eça reveste o seu retrato implacável do país. Que essa estratégia produziria decerto um impacto tão incisivo como programado nos seus leitores era uma constatação da ordem da evidência intuitiva; Perelman, contudo, como bom herdeiro da tradição aristotélica, distinguia categorias, classificava procedimentos, mapeava o vasto território da argumentação, e todo esse trabalho de sistematização ia informando decisivamente uma renovada leitura da Campanha: começavam a definir-se os contornos de 4 um estimulante padrão retórico-argumentativo que até esse momento não me tinha ferido suficientemente a atenção. Uma das convicções que rapidamente se formaram no meu espírito – e que a ulterior investigação haveria de corrigir, pelo menos em parte – foi a ideia de que a arquitetura argumentativa d’As Farpas assentaria sobretudo naquela categoria de argumentos a que Chaïm Perelman chama «argumentos quase lógicos», dada a sua afinidade com os raciocínios formais. Para que essa impressão se formasse contribuíram fundamentalmente dois aspetos: por um lado, esse núcleo de argumentos é porventura aquele que se reveste de um desenho formal mais destacado; por outro, As Farpas disseminam nas suas páginas um reiterado tributo à lógica, propondo-se intervir pela via da razão e da inteligência. Para além disso, o repúdio que Eça aí manifesta em relação a uma retórica de cunho sentimental, uma retórica assente na exploração de instâncias da ordem do pathos, articulava-se de modo especialmente harmonioso com o próprio racionalismo perelmaniano1. Entretanto, dava-me conta também de que, em muitos aspetos, o humor queirosiano de Uma Campanha Alegre decorria com frequência da distorção de certos procedimentos argumentativos. Na verdade, vários dos exemplos ilustrativos das diferentes categorias de argumentos propostas por Perelman tinham eles próprios um cunho humorístico – só mais tarde me viria a cruzar com essa espécie de lado B do Tratado de Argumentação que é Le Comique du Discours, de Lucie Olbrechts-Tyteca: projetando as classificações e a terminologia do Tratado sobre o território do cómico, Olbrechts-Tyteca demonstrava como este se pode construir a partir das mesmas estruturas argumentativas. Foi esse o núcleo central de questões a partir das quais, alguns anos depois, decidi desenvolver o presente trabalho. Atravessando toda a diversidade de registos e todos os desdobramentos temáticos dos textos que Eça escreve para As Farpas, o problema da retórica parecia-me neles ocupar um lugar central. Antes de mais porque a retórica é aí objeto de uma série de ataques severos. É claro que a noção queirosiana de retórica não coincide com a de Perelman: o filósofo belga promove a reconciliação dos conceitos de retórica e de argumentação, repondo uma unidade há muito cindida na história desta disciplina; para Eça, retórica é sobretudo empolamento da expressão, artificialismo, 1 Allan Gross e Ray Dearin observam justamente que Perelman «is almost entirely silent on pathos, that is, proofs that derive from the emotional state of the audience» (2003: x). 5 distorção, prevalência do sentimento sobre a reflexão – em duas palavras, deformação e equívoco. As Farpas assumem, desta forma, como desígnio uma autêntica cruzada antirretórica: a concretização do seu objetivo, declarado desde as primeiras linhas, de revelar ao público a realidade como ela é, e não como este a costuma ver, passa precisamente pela denúncia e pela destruição dos espessos revestimentos retóricos que sobre essa realidade se foram instalando, nomeadamente através da repercussão na esfera pública de práticas discursivas produzidas por determinadas instâncias investidas de poder, quer jurídico, quer simbólico – a classe política, a imprensa, a literatura, a religião. Por outro lado, foi-se-me tornando progressivamente evidente que, a despeito da repugnância que a retórica lhe suscita, os textos que Eça publica n’As Farpas são construções retóricas não só laboriosas como, pelo menos até certo ponto, conscientes dessa condição. Quando afirmo «conscientes dessa condição», isso significa que tenho como referência o conceito relativamente restrito de retórica que Eça revela ter. Este nunca se desvia, bem entendido, para o território da retórica ornamental, da retórica que faz questão de exibir o seu próprio aparato, da retórica de arrebatamento emocional; no entanto, visita com relativa frequência zonas manifestamente ambíguas, e creio que ciente dessa ambiguidade. Em última instância, a sua principal arma, o humor, constitui a suprema ilustração desta condição dúplice, a um tempo retórica e antirretórica, dos textos que escreve para As Farpas. Todas estas questões serão detalhadamente abordadas – na medida em que esse detalhe é permitido pelos limites regulamentares impostos à dimensão de um trabalho desta natureza – nos quatro capítulos constitutivos da presente tese. Assim, no primeiro capítulo procuro situar o realismo, na qualidade de corrente estético-literária a que As Farpas reconhecem o estatuto de matriz e referência, em relação a duas instâncias perante as quais ele assume um posicionamento fundamental para definir a sua própria identidade: a retórica e a verdade. Na medida em que se vincula à verdade, o realismo opõe-se à retórica; no entanto, esse antagonismo entre retórica e verdade tem uma longa história, e este capítulo começa por sintetizar os principais lances dessa relação conflitual. Os primeiros ataques de que a retórica é objeto provêm do quadrante da verdade epistémica de cunho platónico, mas a partir do século XVI as razões contra ela mobilizadas adquirem uma natureza que as aproxima já de forma notória daquelas que depois o realismo invocará. Exposta aos efeitos da revolução científica, do racionalismo cartesiano, do postulado de que não existe conhecimento válido fora do âmbito da evidência racional ou 6 experimental, a retórica vê a sua reputação intelectual desgastar-se ao longo da idade moderna, entre os séculos XVI e XVIII. Novo ataque surgirá depois do quadrante da verdade artística: o romantismo, ao decretar uma rutura em relação a um modelo de arte – nomeadamente um modelo de literatura – assente num sistema códigos impositivos, desfere um golpe decisivo sobre esta ala particular do edifício retórico, em nome de um ideal de autenticidade expressiva. No entanto, circunstâncias sociais, políticas e culturais específicas acabariam por associar o romantismo a um período histórico de expansão de certos domínios da retórica para o espaço público – da retórica literária, da retórica parlamentar, da retórica jornalística, etc. O realismo, ao fazer coincidir o ideal de arte com o ideal de ciência, visará a verdade, não só enquanto representação fidedigna, exata, fotográfica, do real, mas também enquanto compreensão da mecânica dos fenómenos sociais, enquanto conhecimento do homem na sua qualidade de «máquina de engrenagens ordenadas»: a obra literária torna-se laboratório científico, a verdade torna-se epistemologia; em última instância, este ideal científico acaba mesmo por adquirir o estatuto de mitologia redentora. Em todo o caso, a retórica não tem lugar neste sistema: retórica e verdade são, na perspetiva da nova literatura, duas categorias mutuamente exclusivas. O segundo capítulo procura identificar os traços do retrato crítico que As Farpas fazem da retórica e compreender de que forma esse retrato se projeta tematicamente na posterior produção ficcional queirosiana, uma vez que n’As Farpas se encontra a matriz da representação de uma retórica desqualificada que depois vários romances de Eça recuperam. A retórica é vista genericamente n’As Farpas como uma entidade nociva, dada a sua vocação para distorcer a realidade, para a revestir de uma espessura de mentira, e assim alterar as condições de perceção dessa realidade por parte dos indivíduos expostos ao seu efeito. As Farpas encarregam-se, por isso, da missão de denunciar e de retificar diversas manifestações de distorção da linguagem – isto é, de distorção das condições de perceção da realidade –, nomeadamente aquelas que, provindo de entidades cuja voz tem uma repercussão social acrescida, ilustram de modo especialmente crítico a degradação do espaço público discursivo. Neste capítulo são objeto de atenção destacada quatro domínios cujo contributo para o processo de degradação a que me refiro é especialmente significativo: a política, a religião, a literatura e a imprensa. No que diz respeito à classe política portuguesa, esta tem o seu talento e a sua reputação alicerçados unicamente na exibição de dotes oratórios espúrios. 7 Assim, na origem da decadência da vida política nacional há dois equívocos: o primeiro consiste na distorção do conceito de política, que, esvaziado das suas componentes essenciais, é preenchido apenas pela «eloquência parlamentar»; o segundo traduz-se numa nova distorção, desta vez do próprio conceito de eloquência, que é interpretado pelos atores políticos de um modo totalmente desvirtuado. A forma como a religião é abordada na obra queirosiana ganha em ser enquadrada num contexto histórico que coloca vários desafios à Igreja, exposta no século XIX a sérios abalos na ordem social e política um pouco por toda a Europa, a revoluções também nos campos da ciência e da filosofia – em suma, a um conjunto de circunstâncias que ameaçam a estabilidade da sua estrutura temporal e do seu corpo teológico. A reação conservadora da Igreja mobilizará uma forte corrente crítica às suas posições, que tem, entre nós, nas Conferências do Casino um dos seus marcos incontornáveis. Em sintonia com este movimento crítico, Eça lamentará n’As Farpas que a religião tenha abandonado o seu desígnio de mapa ético para passar a ser um sistema de rituais, de fórmulas, de exterioridades retóricas – isto quando não expõe os seus auditórios à exploração de imagéticas equívocas. No que diz respeito à literatura, Eça empenha-se em desmontar a retórica do romantismo, os dispositivos formais a que esta recorre para distrair e seduzir, e em denunciar a imoralidade que sob ela se aloja: As Farpas fazem nomeadamente uma pedagogia de alerta em relação ao culto romântico do sentimentalismo e do sensualismo e à distorção que o romantismo promove do eixo moral do adultério. Finalmente, a imprensa é abordada também na perspetiva das responsabilidades que As Farpas lhe atribuem de contribuir para a degradação, quer dos modelos de expressão, quer das condições de perceção do mundo de toda uma comunidade. As Farpas colocam-se assim, enquanto projeto de intervenção mediática, numa posição de rutura em relação às práticas de um sistema jornalístico enredado em agendas de poder, reduzido ao domínio da irrelevância informativa, colado a um paradigma discursivo de natureza oratória – um sistema cuja missão de utilidade pública se encontra, por isso, totalmente pervertida. O terceiro capítulo visa indagar até que ponto a repulsa pela retórica e o elogio da racionalidade proclamados nos textos queirosianos d’As Farpas têm correspondência direta no registo desses mesmos textos. Vinculadas apenas à lógica e ao bom senso, e não exigindo também além destas outras qualidades ao seu auditório, As Farpas reclamam para si próprias o estatuto de voz emergente da razão e dirigem-se a um auditório racional; desta forma, o 8 território da sua intervenção terá de ser o da argumentação racional e não o da retórica. Nesta perspetiva, é inicialmente abordado neste capítulo um tópico suscetível de ilustrar esse perfil argumentativo: o tópico da contradição, mais concretamente da denúncia das contradições instaladas no seio da vida coletiva portuguesa A denúncia dessas contradições – desses contrassensos – assenta num conjunto de estratégias e de dispositivos enquadráveis no âmbito de uma argumentação quase lógica, de acordo com a tipologia perelmaniana, explorando As Farpas em especial linhas argumentativas fundadas na incompatibilidade, na regra da justiça e no raciocínio apagógico. No entanto, embora Eça se empenhe em reforçar o aparato lógico da sua argumentação, nomeadamente sinalizando essa vertente, isso traduz acima de tudo a adesão a uma ideologia da racionalidade, mais do que propriamente uma vinculação efetiva (e muito menos exclusiva) ao domínio de uma argumentação lógica em sentido estrito. Na verdade, As Farpas não colocam entre parênteses a componente emotiva do seu auditório, e este capítulo propõe-se também compreender os processos através dos quais nelas se instala uma retórica apontada às instâncias afetivas do leitor. Nesse sentido, são abordadas aquelas zonas onde é possível detetar uma certa ambivalência argumentativa decorrente do recurso a procedimentos que, embora sob a aparência de operações da ordem do logos, exploram também uma vertente dirigida aos afetos. É, por exemplo, o caso do arco que liga um argumento quase lógico como o da divisão ao território da amplificatio; é também o caso da natureza dúplice de que se encontra investida a noção perelmaniana de presença – aqui enquadrada numa tradição histórica, a da enargeia, cujo arco vai de Quintiliano às retóricas do Iluminismo, e que tem como objetivo genérico o reforço da proximidade entre o auditório e a matéria do discurso. Finalmente, o quarto capítulo debruça-se sobre um aspeto incontornável na estratégia comunicacional d’As Farpas, e que é também um elemento angular no que diz respeito à compreensão do lugar da retórica nos textos desta publicação: o humor. As Farpas enquadram o humor na sua missão genérica de revelar aos leitores a realidade (e, por conseguinte, consideram-no um dispositivo não-retórico), a partir fundamentalmente de duas premissas: ou a realidade portuguesa é em si mesma caricatural e As Farpas se limitam a representar sem qualquer interferência uma deformação já existente no objeto, ou então o humor, quando muito, acentua essa deformação original, fazendo assim, através de um 9 movimento de torção adicional, estalar e saltar a camada de postiço com que a realidade se foi cobrindo e ocultando o seu verdadeiro rosto. Ao sustentarem que é o país que faz rir, e não elas próprias, As Farpas alimentam uma estratégia que promove a inversão das relações de poder entre os cidadãos e as instituições: rir de uma instituição (e não d’As Farpas) significa perder o respeito por ela, ou seja, assumir uma posição de superioridade perante uma instância investida de poder. Esta conceção do riso como dispositivo de agressão permite vincular o projeto à mais antiga das grandes teorias gerais do humor: a teoria da superioridade, ou da hostilidade. Esta perspetiva é, no entanto, por si só insuficiente para compreender o humor da publicação, ganhando em ser articulada com uma outra: a da teoria da incongruência. A comicidade d’As Farpas resolve-se numa atitude crítica, mesmo hostil, relativamente às instituições que sustentam o statu quo decadente do país, mas essa atitude assenta na exploração dos nexos paradoxais e incongruentes através dos quais são reveladas as diversas distorções dos princípios da lógica e do bom senso em que incorrem as entidades visadas. Depois de apresentar aquilo que me parecem ser os dois mecanismos-base a partir dos quais se constrói, de uma forma geral, o humor queirosiano n’As Farpas – por um lado a exploração de uma lógica do absurdo, por outro a reiteração de antíteses estabelecidas entre uma referência ideal e uma ocorrência real, muito degradada, de determinada realidade –, defendo que, não obstante a associação que As Farpas estabelecem entre humor e realismo, na verdade o humor se reveste nesse projeto de um estatuto ambíguo, equiparável ao de uma retórica útil. Apesar de, como refiro no início desta introdução, a origem da presente tese estar remotamente ligada a certa leitura casual de Uma Campanha Alegre, o texto de referência que irei utilizar é o d’As Farpas de 1871 e 1872, e não aquele que Eça publica em 1890 e 1891. São bem conhecidas as profundas alterações que Eça de Queirós introduz nessa edição, a última em vida do autor, e esta circunstância poderia justificar a sua prevalência sobre os artigos originais. Creio, no entanto, que o ângulo específico deste trabalho requer que se opte pelos textos inicialmente publicados: por um lado, porque só nesse caso estamos perante textos de imprensa na plena aceção do termo; por outro, porque o contexto que preside à série de 1871-2 não é semelhante ao da série de 1890-1. Os artigos a que esta tese se reporta 10 são contemporâneos da Comuna de Paris e das Conferências do Casino, não do ultimatum britânico. A abordagem que faço das farpas queirosianas não as encara como textos estritamente literários (embora essa natureza nunca seja rasurada), mas sim como textos investidos de um propósito de intervenção mediática, fortemente ligados a um contexto histórico-cultural específico. A publicação em volume, em 1890-1, dos textos que Eça escrevera vinte anos antes para As Farpas reforça, até do ponto de vista institucional, o seu estatuto literário, mas a força plena do seu impacto comunicacional ocorre inquestionavelmente aquando da sua primeira aparição. Em 1890, os factos e as personagens a que Eça se refere estão arrumados num plano mais ou menos recuado da memória: reler estes artigos vinte anos depois seria com certeza uma experiência investida do fascínio difuso das evocações remotas, ou do interesse específico representado pela oportunidade de reler textos de juventude de um autor então plenamente consagrado; em todo o caso, o carácter fortemente contextual d’As Farpas, o seu desígnio de mediar (e condicionar) a relação entre uma comunidade histórica de leitores e o respetivo contexto epocal, não é transponível – ou é-o de uma forma extremamente diluída – do momento da sua aparição original para o momento da posterior republicação. Na «Advertência» que escreve para a edição de Uma Campanha Alegre, Eça refere-se justamente a esta perda de atualidade, e por isso de vida, dos textos que compunham o volume em publicação: «As coisas que [os] provocaram são já tão passadas como as de Tróia. Este livro é menos uma reimpressão que uma escavação. As minhas FARPAS surgem à superfície, enferrujadas, sem gume e sem brilho, como as antigas armas de uma batalha de que ninguém sabe o nome» (UCA: 7). Esses vinte anos não se limitaram a passar sobre os acontecimentos que deram origem a cada um dos textos originais; o próprio Eça que os escreve, aos 26 anos, recém-convertido ao realismo, com o entusiasmo das convicções recentes e fulgurantes, não é o mesmo que, já com 45, os republica – e a verdade é que este último não se limita, ao contrário do que afirma na referida «Advertência», a conferir «regra, compostura e ritmo» (ibidem) aos passos em que lhe parecia imperar a desordem. Eça vai muito além das intervenções estilísticas (abundantes e muitas vezes felizes): corrige excessos, omite excertos consideráveis, por vezes suprime textos inteiros. Ora essa filtragem acaba por condicionar a perceção das condições em que ocorreu aquilo que, nas palavras de João 11 Medina, foi o «estrondo jornalístico» (2000: 19) provocado pel’As Farpas no momento da sua aparição. Este trabalho terá, por isso, como referência os textos queirosianos originalmente publicados n’As Farpas, nele sendo utilizada a edição coordenada por Maria Filomena Mónica (Principia, 2004); tal não invalida que as variantes introduzidas por Eça em Uma Campanha Alegre sejam convocadas sempre que o confronto entre os textos de 1871-2 e de 1890-1 se afigure pertinente. Termino com duas notas muito breves, relativas a outros critérios metodológicos adotados. Em primeiro lugar, a ortografia dos textos citados foi atualizada: estando quaisquer questões relacionadas com a crítica e a edição textual situadas fora do âmbito deste trabalho, não me pareceu que nele se justificasse a coexistência de padrões ortográficos diversos, particularmente no caso de textos coevos, colhidos por vezes em edições temporalmente muito afastadas. Por último, a bibliografia apresentada refere-se apenas aos textos efetivamente citados no corpo da tese. 1. Retórica, verdade e realismo 15 1.1. Retórica e verdade: tensões históricas «Desde Platão que a verdade é uma arma apontada ao coração da retórica», escreve Américo de Sousa num artigo publicado no número 36 da Revista de Comunicação e Linguagens (2005: 161). A reputação da retórica como território da falácia, do raciocínio subtil e vicioso, da manipulação afetiva, tem a sua origem documentada mais remota nos juízos que sobre ela formula Platão, nomeadamente no Górgias. A verdade epistémica, inalterável e universal, que a filosofia persegue não é compaginável com os processos da retórica: esta instala-se precisamente no domínio do incerto e do instável, da doxa, e cultiva um relativismo avesso a qualquer noção absoluta – relativismo esse de que são manifestações ilustrativas, por exemplo, as antilogias de Protágoras, assentes na convicção de que sobre todas as questões é possível elaborar dois discursos coerentes mas contraditórios entre si, ou a ideia, associada ao próprio Górgias, segundo a qual a verdade não passa de uma construção meramente discursiva (cf. Hernández Guerrero & García Tejera, 1994: 21-23). Mas, não obstante as reservas que ensombram o contexto da sua afirmação como um dos pilares da vida pública ateniense, o facto é que a retórica estenderia a partir daí a sua influência no espaço e no tempo, acabando por se impor em todo o ocidente, sobrevivendo a convulsões políticas, sociais e culturais tremendas e aí reinando, como afirma Roland Barthes (1987: 22), durante vinte e cinco séculos, de Górgias a Napoleão III. Algumas dessas convulsões, ainda assim, abalariam fortemente as estruturas do seu edifício. O primeiro desses momentos críticos está relacionado com a falência das condições que estiveram na base do florescimento da retórica em Atenas e anuncia aquilo que viria a ser um percurso marcado por uma série de processos de transformação e adaptação a circunstâncias diversas (Perelman, 1997: 177-180). A retórica ateniense é um produto da democracia entendida como sistema participativo (e não apenas representativo), que mobiliza ativamente os cidadãos e lhes exige uma formação cívica e humana – uma paideia – na qual o 16 domínio de habilidades oratórias e de competências argumentativas desempenha um papel fundamental (Pereira, 1988: 165-178, 422-30; Pulquério, 1991: 9-10; Rei, 1998: 31-34; Leite, 2014: 25-29). O declínio da democracia ateniense, e depois a transição da república romana para o império, modificam este quadro. Com fim da república, o poder de decisão é subtraído aos auditórios e transferido para o imperador (Breton & Gauthier, 2001: 46). Gérard Genette, para quem, «de Corax à nos jours, l’histoire de la rhétorique est celle d’une restriction géneralisée» (1972: 234), aponta, em «La rhétorique restreinte», a morte das instituições republicanas como causa – de resto, já identificada por Tácito – do desaparecimento do género deliberativo, mas também da crise do epidítico. Ferido o equilíbrio entre os géneros, teria aqui tido início igualmente, segundo Genette, um longo processo de perturbação de um outro equilíbrio: o do enfoque nas várias operações envolvidas na elaboração retórica do discurso, que conduziria a uma progressiva preeminência da elocutio em relação à inventio e à dispositio (ibidem). A retórica retira-se, assim, progressivamente da esfera pública e escolariza-se: Marciano Capela reserva-lhe um lugar no trivium das sete artes liberais, que constituem a base do sistema escolar durante toda a Idade Média (Casulo, 2014: 20). É, como refere Barthes em «A retórica antiga», uma retórica simultaneamente «triunfante», porque reina no ensino, e «moribunda», porque o seu confinamento a esse sector não deixa de constituir uma perda e um desprestígio (1987: 46). Mas esta ocorrência do termo «moribunda» para descrever o estado da retórica nesse momento crítico da sua história, em que é confrontada com o fracasso das instituições políticas necessárias ao seu exercício, não é singular no artigo de Barthes. O mesmo termo ocorre noutro ponto do texto, referindo-se aí a um período agónico posterior da sua existência: «moribunda desde o Renascimento, [a retórica] dura ainda três séculos antes de morrer» (1987: 22). E, ainda que o próprio Barthes aí reconheça mais de uma vez que as notícias sobre a morte da retórica poderiam ser manifestamente exageradas (1987: 22, 49), o seu artigo deixa muito clara a ideia de que os alicerces desta disciplina sofrem um profundo abalo entre o século XVI e o século XIX. É precisamente este o período-chave de incidência da tese de Genette segundo a qual a retórica experimenta historicamente um processo de redução do seu âmbito, até se cingir a uma retórica da elocutio e do tropo: Ramus, Lamy, Dumarsais e Fontanier representariam os marcos seculares desse percurso de perda e especialização (Genette, 1972). Como refere Françoise Douay-Soublin, com «La rhétorique restreinte» Genette «fournissait un schéma 17 dramatique d’une simplicité si lumineuse qu’il ne pouvait manquer de séduire un large public» (2007: 39). As irradiações desta ideia manifestam-se, por exemplo, em autores como Paul Ricœur (s/d: 13-14, 75-6) ou Tzvetan Todorov (1979: 77-123), e o próprio Barthes, no artigo acima citado, refere-se a dado ponto ao facto de, a partir do séc. XVI, a retórica ser encarada, não como «uma lógica», mas apenas como «uma cor, um ornamento» (1970: 47) 2. Embora sedutora, até pelas extensões que o século XX lhe parecia poder imprimir, esta tese suscitou, no entanto, objeções logo desde o seu aparecimento (Varga, 1970, 16-17), e nos anos subsequentes, nomeadamente na sequência dos trabalhos de Françoise Douay-Soublin (1990, 1992, 1999), sucederam-se os estudos de orientação divergente em relação às conclusões de Genette. Um simples exercício de leitura do índice da monumental Histoire de la Rhétorique dans l’Europe Moderne, publicada em 1999 sob a direção de Marc Fumaroli, fará sobressair, em boa parte dos períodos abordados, um percurso marcado por uma sucessão de reveses, a que se seguem invariavelmente outros tantos reforços do estatuto da retórica: «la rhétorique reconsiderée», «réaménagement de l’édifice rhétorique», «Contestation et restauration da la rhétorique», «Procès de la rhétorique, triomphe de l’éloquence», etc. (Fumaroli, 1999). É também possível rastrear na bibliografia consagrada à retórica revisões interpretativas de alguns momentos críticos da história desta disciplina que invertem autenticamente o seu alcance mais evidente: por exemplo, a redução do corpo da retórica ao domínio da elocutio e da actio proposta por Ramus no séc. XVI é vista por Timmermans como um fator de expansão da sua influência (Meyer, Carrilho & Timmermans, 2002: 126-133), e é sobretudo notória a tentativa de harmonização que a crítica tem tentado promover entre o cartesianismo e a retórica, ao arrepio das leituras tradicionais (Meyer, 2008: 44-46; Carr: 2009; Santos, 2013). Mas a principal objeção à tese de Genette acaba por ser a sua fundamentação documental parcial e equívoca, como observa Christelle Regiani, que não deixa de reconhecer, no entanto, na história da retórica uma tendência, já presente em Quintiliano, para a eleição da elucutio como área privilegiada de investigação (2008: 20-21). Mais recentemente, Jean-Marie Valentin assume que o percurso atribulado da retórica na era moderna tem um saldo global de muitas perdas e poucos ganhos (2012: 11), e Michel Meyer, em What is Rhetoric?, obra publicada em 2017, recupera no essencial a tese genettiana de que 2 Embora datados ambos de 1970, o artigo «La retorique restreinte», de Gérard Genette, é na verdade posterior a «L’ancienne rhétorique», de Roland Barthes. No entanto, Genette formulara já os princípios da tese central do seu artigo de 1970 num texto publicado quatro anos antes, sob o título «Enseignement et rhétorique» (1966). 18 «[t]he general trend in the evolution of rhetoric from the Renaissance to our present times is a restriction of rhetoric» (2017: 45). O que se passa neste período pode ser descrito, recuperando a ideia de Américo de Sousa, como um cerco movido à retórica por parte da verdade, destacando-se nesse cerco dois ataques decisivos, com efeitos particularmente destruidores. O primeiro destes ataques surge do quadrante do paradigma emergente da revolução científica iniciada no século XVI, que irá progressivamente vincando a sua incompatibilidade com uma matriz retórica do discurso. Perelman (1991) vê no legado de Ramus o marco inaugural do declínio da retórica na era moderna, com a sua proposta de que a inventio e a dispositio, para além da memoria, fossem integradas na dialética3. A retórica ficava, assim, confinada ao estudo da elocutio e da pronuntiatio, ou seja, reduzida ao domínio do estudo das técnicas decorativas da linguagem e da encenação do aparato declamatório exigido pelas circunstâncias da enunciação (cf. Magnien, 1999: 377-9). Mesmo que, como refere Timmermans, esta reorganização proposta por Ramus possa não se ter imposto de forma duradoura em parte alguma (Meyer, Carrilho & Timmermans, 2002: 127)4, ela representa pelo menos um momento incontornável do atribulado percurso histórico da retórica a que se refere Jean-Marie Valentin – percurso esse que se traduz, em última instância, num processo de contínua redefinição da sua identidade. Mas é sem dúvida o advento da ciência moderna que alimenta o veio crítico mais empenhado em demonstrar que a retórica é dispensável – quando não um obstáculo – ao avanço do conhecimento: por um lado ela não fornece um método suscetível de orientar o espírito na busca do saber; por outro os modelos discursivos que ela é capaz de gerar não se adequam às exigências de neutralidade, de clareza e de transparência da linguagem científica. Se Perelman vê em Ramus a origem do declínio da retórica, o golpe que decisivamente a derrota atribui-o inquestionavelmente ao cartesianismo (1987: 264). No entanto, Descartes tem a este respeito dois precursores incontornáveis: Galileu e Bacon. Galileu, em 1632, no seu Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo, afirma que, nas ciências físicas, a arte oratória é ineficaz (2011: 138) – e, por conseguinte, ao referir-se à defesa que Copérnico apresenta da sua tese heliocêntrica, condena-lhe o recurso a 3 Uma proposta que, de resto, não é absolutamente original, lembra Michel Magnien (1999: 378). 4 Segundo Françoise Douay-Soublin (1990: 125-6), este modelo restrito de retórica vigorou durante mais de um século em Inglaterra, na Holanda, na Suíça, em certas cidades da Alemanha e nos colégios protestantes franceses. 19 argumentos que considera cedências a uma retórica ornamental, mais própria de poetas do que de homens da ciência5. No Novum Organum, a denúncia que Francis Bacon faz dos enviesamentos da linguagem (os idola fori, na sua opinião os mais problemáticos dos quatro idola abordados) traduz uma notória desconfiança em relação às construções discursivas capazes de se interpor entre o espírito e a verdadeira natureza das coisas (s/da: 76-78; 86-89). Mesmo não assumindo uma posição sistematicamente hostil à retórica6, Bacon alerta ainda assim para o perigo que um discurso demasiado trabalhado do ponto de vista estilístico, com excessivo investimento nos diversos aspetos de que se recobre a elocução, representa para o espírito, visto que transfere a atenção dos aspetos prioritários para os acessórios e a distrai do que é verdadeiramente importante7. A filosofia cartesiana, empenhada unicamente na obtenção daquilo que pertence ao domínio do exato e do incontroverso, acabaria depois por atingir de forma demolidora o edifício da retórica, quer enquanto sistema de recursos fornecidos ao pensamento para este conduzir a abordagem de determinado assunto, quer enquanto labor estilístico da elocução, isto é, eloquência. Como se sabe, Descartes postula que «a ciência é um conhecimento certo e evidente» e rejeita «todos os conhecimentos que não passam de prováveis» (1971: 14). Que a retórica não tem lugar na filosofia cartesiana é uma inevitabilidade deste postulado. Na verdade, na décima das suas Regras para a Direção do Espírito, a própria dialética, dada a sua inapetência para a descoberta da verdade, é proscrita do âmbito da filosofia e associada à retórica, uma vez que apenas pode ter utilidade para tornar mais eficaz a exposição (1989: 59-60). Por outro lado, Descartes considera que as virtudes de uma exposição eficaz e 5 «Copérnico admira a disposição das partes do universo por ter Deus criado a grande lâmpada, que devia fornecer o máximo esplendor a todo o seu templo, no centro do mesmo, e não ao largo. Quanto a estar o globo terrestre entre Vênus e Marte, trataremos em breve; e vós mesmos, em nome desse autor, tentareis removê-lo. Mas, por favor, não entrelacemos estes floreios retóricos com a solidez das demonstrações, e deixemo-los para os oradores, ou melhor, para os poetas, os quais souberam com suas afabilidades exaltar com louvores coisas vilíssimas e muitas vezes também perniciosas […]» (2011: 347). 6 Em Of the Dignity and Advancement of Learning, a retórica é considerada «a science certainly both excellent in itself, and excellently well laboured» (1882, IX, 130). 7 «[…] these four causes […] did bring in an affectionate study of eloquence and copie of speech, which then began to flourish. This grew speedily to an excess; for men began to hunt more after words than matter; and more after the choiceness of the phrase, and the round and clean composition of the sentence, and the sweet falling of the clauses, and varying and illustration of their works with tropes and figures, than after the weight of matter, worth of subject, soundness of argument, life of invention, or depth of judgment» (s/d: 119). Em Preparative Toward Natural And Experimental History, Bacon escreve igualmente: «And for all that concerns ornaments of speech, similitudes, treasury of eloquence, and such like emptinesses, let it be utterly dismissed» (s/db: 359). 20 eloquente resultam mais facilmente de um dom natural do que de um estudo sistemático8. Isto é, quer enquanto mapa do pensamento, quer enquanto arte de expor, as orientações epistemológicas preconizadas pelo cartesianismo decretam a inutilidade da retórica. A ciência e os seus métodos constituem-se então como modelos de referência do conhecimento e, perante os novos horizontes que por esta via se abrem à humanidade (e que se traduzem também na superação de uma filosofia especulativa, substituída por uma filosofia ‘útil’, capaz de descobrir os mecanismos da grande máquina do mundo e de dominar a natureza), a retórica, velha de mais de vinte séculos, aparece como um corpo pesado, e em grande medida obsoleto, de princípios cujo proveito se afigura cada vez mais duvidoso. Esta cultura antirretórica cria raízes profundas no pensamento moderno. Hobbes chega a traduzir uma versão muito sintetizada da Retórica de Aristóteles (The Whole Art of Rhetoric); porém, à medida que a ciência o cativa, também ele se torna crítico do paradigma de conhecimento veiculado pelas humanidades9. Nos Elementos do Direito Natural e Político (1640), Hobbes afasta a retórica (a eloquência) do âmbito dos recursos através dos quais é possível demonstrar a verdade: o conhecimento desta requer do espírito um esforço intelectual que a retórica substitui por uma adesão afetiva10. Ideia semelhante será defendida por Malebranche, que nos seus Éclaircissements a De la Recherche de la Vérité (1678) critica a associação comum entre a expressão obscura («galimatias», isto é, «toutes les expressions vides de sens, et toutes les manières de parler obscures et embarrassées» – 1910: 367) e a competência retórica, quando na verdade essa obscuridade é frequentemente a roupagem com que se cobre a ignorância daquele que detém a palavra, para além de ser uma forma de induzir um assentimento pouco esclarecido. Tal como Hobbes, Malebranche opõe o esforço intelectual 8 «Apreciava muito a eloquência, e a poesia apaixonava-me; mas pensava que uma e outra eram mais dons do espírito do que frutos do estudo. Os que têm o raciocínio mais forte, e melhor digerem os seus pensamentos, a fim de os tornar claros e inteligíveis, podem sempre persuadir melhor, ainda que não falem senão baixo bretão e não tenham aprendido retórica. E os que têm as invenções mais agradáveis, e as sabem exprimir com mais ornamento e suavidade, não deixariam de ser os melhores poetas, ainda que a arte poética lhes fosse desconhecida» (2008: 31). 9 Quentin Skinner, em Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, dá-nos conta desse processo: «É nos Elementos [do Direito Político e Natural] […] e mais ainda em Sobre o Cidadão que Hobbes deixa perfeitamente claro o seu desapreço e a sua desconfiança em relação às artes retóricas e, de um modo geral, à cultura retórica do humanismo renascentista. Não seria exagero dizer que um dos seus principais objectivos, nesses dois livros, é questionar e derrubar os esteios centrais da ars rhetorica» (1999: 346). 10 «A eloquencia não é senão o poder de fazer crer aos outros naquilo que nós dizemos; e para este fim, é-nos preciso tirar proveito das paixões do auditório. Ora, para demonstrar e ensinar a verdade, são precisas longas deduções e muita atenção e isso desagrada a quem escuta; é porque os que não procuram a verdade, mas a crença, devem fazer emanar o que eles queriam fazer crer, de qualquer outra crença já aceite, mas ainda, por amplificações e extenuações, fazer aparecer o bom e o mau, o justo e o injusto, maiores ou menores do que realmente são, segundo o que serve aos seus propósitos» (II, VIII, 14). 21 que a racionalidade requer ao charme da «convicção sensível»11. Uma das vozes mais radicais nos seus ataques à retórica é a de Locke, que, no Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690), a considera um «poderoso instrumento de erro e engano». De novo está em causa a antítese que se estabelece entre a árdua verdade e o engano deleitoso, mas desta vez a condenação da retórica, de que se sublinha a absoluta desadequação à comunicação do conhecimento, assume uma formulação radical e definitiva: […] se queremos falar das coisas como elas são, devemos reconhecer que toda a arte retórica, excetuando a ordem e a clareza, toda a aplicação artificial e figurada das palavras, que a eloquência inventou, não servem para outra coisa senão para insinuar ideias erradas, mover as paixões e, por esse meio, enganar o bom senso; e, assim, são de facto perfeitas fraudes. Por conseguinte, por mais louvável ou admissível que a oratória as torne, nos discursos populares, está fora de dúvida que devem ser absolutamente evitadas em todos os discursos que pretendem informar ou instruir; e todas as vezes que se trate da verdade e do conhecimento, não podem deixar de ser consideradas como um grande erro, quer da linguagem, quer da pessoa que delas se serve. […] É evidente que os homens gostam muito de enganar e ser enganados, uma vez que a retórica, esse poderoso instrumento de erro e engano, tem os seus professores instituídos, é ensinada publicamente e tem gozado sempre de uma grande reputação. (1999: 692-3) Entretanto, o espírito cartesiano penetra no interior da própria teorização retórica. Na sua Rhétorique ou l’Art de Parler (1675), Bernard Lamy incorpora alguns princípios da lógica de Port-Royal, nomeadamente no que diz respeito à desvalorização da doutrina aristotélica dos lugares comuns como fontes de premissas silogísticas (cf. Howell, 1961, 380 e ss); Lamy retoma este tópico numa perspetiva retórica censurando o discurso que assenta sobre um conhecimento imperfeito das matérias e condenando, assim, as derivas logorreicas cujo propósito assenta numa estratégia de distração12. Desta forma, acaba por opor, também ele, a natureza árdua do conhecimento efetivo à elementaridade das abordagens retóricas: On ne se remplit l’esprit de vérités certaines sur les matières qu’on est obligé de traiter que par de sérieuses méditations, et par de longues études, dont peu de gens sont capables. La science est un fruit environné d’épines, qui éloigne de lui presque tous les hommes. Ainsi, s’il n’était permis de parler que de ce que l’on fait, la plupart de ceux mêmes qui font métier d’haranguer, seraient obligés de se taire. (1787: 370) 11 «L’inclination que les hommes ont pour la grandeur, est plus forte que celle qu’ils ont pour la vérité. Ainsi le galimatias pompeux qui persuade par impression est mieux reçu que de purs raisonnements, qui ne peuvent persuader que par leur évidence. L’évidence ne s’acquiert que par des réflexions qui coûtent toujours quelque peine à ceux qui les font; mais la conviction sensible se répand dans l’âme et la pénètre d’une manière très agréable» (1910: 368). 12 «Si un Orateur ignore le fond de la matière qu’il traite, il ne peut atteindre que la surface des choses, il ne touchera point le nœud de l’affaire, de sorte qu’après avoir parlé longtemps, son adversaire aura sujet de lui dire ce qui disait saint Augustin à celui contre qui il écrivait: finissez ces grands discours qui ne disent rien, dites quelque chose, opposez des raisons à mes raisons, et venant au point de la difficulté, établissez votre cause, et tâchez de renverser les fondements sur lesquels je m’appuie» (1787: 377). 22 Por outro lado, Lamy não deixa de alertar igualmente para o vício do ornamento inútil e obscurecedor, observando que ele explora a tendência humana para o exercício de um juízo equívoco sobre a realidade, juízo esse que se deixa impressionar por tudo o que é incomum, independentemente da sua verdade ou inteligibilidade: L’on trouve peu de personnes qui examinent avec jugement les choses qui se présentent. On se laisse surprendre par les apparences. Ainsi, parce que les grandes choses sont rares et extraordinaires, les hommes se forment une telle idée de la grandeur, que tout ce qui a un air extraordinaire, leur parait grand. Ils n’estiment ensuite que ce qui n’est pas commun; ils méprisent les manières de parler naturelles, parce qu’elles ne sont pas extraordinaires. Ils aiment les grands mots, les phrases enflées, sesquipedalia verba et ampullas. […] Ce qui fait remarquer encore plus sensiblement leur sottise, c’est qu’ils admirent ce qu’ils n’entendent pas, mirantur qua non intelligunt; parce que l’obscurité a quelque apparence de grandeur […]. (1787: 352- 353) A tensão entre ornamento retórico e conhecimento é levada ao seu ponto extremo no seio da Royal Society of London. Fundada em 1660, esta academia congrega cientistas e filósofos da natureza e assume-se como representante do mesmo espírito científico e antiescolástico que neste século se mostra em várias frentes inimigo da retórica. Nos estatutos de 1728, será mesmo criada uma norma que determina que esta seja abolida da linguagem utilizada nas comunicações escritas produzidas pelos seus membros13. Thomas Sprat, na sua History of the Royal Society of London (1667), condena já o recurso aos exércitos de figuras e tropos que desafiam a razão sem outro propósito que não o de adular a vaidade, estiolar o pensamento e mascarar a verdade («Who can behold, without Indignation, how many Mists and Uncertainties, these specious Tropes and Figures have brought on our Knowledge?» – 1734: 112). A Royal Society propõe como antídoto para esta ameaça ao conhecimento a adoção de um modelo de expressão inspirado no rigor matemático, através do qual as palavras poderão readquirir a sua exatidão primitiva – isto é, cumprir a utilidade da sua função referencial, ao invés de a sacrificar a critérios estéticos14. É, em última instância, o 13 «In all Reports of Experiments to be brought into the Society, the Matter of Fact shall be barely stated, without any Prefaces, Apologies, or Rhetorical Flourishes, and entered so into the Register-Book, by order of the Society» (apud Skouen & Stark, 2014: 2). 14 «They [the Royal Society] have therefore been most rigorous in putting in Execution, the only Remedy, that can be found for this Extravagance; and that has been a constant Resolution, to reject all the Amplifications, Digressions, and Swellings of Style; to return back to the primitive Purity and Shortness, when Men deliver’d so many Things, almost in an equal Number of Words. They have exacted from all their Members, a close, naked, natural way of Speaking; positive Expressions, clear Senses; a native Easiness; bringing all Things as near the mathematical Plainness as they can; and preferring the Language of Artizans, Countrymen, and Merchants, before that of Wits, or Scholars» (1734: 112-113). 23 grau zero da ornamentação, a elocução transparente, o sonho de uma linguagem geométrica – tudo o que preconiza a revolução científica (cf. Hallyn, 1999). Em suma, o racionalismo cartesiano, que circunscreve o ponto de partida do conhecimento às noções claras e distintas, e a progressiva afirmação da autonomia da ciência, com a sua exigência de rigor expressivo, instauram um novo paradigma que deixa a retórica numa posição vulnerável. O campo que lhe fica reservado é aquele que a nova ordem do conhecimento parece desprezar: de uma forma geral, o campo das opiniões e das emoções, uma zona confusa e obscura sobre a qual nada se pode concluir com carácter seguro. Mesmo uma tentativa de conciliação das esferas do racional e do sensível como aquela que é operada por Leibniz não deixa de subalternizar este último domínio: ainda que a componente emocional e sensorial recupere a dignidade de campo do conhecimento, nomeadamente com a Estética de Baumgarten, esta não deixa de ser uma scientia cognitionis sensitivae, isto é, uma gnoseologia inferior (cf. Barilli, 1985, 103-104). Em 1790, Kant, no mesmo parágrafo da Crítica da Faculdade do Juízo em que vincula a criação poética ao génio e lhe atribui um estatuto de indiscutível superioridade no campo das belas-artes15, exprime sérias reservas em relação à eloquência, a «arte de persuadir, isto é de iludir pela bela aparência», concluindo que esta retira a liberdade aos ânimos a ela expostos e que por isso «não pode ser recomendada nem para o tribunal nem para os púlpitos» (1998: 233). Como observam John Bender e David Wellbery (1990: 19), o passo em questão da Crítica da Faculdade do Juízo é especialmente relevante uma vez que por um lado Kant percorre aí os tópicos mais recorrentes de toda a crítica antirretórica (a manipulação, o engano, o adorno excessivo, etc.) e por outro decreta a irrelevância da codificação retórica (ou poética – a sua extensão) no domínio da arte literária. O romantismo viria a incorporar esta ideia no eixo da sua identidade estética, desferindo assim um golpe decisivo no edifício da retórica – o golpe que ditaria a sua morte no século XIX, como muitas vezes se tem referido (Barthes, 1987: 49; Ricœur, s/d: 14; Genette: 1966: 293; Compagnon, 1997: 6; Todorov, 1979: 77, etc.). Victor Hugo, no prefácio de 1822 a Odes et Ballades, investe a literatura de um compromisso com um princípio de liberdade e de originalidade – isto é, de autenticidade 15 «Entre todas as artes a poesia (que deve a sua origem quase totalmente ao génio e é a que menos quer ser guiada por prescrição ou exemplos) ocupa a posição mais alta» (1998: 233). 24 autoral – incompatível com o sistema de regras da retórica16. O ataque a um modelo de literatura hipercodificado reaparece no prefácio a Cromwell17, mas a sua expressão mais retumbante ficaria plasmada num verso das Contemplations, que se tornaria um dos emblemas do romantismo: «Guerre à la rhétorique et paix à la syntaxe!» (1858: 34). Ao contrapor a expressão individual do génio à padronização da criação artística, e depois ao projetar sobre o domínio da linguagem o foco do seu paradigma historicista – que se manifesta no desenvolvimento de disciplinas como a filologia ou a história literária –, o romantismo parecia esvaziar os derradeiros redutos da retórica enquanto sistema suscetível de fornecer um enquadramento produtivo fosse para a produção e a receção de discursos, fosse para a sua abordagem teórica. Em causa estava uma outra modalidade da verdade, que não era já a epistémica ou a científica, mas aquela que se vincula aos princípios de autenticidade e de identidade, por contraponto à artificialidade e à conformação esquemática associadas ao âmbito da retórica. Embora fazendo-se acompanhar de diferentes atributos – epistémica, científica, racional, empírica, artística –, a verdade, como escreve Américo de Sousa, não deixa de acossar a retórica desde que Platão lha aponta ao coração, pouco depois de fundados os seus primeiros alicerces. Entre os séculos XVI e XIX, a verdade emergente do paradigma científico afeta de modo particularmente severo a centralidade da retórica no campo do saber, ficando a sua vitalidade intelectual cada vez mais dependente de uma extensão do seu corpo central, a poética. Do romantismo partiria o impulso de secar esse veio remanescente, em nome de uma exigência de verdade que este movimento também reclamava («A poem is the very image of life expressed in its eternal truth», escreve Shelley em A Defense of Poetry) – sabendo igualmente que o caminho para a perseguir não era aquele que os códigos (neste caso poéticos) da retórica traçavam. Mas este quadro de linhas precisas, de movimentos articulados e de harmoniosa nitidez acaba por ser, inevitavelmente, uma esquematização – com as vantagens e as limitações próprias dos esquemas – de um processo muito menos linear. A proclamada 16 «La pensée est une terre vierge et féconde dont les productions veulent croître librement, et, pour ainsi dire, au hasard, sans se classer, sans s’aligner en plates-bandes comme les bouquets dans un jardin classique de Le Nôtre, ou comme les fleurs du langage dans un traité de rhétorique» (1875: 22-3). 17 «Rien de trouvé, rien d’imaginé, rien d’inventé dans ce style. Ce qu’on a vu partout: rhétorique, ampoule, lieux communs, fleurs de collège, poésie de vers latins» (1840: 37). 25 morte da retórica no século XIX está em grande parte associada à sua supressão do sistema de ensino, mas essa supressão é na verdade bastante tardia: 1850 no mundo anglo-saxónico, 1860 na Alemanha, 1868 em Portugal, 1885 em França, 1891 no Brasil, e em Itália ela dá-se já quase no termo do primeiro quartel do século XX, em 1922 (Douay-Soublin, 1992; Casulo, 2014; Mendes, 2013). A publicação e a circulação de manuais de retórica são, por isso, ainda abundantes em todo este período (cf. Douay-Soublin, 1999). Por outro lado, a rejeição ostensiva que os românticos proclamam de qualquer tipo de submissão a modelos de matriz retórica e poética tem tanto de atitude propriamente seminal como de manifestação reativa: ela é em grande parte uma resposta ao modo como são recebidas as criações românticas por parte de uma opinião que tende a avaliá-las à luz de critérios ditados pelos cânones clássicos (Michel, 1999: 1045). No prefácio à primeira edição de Camões, poema sobre o qual há muito se apôs o rótulo de texto fundador do romantismo português, a primeira preocupação de Garrett é precisamente subtrair a sua obra ao crivo dos critérios definidos pelas poéticas tradicionais: Garrett reconhece que o seu poema está «fora das regras» e que, julgado pelos princípios clássicos, não há nele «senão irregularidades e defeitos»18. Em última instância, é preciso não esquecer que a geração que vê despontar o romantismo fizera a sua formação intelectual sob a vigência dos cânones culturais do classicismo (Michel, 1999: 1040). Essa influência acabaria também, naturalmente, por se insinuar sob o alvoroço das novas propostas emergentes: é aquilo a que Hélio Lopes chama a «fonte subterrânea» que fecunda o romantismo (1978: 204), e que estaria nomeadamente na origem do empolgamento oratório que nas suas produções literárias tende por vezes a manifestar-se (Cândido, 2000: 37; cf. tb. Martins, 2008). O facto é que, quando o realismo e o naturalismo emergem no panorama literário do século XIX, a sua afirmação se traduz numa declaração de guerra ao romantismo, mas também à retórica – uma retórica cuja persistência enquanto sistema de codificação discursiva (embora revestido de renovadas formas, quer na série literária, quer fora dela: por exemplo, no âmbito da oratória política) realismo e naturalismo se empenham em denunciar e combater. Porque, na perspetiva destas novas correntes, a persistência da retórica investira- se entretanto de um estatuto especialmente nocivo, dada a crescente difusão do seu alcance: 18 «A índole do assunto deste poema é absolutamente nova […]. Conheço que ele está fora das regras; e que, se pelos princípios clássicos o quiseram julgar, não encontrarão aí senão irregularidades e defeitos. Porém declaro desde já que não olhei as regras, nem a princípios, que não consultei Horácio, nem Aristóteles, mas fui insensivelmente depós o coração, e os sentimentos da natureza, que não pelos cálculos da arte, e operações combinadas do espírito» (1825: v). 26 ela infiltrara-se na estética romântica, a estética romântica infiltrara-se na sensibilidade da população, e o discurso – literário, político, jornalístico, institucional – emergente deste estado de coisas parecia ter coberto o mundo de um filtro retórico. Por isso, a despeito da ideia de que o romantismo assinala a sentença de morte da retórica, toda a tópica antirretórica que marcara a idade moderna regressa em força com o realismo, e principalmente com o naturalismo. Mais uma vez, hasteava-se a bandeira da verdade para combater a retórica. 1.2. Realismo, naturalismo e retórica O declínio da retórica ocorrido entre os séculos XVI e XIX é tradicionalmente visto como consequência da exposição desta disciplina ao efeito do fogo cruzado proveniente de dois quadrantes: por um lado o paradigma científico e racionalista ataca a sua natureza imprecisa quer enquanto método, quer enquanto instância geradora de modelos discursivos; por outro o romantismo condena a sua rigidez, a sua estreiteza normativa, a ditadura dos seus códigos. Não sendo suficientemente rigorosa para o paradigma racionalista, a retórica era contudo demasiado racionalista para o romantismo emergente, que pretendia libertar o génio do espartilho da inventio e acabava a substituir Quintiliano por Longino. A verdade científica por um lado e a verdade artística por outro retiravam assim, neste quadro, propósito e sentido à existência da retórica. Mas, na perspetiva da crítica naturalista, a retórica não estava morta: ela insinuara-se na estética romântica e na sensibilidade por esta gerada. Aí instalada, produzia um efeito difuso de distorção da realidade, dominando a imagética e condicionando a temática de todo um vasto campo discursivo, cujo alcance ia na verdade muito além do âmbito da literatura. Ora o que as novas correntes propõem é uma autêntica revolução nos fundamentos do estatuto da série artística, revolução essa que assenta em grande medida em vincular a arte diretamente ao paradigma da verdade científica e do racionalismo cartesiano. O naturalismo tem no positivismo oitocentista a sua matriz filosófica, e, como observa Teófilo Braga em As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa, o positivismo mergulha as suas raízes mais profundas no cartesianismo (1892: 402). Por isso a 27 guerra que o naturalismo move à retórica recupera na sua essência a tópica da crítica racionalista e iluminista, reclamando para a arte um renovado estatuto de verdade. Em Le Roman Expérimental, Zola não deixa, ainda assim, de prestar o seu tributo ao papel dos românticos na renovação da linguagem poética: «La langue classique se mourait d’anémie; les romantiques sont venus lui donner du sang par la mise en circulation d’un vocabulaire inconnu ou dédaigné, par l’emploi de tout un monde d’images éclatantes, par une façon plus large et plus vivante de sentir et de rendre» (Zola, 1880: 65-6). Para além deste legado romântico ao nível do dicionário poético, Zola refere-se ainda ao alargamento temático do campo literário, que passa a acolher abertamente aspectos da realidade cuja presença não era anteriormente central: «Les poètes de 1830 avaient bien élargi le domaine littéraire en voulant introduire l’homme tout entier, avec ses rires et ses larmes, en donnant un rôle à la nature, mise en œuvre par Rousseau depuis longtemps» (1880: 66). No entanto, acrescenta, toda esta luta com o passado, esta afirmação do novo, a quebra dos espartilhos impostos pelos códigos estéticos clássicos, a recusa da mediação das poéticas canónicas no processo de criação literária, traduzir-se-ia afinal não numa proscrição da retórica, mas num confronto entre retóricas – o conflito entre neoclássicos e românticos é, nas suas palavras, uma «émeute de rhétoriciens» (1880: 65), ou uma «émeute de rhéteurs» (1880: 423). De resto o romantismo, tendo-se embora aberto ao contacto com uma realidade não mediada, acabava por negar essa mesma realidade e construir dela, segundo Zola, uma falsa representação: Mais ils gâtaient ces libertés conquises, ils en abusaient d’une étrange manière, en sortant du premier coup hors de l’humanité et hors des choses; par exemple, s’ils s’inquiétaient de la nature, s’ils la peignaient, au lieu de l’étudier comme un milieu exact complétant les personnages, ils l’animaient de leurs propres rêves, la peuplaient de légendes et de cauchemars; de même, pour les personnages, ils se flattaient d’accepter tout l’homme, chair et âme, et leur premier besoin était d’enlever l’homme dans les nuages, d’en faire un mensonge. (1880: 66) Desta forma, segundo a perspetiva naturalista, o romantismo instalava de novo a literatura no território da mentira e alimentava o distanciamento entre a obra e a realidade, nomeadamente através de uma linguagem enfática, pomposa e artificial, que acolhia desbragadamente todo um aparato de sentimentos e paixões. Isto é, em suma, sacrificava a verdade a um esteticismo que era, afinal, uma outra retórica: uma outra modalidade de interposição, entre a literatura e as verdades do mundo, de uma linguagem distorcida por um programa estético de cariz essencialmente formalista. 28 Júlio Lourenço Pinto não se afasta muito destes juízos na sua Estética Naturalista. Citando precisamente o nome de Zola, refere-se aos méritos e às fragilidades do romantismo de forma semelhante, isto é, compreendendo o papel que este desempenhou na renovação da linguagem poética e lamentando que essa renovação tenha desembocado numa retórica afinal tão desadequada à expressão da realidade como aquela que fora deposta: O movimento romântico, como afirma Zola com justo critério, era necessário; demoliu o convencionalismo que escravizava o pensamento e fez do escritor um artista livre. Somente a reforma ficou incompleta, desde que se desviou da senda por onde deveria ter-se internado com o seu estandarte vitorioso. Criou uma linguagem nova e alargou o domínio das imagens; mas o cenário de papelão, os títeres enfáticos de oca retórica ficaram, mudando apenas de forma. (1996: 27-28) Ora o naturalismo, em contraponto com as estéticas que o haviam precedido, propõe- se prescindir definitivamente da retórica, uma vez que a verdade (científica, exata, positiva) não precisaria de uma expressão que a ornamentasse; precisaria apenas de uma linguagem que a soubesse comunicar. A verdade, crê Zola, dispensa a sedução, não pretende lisonjear os sentidos – carece apenas de ser claramente apresentada à razão: «Et le naturalisme, je le dis encore, consiste uniquement dans la méthode expérimentale, dans l’observation et l’expérience appliquées à la littérature. La rhétorique, pour le moment, n’a donc rien à voir ici» (1880: 46). A defesa reiterada desta ideia torna-se exortação: há que abandonar todas as retóricas e concentrar o esforço de criação literária no emprego dos instrumentos metodológicos que o naturalismo põe ao serviço do escritor: Dès lors, […] je supplie les jeunes romanciers de se dégager de toutes les rhétoriques. La formule naturaliste est indépendante du style de l’écrivain, comme elle est indépendante des sujets choisis. Elle n’est, je le dis une fois encore, que la méthode scientifique appliquée dans les lettres. (1880: 270) O que o naturalismo tem para oferecer é, portanto, uma metodologia, e não uma linguagem. A principal qualidade estilística de uma obra reside na virtude de a linguagem não interferir no processo de comunicação das verdades que o escritor tiver conseguido alcançar através da aparelhagem científica fornecida pela metodologia do naturalismo: Au fond, j’estime […] qu’un langage n’est qu’une logique, une construction naturelle et scientifique. Celui qui écrira le mieux ne sera pas celui qui galopera le plus follement parmi les hypothèses, mais celui qui marchera droit au milieu des vérités. Nous sommes actuellement pourris de lyrisme […]; le grand style est fait de logique et de clarté. (1880 46-47) 29 Uma linguagem que seja a negação da retórica – eis, na sua expressão-limite, a ideia de estilo segundo o naturalismo. A retórica adequa-se à expressão do incerto, mas para exprimir a verdade é preciso uma nova linguagem literária, uma linguagem depurada dos contorcionismos estilísticos que nela se foram instalando e que foram moldando a sua identidade. O naturalismo incompatibiliza-se com a retórica na medida exata em que crê na verdade e crê que a comunicação dessa verdade exige que se superem as limitações de um paradigma de expressão essencialmente orientado para o próprio sinal. Ainda assim – e as ambivalências desta questão nunca serão inteiramente resolvidas –, proscrever a retórica não significa necessariamente proscrever o estilo; significa afirmar a inexistência de uma roupagem exterior, de um revestimento estilístico forjado pela escola naturalista e pronto a vestir qualquer obra que nela pretendesse matricular-se. Júlio Lourenço Pinto é claro quanto a este aspeto ao postular a necessidade do estilo para salvaguardar o estatuto artístico da obra literária, pese embora a dificuldade que lhe coloca a definição do conceito. Trata-se, porém, acima de tudo de um conceito cujas fronteiras, por imprecisas que sejam, não poderão tocar os territórios da retórica: Não é a fórmula naturalista que faz o estilo, mas o talento do escritor. O que se não acomoda com o naturalismo é a falta de estilo. […] A dificuldade consiste principalmente em precisar o que seja estilo, que é coisa muito diversa da retórica. Nem a retórica, o tom declamatório e pomposo, nem a nímia sobriedade que muitos preconizam, correndo risco de frisar pela penúria, pela aridez, pela monotonia, e de reduzir à fria uniformidade de um relatório a narração em que devem palpitar todos os frémitos de vida real. Só muito imperfeitamente se poderá fazer a pintura da vida, ferir a imaginação e despertar a emoção sem a beleza da frase e o encanto da forma. (1996: 75) Situado entre a artificialidade da retórica e a posição de radical (e caricatural) recusa de estilo defendida por João da Ega n’Os Maias19, as qualidades estilísticas que o naturalismo acolhe como válidas, e mesmo necessárias à certificação do estatuto estético da obra literária, segundo Lourenço Pinto, assentam numa linguagem que não só não ceda ao obscurecimento da sua referencialidade («o êxito do pensamento, como o do livro, depende essencialmente da expressão exata, límpida e luminosa que o traduza» – 1996: 76) como vise potenciar a sua capacidade de mostrar o mundo valendo-se da vitalidade do traço e do colorido das tintas de que o escritor deve fazer prova enquanto artista da palavra: 19 «Assim atacado, entre dois fogos, Ega trovejou: justamente o fraco do realismo estava em ser ainda pouco científico, inventar enredos, criar dramas, abandonar-se à fantasia literária! A forma pura da arte naturalista devia ser a monografia, o estudo seco de um tipo, de um vício, de uma paixão, tal qual como se se tratasse de um caso patológico, sem pitoresco e sem estilo…» (M: 164). 30 O romancista tem de ser necessariamente colorista, imaginoso sem artifício fantasista, eloquente sem entonos retóricos no descritivo que pinta com vigor e precisão a vida real, exato sem superfluidades nem exagero de minudências, límpido e vivaz no estilo sem derramadas eflorescências que prejudiquem a correção, a elegância e a nitidez do traço. A linguagem pode ficar verdadeira sem deixar de se impregnar no colorido, de que a natureza é a mais viva e inexcedível imagem. (1996: 80) Na verdade, o próprio Zola reconhece igualmente a existência de um estilo cujos processos se adequam melhor aos objetivos do programa naturalista: essa «ciência do estilo» (a expressão de Zola não podia matizar melhor a sua concessão ao reconhecimento dos méritos daquilo a que depois chama uma «retórica nova») encontra-se em Flaubert e nos irmãos Goncourt: Mon seul but est d’établir ici les sources du roman contemporain, d’expliquer ce qu’il est et pourquoi il est cela. Voilà donc les sources nettement indiquées. En haut, Balzac et Stendhal, un physiologue et un psychologue, dégagés de la rhétorique du romantisme, qui a été surtout une émeute de rhéteurs. Puis, entre nous et ces deux ancêtres, M. Gustave Flaubert d’une part, et de l’autre MM. Edmond et Jules de Goncourt, apportant la science du style, fixant la formule dans une rhétorique nouvelle. (1880: 423) A fórmula naturalista não é um estilo – mas há, então, um estilo em que ela adquire o estatuto de forma de arte superior. Trata-se, ainda assim, para Zola, de duas dimensões da obra literária cujos planos nunca se fundem: «À côté de la forme, du rythme et des mots, à côté du monument de pure linguistique, il y a la philosophie de l’œuvre. Elle peut apporter la vérité ou l’erreur, elle est le produit d’une méthode et devient fatalement une force qui pousse le siècle en avant ou le ramène en arrière» (1880: 61). Esta concessão a uma «nova retórica» que seja posta ao serviço de um programa puramente analítico de busca da verdade, a uma «nova retórica» que logre exprimir com intensidade artística, sem as distorcer nem mascarar, as conclusões dos inquéritos científicos que o naturalismo empreende sobre a mecânica das relações entre os homens e o meio, projeta-se como ideal de expressão literária, mais do que pelas suas qualidades estéticas, sobretudo pelas suas propriedades heurísticas. O critério definitivo de valoração do estilo passará sempre, segundo os pressupostos naturalistas, pela virtude que este demonstre de se deixar penetrar daquela «áspera verdade» que Stendhal inscreve como epígrafe de Le Rouge et le Noir. Mas, para que esse «style vraiment fort d’une littérature de vérité» (Zola, 1880: 22) se imponha de forma categórica, será necessário expurgar a linguagem literária da herança 31 retórica do romantismo. Ora este é um processo árduo, assente numa lógica de aperfeiçoamento lento, paciente, focado no futuro: «Jusque-là, nous planterons des plumets au bout de nos phrases, puisque notre éducation romantique le veut ainsi», escreve Zola; «seulement, nous préparerons l’avenir en rassemblant le plus de documents humains que nous pourrons, en poussant l’analyse aussi loin que nous le permettra notre outil» (1880: 22). O naturalismo é, assim, um projeto marcado também por um forte traço de idealismo, não só pela obsessão com que invoca – até com alguma ambiguidade – a verdade (muitas vezes a Verdade, maiusculada) como espaço identitário, como também pelo otimismo com que encara o seu próprio aperfeiçoamento enquanto metodologia de análise e mediação estético- científica da realidade. 1.2.1. O realismo: uma arte por vir No texto introdutório do volume coletivo Literatura e Realidade, Tzvetan Todorov escreve que, da perspetiva do seu contexto histórico de produção, «o realismo em literatura […] é um ideal: o da representação fiel do real, o do discurso verídico, que não é um discurso como os outros, mas a perfeição para a qual todos os discursos devem encaminhar-se». Assim, acrescenta Todorov, «qualquer revolução literária acontecia em nome de uma representação ainda mais fiel da “vida”» (Todorov, 1984: 9). Se a ideia de o discurso poder representar fielmente o real não resolve em absoluto a dicotomia entre linguagem e realidade, ou linguagem e ‘vida’ – antes fomentando aquilo a que Michel Rifaterre, na mesma obra, chama «ilusão referencial»20 –, a intromissão do adjetivo ‘verídico’ nesta síntese descritiva acrescenta um altíssimo desígnio àquele ideal, e é afinal a sua própria sustentação. O realismo assume-se no seu tempo como uma arte investida do estatuto de «perfeição para a qual todos os discursos devem encaminhar-se» 20 «As palavras, enquanto formas físicas, não têm qualquer relação natural com os referentes: são as convenções de um grupo, arbitrariamente ligadas a conjuntos de conceitos sobre os referentes, a uma mitologia do real. Esta mitologia, o significado, interpõe-se entre as palavras e os referentes. No entanto, os utentes da língua agarram-se à ilusão de que as palavras significam numa relação direta com a realidade, por razões práticas, tanto mais que fazem das coisas uma ideia em parte moldada pelos próprios conceitos do significado, como se as palavras engendrassem a realidade» (1984: 101). 32 precisamente na medida em que se pretende transcender enquanto arte e tocar os territórios da verdade. Na sua conferência sobre «A literatura nova (o realismo como nova expressão da arte)», de acordo com a reconstituição que dela António Salgado Júnior nos deixou, Eça postula precisamente que o realismo, como o entedia, não era «um simples modo de expor – minudente, trivial, fotográfico», mas «a análise com o fito na verdade absoluta» (apud Reis, 1990: 140)21. E, segundo o relato que o Diário de Notícias fez da conferência, Eça terá igualmente afirmado – de novo em sintonia com a definição de Todorov – o estatuto ideal do realismo, a sua natureza de estádio superior e provavelmente definitivo da evolução das artes: «O realismo é a arte do presente; poderia dizer, a do futuro» (apud Basto, 1924: 152). O realismo não é para Eça, portanto, apenas uma superação do romantismo – embora seja em contraponto com o romantismo que optará quase sempre por falar dele, insistindo nas respetivas diferenças no estilo, nos temas, nas ideias, no próprio conceito de arte que lhes subjaz. O realismo é para Eça, pelo menos no estádio de evolução das suas ideias em que se encontra neste ano de 1871, um ponto culminante de um processo evolutivo. É assim que o realismo, e depois principalmente o naturalismo22, tenderão a ver-se, enquanto expressões literárias (mais genericamente – artísticas) integradas num movimento 21 Cláudio Basto, citando o Diário de Notícias, regista ideia idêntica: «O seu processo é a análise, o seu fito a verdade absoluta» (1924: 152). 22 Eça refere-se frequentemente ao realismo de uma forma pelo menos equívoca, perfeitamente ajustável àquilo que depois se classificou como naturalismo (cf. Reis, 2001: 20: «A carta de Eça [a Rodrigues de Freitas, sobre o Realismo] não é expressiva só por se referir, explícita ou implicitamente, aos temas, estratégias e dominantes ideológicas que regem o Realismo. Para além disso, ela revela já uma espécie de intensidade programática que nos aproxima do Naturalismo […]»). A fluidez do campo conceptual associado aos dois termos é muito frequente na época: Júlio Lourenço Pinto, o mais destacado teorizador do naturalismo em Portugal, recusa a «subtileza da distinção» (1996: 27); Latino Coelho (1872: 178) hesita entre os dois conceitos; Alexandre da Conceição (1881: 107 e 109-10) atribui ao realismo características do naturalismo, etc. Lilian Hurst e Peter Skrine (1975: 14-20) recordam precisamente que os próprios representantes do naturalismo foram responsáveis por uma confusão que a crítica depois alimentou ao usarem os dois termos de modo mais ou menos indistinto, quando o realismo pressupõe, subjacente ao princípio de que «a Arte é, na sua essência, uma representação mimética objetiva da realidade exterior», uma atitude ideologicamente neutra, ao passo que o naturalismo, pelo contrário, é «uma tentativa para aplicar à literatura as descobertas e métodos da ciência do século XIX» (1975: 18-19). Carlos Reis, por seu lado, não reconhece inteiramente a neutralidade do realismo: «O Naturalismo coincide, em certos aspetos, com as preocupações socioculturais do Realismo, mas noutros aspetos acentua e extrema as suas tendências temáticas e ideológicas» (2001: 20; itálico meu). O que separaria o realismo do naturalismo seria, portanto, segundo Carlos Reis, o grau de investimento da obra literária de uma dimensão crítica e ideológica. Tematicamente, o naturalismo enveredará com frequência, ainda segundo Carlos Reis, pela distorção do mundo retratado pelo realismo, acentuando-lhe a nota mórbida: «Trata-se, em princípio, de privilegiar questões de índole social e cultural, em parte coincidentes com as que cabiam ao Realismo: educação, adultério, opressão, etc.; mas trata-se também, muitas vezes, de cultivar temas que refletiam uma preocupação “científica” incidindo sobre fenómenos deprimentes como o alcoolismo, a histeria, 33 global de ascensão da humanidade a um estádio superior de conhecimento e compreensão da realidade. O romantismo destruíra o formalismo clássico mas acabara por construir sobre essas ruínas um edifício não menos convencional; substituíra uma retórica por outra, deixando do lado de fora da série literária o mundo real. A principal acusação que se levanta contra o romantismo acusa-o de ser ideal, de ter horror à realidade. Nisto, de resto, romantismo e realismo estão de acordo (o romantismo acusará o realismo de convocar demasiada realidade para o seu interior23); a divergência de base situa-se na conceção de literatura que subjaz a cada uma das correntes: para o realismo a arte faz parte do mundo, ao passo que para o romantismo ela é um mundo à parte. O combate feroz ao idealismo romântico que o realismo empreende – e que está na base de algumas antinomias que a crítica da época propagou, como aquela que opõe o otimismo romântico ao pessimismo realista – não nos deve impedir, porém, de perceber alguns traços fortemente idealistas (e otimistas) do realismo. Antes de mais, embora o realismo considere a sua produção efetiva, mais do que um passo em frente, uma autêntica mudança de paradigma em relação aos princípios literários e às orientações filosóficas da escola romântica, a verdade é que irá tendencialmente projetar no futuro a realização plena do seu programa. Ao referir-se ao realismo como «a arte do futuro», Eça não estará apenas a afirmar a sua convicção de que o futuro confirmará a superioridade do realismo, o qual, por conseguinte, ocupará todo o espaço conceptual da criação artística; está seguramente também convicto de que esta nova expressão da arte teria ainda pela frente um percurso de aperfeiçoamento a realizar, de superação das suas próprias o roubo, a homossexualidade ou a alienação mental. E, neste aspeto, deve dizer-se que o Naturalismo acabou, não raro, por deslocar a sua atenção do que era típico (como acontecia com o Realismo) para o que aparece como excecional, flagrantemente patológico, mesmo, em certos casos, chocante» (2001: 22). António Apolinário Lourenço considera que a distinção entre as duas correntes é indispensável: «Na verdade, embora sejam consideradas muitas vezes como sinónimas, as designações de realista ou naturalista aplicadas a uma obra literária caracterizam em certos casos conceções estéticas divergentes ou quase antagónicas»; «se todo o Naturalismo é por definição realista, nem todo o Realismo é Naturalista» (2005: 23). 23 «Pintar um monte pelo lado onde se lhe eriça o tojo é pintá-lo com verdade, mas não será melhor reproduzir a encosta florida, por cujo dorso sobem os vinhedos, enroscam-se os pâmpanos, matizam-se as cores, serpeiam as águas, até que por fim os olhos se perdem no cimo, e depois nas nuvens, e depois em Deus?», escreve Eduardo Augusto Vidal (1872: 19), um dos poetas românticos mais frequentemente visados pelas farpas queirosianas. Mendes Leal escreve algo semelhante: «Falemos, digamos, representemos a verdade; mas a verdade bela, a verdade nobre, a verdade instrutiva; para as sombras, a verdade contraste; para dar em útil holocausto à sátira, a verdade censurável e punível. Paremos, porém, aí. “Nem todas as verdades se dizem,” aconselha o nosso velho rifão. Que se lucra em mostrar a verdade ignóbil, a verdade nauseante, a verdade pustulenta, a verdade calosa dos pés, disforme de corpo, estanhada de rosto? Exaltemos a verdade pura, simples e santa. Há outras, bem o sei. Mas é esta a que melhora, consola e honra a humanidade. Os apóstolos do realismo absoluto, tornando tudo do domínio da arte, aonde nos levariam, e aonde a levariam?» (1856: xxxi). 34 limitações. Muita da teorização do realismo tende a considerar incipientes e imperfeitas as obras efetivamente produzidas, preferindo remeter para um tempo por vir o advento de um estádio de maturação que se traduza na realização plena do seu programa. Isto é, se a principal crítica que o realismo aponta ao romantismo é o facto de a este repugnar a realidade e por isso operar sistematicamente a sua idealização, o realismo incorre logo à partida num exercício de idealização de si próprio. Num texto publicado n’As Farpas em março de 1872, Eça distancia-se programaticamente de O Mistério da Estrada de Sintra, romance que entre julho e setembro de 1870 publicara no Diário de Notícias em parceria com Ramalho Ortigão, considerando que ele enferma dos mesmos vícios que apontava ao romantismo24. No entanto, há um passo desse mesmo Mistério em que uma personagem, A. M. C., tece algumas considerações sobre a literatura que o filiam inegavelmente na corrente realista e positivista: Quando o romance, que é hoje uma forma científica apenas balbuciante, atingir o desenvolvimento que o espera como expressão da verdade, os Balzacs e os Dickens reconstituirão sobre uma só paixão um carácter completo e com ela toda a psicologia de uma época, assim como os Cuviers reconstituem já hoje um animal desconhecido por meio de um único dos seus ossos. (MES: 199) As ciências naturais constituem aqui o modelo de referência da literatura, e do romance em particular, o qual se propõe analogamente a compreensão de um grupo humano alargado a partir de um caso exemplar, superando assim o interesse pelo estritamente individual e atípico25, de que se nutria de preferência o romantismo. Nesse momento projetado, o romance terá atingido plenamente o seu desenvolvimento enquanto «forma científica» e será «expressão da verdade» – isto é, não querendo ser ideal à maneira dos românticos, a literatura apropria-se de um outro ideal, o das ciências, e quer explicar e corrigir o mundo. O realismo insurge-se contra a arte ideal do romantismo mas os seus postulados são eles próprios fortemente ideais: o tributo à verdade, o discurso verídico, mas também o facto de, perante a resistência da realidade a deixar-se apreender inteiramente pela obra atual, projetar no futuro o momento em que poderá dispor dos recursos metodológicos e expressivos que lhe permitam cumprir esse desígnio. Embora Sampaio Bruno (1984: 140) atribua este capítulo a Ramalho, os termos em que a ‘literatura nova’ é descrita não são muito 24 «Nós mesmos, que estamos aqui moralizando, escrevemos ambos um livro deplorável, que juntava à insignificância literária, a esterilidade moral – O mistério da estrada de Sintra. O que é esse livro? A idealização da catástrofe, o encanto terrível das desgraças de amor. Sobretudo do amor ilegítimo, culpado […]» (F: 428). 25 Embora depois tenha sido o próprio naturalismo a desenvolver a fixação pelo atípico – e a escorregar progressivamente para o decadentismo (cf. Reis, 2001: 22 – cit. supra: n. 22). 35 diferentes daqueles que Eça usa na sua conferência: trata-se de uma arte em formação, que se cumprirá plenamente no futuro e que aspira à verdade – que será «expressão da verdade». Uma formulação contemporânea da do Mistério e que com ela coincide no essencial lê-se em Luciano Cordeiro, que, em 1869, escreve o seguinte: «O romance positivo quando surgir há de considerar a virtude e o vício como termos correspondentes, na ordem sociológica, da saúde e da enfermidade, da normalidade e da aberração da ordem natural» (1869: 59; itálico meu). A crença na objetividade absoluta, científica, perante questões seculares da filosofia e da religião traduz-se numa projeção ideal na ‘literatura que há de vir’ de todo um pathos positivista. A partir do momento em que a literatura se vincula à ciência, ou à filosofia da ciência, ela fica como que indexada aos progressos científicos, sejam estes encarados como instrumentos que informam o trabalho do escritor, sejam simplesmente modelos e referências de um desenvolvimento que a literatura não pode deixar de acompanhar. Em última análise, a literatura é idealmente concebida como um reduto que não só se abre ao mundo como acabará mesmo por ser invadido e conquistado pela ciência, condição para participar plenamente da marcha triunfal do conhecimento humano, como expõe Zola em Le Roman Expérimental: Quand on aura prouvé que le corps de l’homme est une machine, dont on pourra un jour démonter et remonter les rouages au gré de l’expérimentateur, il faudra bien passer aux actes passionnels et intellectuels de l’homme. Dès lors, nous entrerons dans le domaine qui, jusqu’à présent, appartenait à la philosophie et à la littérature; ce sera la conquête décisive par la science des hypothèses des philosophes et des écrivains. On a la chimie et la physique expérimentales; on aura la physiologie expérimentale; plus tard encore, on aura le roman expérimental. C’est là une progression qui s’impose et dont le dernier terme est facile à prévoir dès aujourd’hui. (1880: 15) Perante o otimismo que subjaz à previsão de um futuro em que, expurgada de sentimento e insuflada de ciência, a literatura compreenderá o mundo e logrará exprimi-lo com uma precisão positiva, aquilo que ela no seu estado atual consegue efetivamente criar surge aos olhos de Zola como algo imperfeito, quer na precisão dos instrumentos científicos de análise da realidade, quer na configuração do estilo, da linguagem, da expressão dessa realidade (cf. supra: 31). O realismo é assim um projeto que se cumprirá no futuro porque está essencialmente ligado a uma lógica de aperfeiçoamento – também de autoaperfeiçoamento. Na sua atitude identitariamente crítica, não se deixa a si próprio do lado de fora, enquanto parte integrante de uma realidade para cuja regeneração se propõe contribuir. De resto, o método que adota (observar, estudar, experimentar, analisar…) é 36 exigente como nenhum outro26, pelo que o conceito de criação literária se transforma profundamente: o trabalho troca de lugar com a inspiração27, e trata-se, de resto, quase sempre de um trabalho ciclópico, interminável – o rastreamento exaustivo de uma realidade humana e social, que se pretende explicar em séries de romances que se desdobram em quadros sociais, em tipos humanos, em comportamentos críticos e no respetivo enquadramento explicativo… «Je me contenterai d’être savant», escreve Zola em 1869 (15r). O romance experimental será, portanto, na conceção epocal das conquistas do espírito científico e positivo que soprava, a última – e, percebe-se, a mais perfeita – criação: depois da química e da física experimentais seguir-se-á a fisiologia experimental, e finalmente o romance virá coroar a conquista definitiva do conhecimento da realidade. 1.2.2. Realismo e verdade António José Saraiva, em A Tertúlia Ocidental, sugere que a conferência de Eça sobre o realismo poderia intitular-se «Arte e verdade», sublinhando a matriz proudhoniana das ideias defendidas no Casino Lisbonense (1990: 150). Quinze anos mais tarde, no célebre prefácio a Azulejos, do Conde de Arnoso, Eça referir-se-ia ainda a essa «santa missão de verdade» de que estava investido o conceito de literatura professado na conferência do Casino e depois adotado em quase tudo o que fora escrevendo até essa data28. A invocação da verdade não é, 26 Escreve Zola: «Et j’ajouterai que les romanciers sont certainement les travailleurs qui s’appuient à la fois sur le plus grand nombre de sciences, car ils traitent de tout et il leur faut tout savoir, puisque le roman est devenu une enquête générale sur la nature et sur l’homme. […] Nous résumons l’investigation, nous nous lançons dans la conquête de l’idéal, en employant toutes les connaissances humaines» (1880: 36-37). Eça alude igualmente a este labor complexo, paciente e intérmino, em «Idealismo e realismo», o texto que terá esboçado para servir de prefácio à segunda edição de O Crime do Padre Amaro: «O quadro tem infelizmente lacunas, lados de natureza mal estudados, recantos de alma explorados incompletamente, amplificações, exageros de traço… É, no entanto, toda a soma de observação e de experiência que eu possuo sobre este elemento parcial da sociedade portuguesa. A outros, mais penetrantes e mais hábeis, compete recomeçar este estudo, e decerto com realidade superior. / É por meio desta laboriosa observação da realidade, desta investigação paciente da matéria viva, desta acumulação beneditina de notas e documentos, que se constroem as obras duradouras e fortes» (CIFM: 167). 27 A inspiração admite-a Zola como reduto da poesia, cujo papel no âmbito do naturalismo considera absolutamente secundário: «les poètes peuvent continuer à nous faire de la musique, pendant que nous travaillerons» (1880: 103). 28 «Somente em França, em Inglaterra, bem depressa os néscios compreenderam (como já muito bem tinham compreendido os malignos) que se não tratava de uma literatura expressamente libertina […] mas que se 37 porém, uma obsessão ideológica apenas para Proudhon, ou para Antero: é-o também para o positivismo, para o cientismo, para as mais importantes correntes de pensamento da época, e aquelas que mais direta e profundamente inspiraram a literatura que se fazia. Os avanços alcançados no âmbito das ciências da natureza alimentam a convicção de que as metodologias científicas são as únicas que permitirão à razão descobrir os processos que determinam os fenómenos do mundo físico e do mundo social, o que deixa do lado de fora qualquer interferência de natureza teológica ou metafísica na explicação do real. A verdade que a ciência persegue não é, portanto, a causa primeira, mas a causa imediata, as circunstâncias de produção do fenómeno, o processo que subjaz à transformação29. De resto, para o próprio Proudhon a noção de verdade chega a confundir-se com a noção de ciência30, entendida esta como um sistema de conhecimento conforme à realidade das coisas e deduzido da observação, e que é simultaneamente uma forma de compreender a realidade e uma via para o seu aperfeiçoamento31. Esta conceção de verdade está, por conseguinte, perfeitamente alinhada com o espírito positivista que se enraizara no pensamento europeu, tendo por base os modelos de cientificidade e de análise rigorosa que emanavam de campos como os da medicina experimental de Claude Bernard, do evolucionismo de Lamark e Darwin, do determinismo de Taine ou do positivismo sociológico de Comte. A frequência com que Proudhon invoca o termo ‘ciência’ e o faz estava em presença de uma larga e poderosa Arte, fazendo um profundo e subtil inquérito a toda a Sociedade e a toda a Vida contemporânea, pintando-lhe cruamente e sinceramente o feio e o mau, e não podendo, na sua santa missão de verdade, ocultar detalhe nenhum por mais torpe, como, na sua científica necessidade de exatidão, um livro de Fisiologia não pode omitir o estudo de nenhuma função e de nenhum órgão» (CP: 194). 29 Esta questão fundamental do positivismo é enunciada por Auguste Comte em 1830, no seu Cours de Philosophie Positive: «Le caractère fondamental de la philosophie positive est de regarder tous les phénomènes comme assujettis à des lois naturelles invariables, dont la découverte précise et la réduction au moindre nombre possible sont le but de tous nos efforts, en considérant comme absolument inaccessible et vide de sens la recherche de ce qu’on appelle les causes soit premières, soit finales» (1934: 8); em 1844, o mesmo tópico é retomado por Comte no Discours sur l’Esprit Positif (1844: 12-13), mas também, por exemplo, por Claude Bernard (1878: 137-138) e, consequentemente, por Zola: «Il est bien entendu que je parle ici du comment des choses, et non du pourquoi. Pour un savant expérimentateur, l’idéal qu’il cherche à réduire, l’indéterminé, n’est jamais que dans le comment. Il laisse aux philosophes, l’autre idéal, celui du pourquoi, qu’il désespère de déterminer un jour. Je crois que les romanciers expérimentateurs doivent également ne pas se préoccuper de cet inconnu, s’ils ne veulent pas se perdre dans les folies des poètes et des philosophes» (1880: 37). Em O Primo Basílio, Eça dedica-lhe toda uma cena (PB: 204-05). 30 «L’âme humaine est constituée en une sorte de polarité, CONSCIENCE et Science, en autres termes JUSTICE et Verité» (1965: 223). 31 «À force de s’instruire et d’acquérir des idées, l’homme finit par acquérir l’idée de science, c’est-à-dire l’idée d’un système de connaissance conforme à la réalité des choses et déduit de l’observation. Il cherche donc la science ou le système des corps bruts, le système des corps organisés, le système de l’esprit humain, le système du monde: comment ne chercherait-il pas aussi le système de la société?» (1867: 216). 38 coincidir com a ideia de verdade tem, naturalmente, de ser compreendida no contexto de afirmação do positivismo oitocentista (Guy-Grand, 1982: 65-6). No mesmo texto a que comecei por me referir, António José Saraiva destaca ainda Antero como influência maior da conferência queirosiana sobre o realismo – o outro vértice da ideia de Verdade que Eça invoca em defesa da nova corrente. Mas o conceito de verdade em Antero não é em primeira instância de ordem positiva. Em «Arte e Verdade», publicado em 1865 nas páginas de O Século XIX, Antero terminava de uma forma que poderia sintetizar o espírito da conferência de Eça: «A Arte é – a Verdade feita Vida!» (Quental, 1991: 41). No entanto, apesar do subtítulo «Carácter positivo da arte»32, a Arte é concebida aqui como uma superação da Religião e da Ciência: as três perseguem a verdade mas é só através da Arte que o espírito logra «perceber na correção inteira de suas linhas, a forma puríssima da Verdade» (1991: 37). O idealismo anteriano haveria de causar reconhecidamente uma forte impressão em Eça, em particular nos tempos do Cenáculo. A «verdade absoluta» a que Eça se refere na sua conferência talvez fosse algo mais do que a conformação estrita da nova literatura ao cruzamento dos ditames positivos e ideológicos que vinham de Taine e de Proudhon. Por um lado, como propõe Saraiva, haveria nela um eco do conceito de razão ideal de Antero, que, não obstante o seu esforço para conciliar a busca filosófica de um absoluto com as realidades concretas da ação humana, chega a conceber uma Verdade que é independente da temporalidade dos fenómenos, sublimação dos estados transitórios em que ela se pode manifestar. Além disso, se a verdade e a ciência são as novas deusas da literatura para a geração pós-romântica, são-no em boa medida também porque substituem o lugar de um absoluto que foi destronado mas de cuja aura participam ainda. É por isso que as referências à verdade enquanto aspiração suprema da ‘literatura nova’ são alimentadas em parte pelo programa positivista de combate ao idealismo e em parte pela aspiração a um estádio de conhecimento absoluto da realidade que é, ele próprio, ideal. A «santa missão de verdade» a que se refere Eça em 1886 aponta precisamente nesse sentido: a escolha dos termos é provocadoramente tributária, em primeira instância, de uma conceção teológica do mundo e não da estrita conceção científica de que o realismo se 32 Joel Serrão alerta para a inexistência de qualquer relação entre este adjetivo, «positivo», e a corrente ou o pensamento positivista: «E, antes do mais, esclareça-se que o adjetivo “positivo” do malogrado estudo está ali tomado na aceção corrente (“certo, real, verdadeiro”) sem específica conotação “positivista”» (Quental, 1991: 189). 39 reclama representante. Com efeito, o que impressiona mais no amplo movimento de afirmação do realismo, e depois do naturalismo, é o otimismo quase apostólico com que se anuncia uma nova era; a ciência substituía a religião – e a verdade racional que ela revelava ocupava, no quadro estrutural do imaginário da época, um lugar de certo modo análogo ao da verdade de fé33. A invocação sistemática da ideia de verdade por parte da nova corrente foi já observada por Carlos Reis, que a lê sobretudo como expressão da orientação pedagógica que subjaz ao realismo (2001: 91). Reis cita Alexandre da Conceição («Hoje a literatura, como a ciência e como a arte, tem uma só divisa comum: – A verdade, só a verdade e sempre a verdade») e Moniz Barreto («A arte é um processo para descobrir e exprimir a verdade»); o termo, de facto, adquire quase o estatuto de uma obsessão identitária na literatura da época e exprime não raramente uma ambição de contornos equívocos. Os irmãos Goncourt, no prefácio à primeira edição de Germinie Lacerteux, datado de outubro de 1864, atribuem à nova literatura que desponta o alto desígnio de perseguir a Arte e a Verdade: Aujourd’hui que le Roman s’élargit et grandit, qu’il commence à être la grande forme sérieuse, passionnée, vivante, de l’étude littéraire et de l’enquête sociale, qu’il devient, par l’analyse et par la recherche psychologique, l’Histoire morale contemporaine, aujourd’hui que le Roman s’est imposé les études et les devoirs de la science, il peut en revendiquer les libertés et les franchises. Et qu’il cherche l’Art et la Vérité […]. (1921: 6) No entanto, a ilustração definitiva do estatuto obsessivo a que me refiro é, sem dúvida, Le Roman Expérimental, de Zola, onde o conceito (e não meramente a palavra) é invocado uma boa centena de vezes. Teófilo Braga, apesar das reservas que algumas realizações concretas da literatura realista lhe suscitam, não hesita naturalmente em opor, citando o mesmo Zola (de Documents Littéraires), a verdade do naturalismo à falsidade do romantismo – um tópico recorrente da crítica defensora das novas correntes: «A evolução era fatal, tudo devia convergir para este protesto contra a fantasia desgrenhada, para esta reação do verdadeiro contra o falso» (1892: 315). Entretanto, para Sérgio Castro «o realismo tem um ideal, princípio a que sempre aspira nas suas várias manifestações: a verdade» (apud 33 António Apolinário Lourenço chama a atenção para a adoção do léxico do sagrado num teórico como Lourenço Pinto: «E a presença de um vocabulário proveniente do campo semântico específico do sagrado (dogma, doutrina, fé, mártires, envangelizadores…), tem o seu ponto culminante no parágrafo que faz de Émile Zola um mártir da “religião do dever”, entregue ao “trabalho nauseante de aplicar um cautério às chagas sociais”» (2005: 294). 40 Simões, 2000: 132); segundo Teixeira de Queirós, «[a] verdade e só a verdade, procurada sem partido e sem rancor, adquirida com a maior honradez, é o que deve preocupar o analista» (1879: [vii]); e, de acordo com Teixeira Bastos, «[o] naturalismo na poesia, como em todas as outras manifestações artísticas, no romance, na escultura, na pintura, etc., é apenas a verdade na Arte» (apud Lourenço, 2005: 228). Igualmente sem qualquer pretensão de exaustividade, recorde-se ainda que Eça, n’As Farpas, sustenta que «a tinta moderna é diluída em verdade» (F: 413), ao contrário do que acontecia com a literatura glorificadora que a precedeu; que, em «Idealismo e realismo», afirma ser objetivo do romance realista «surpreender a verdade»34; que, no prefácio a Azulejos, do Conde de Arnoso, se intitula «um Renegado do Idealismo, um servente da Rude Verdade, um desses ilegíveis […] que se chamam “Naturalistas” e que têm a alcunha de “Realistas”» (CP: 192), bem como «um desses esgaravatadores de Verdades que foçam nos monturos humanos» (CP: 195-96). Mas, entre o projeto de levar os seus leitores a «ver verdadeiro» (CP: 109) através d’As Farpas e a «santa missão de verdade» a que ainda se refere volvidos quinze anos, haverá uma sobreposição exata de conceitos? Creio ser possível distinguir pelo menos três diferentes aceções no uso de que o termo ‘verdade’ é objeto no contexto de surgimento e afirmação do realismo e do naturalismo; de cada uma delas se ocuparão os próximos pontos. 1.2.2.1. Verdade e mimese Um primeiro conceito de verdade pode ser definido como a conformidade ao real tal como ele se oferece à observação. O que o discurso realista persegue em primeira instância é uma representação do real através da qual o mundo seja reproduzido tal como é empiricamente percebido. É o conceito de literatura como espelho do mundo de Stendhal35, 34 «Se as minhas [obras] são fracas e efémeras, é que eu não soube surpreender a verdade com suficiente penetração, e não provém decerto de que o método não seja eficaz» (CIFM: 167-68). 35 A fórmula é tomada a Saint-Réal («Un roman: c’est un miroir qu’on promène le long d’un chemin»), servindo de epígrafe ao cap. XIII de Le Rouge et le Noir (Stendhal, 1964: 100); é retomada no cap. XIX, e em torno dela desenvolve-se uma reflexão que antecipa uma discussão que se travará mais tarde acerca do naturalismo: «Eh, monsieur, un roman est un miroir qui se promène sur une grande route. Tantôt il reflète à vos yeux l’azur des cieux, tantôt la fange des bourbiers de la route. Et l’homme qui porte le miroir dans sa hotte sera par vous accusé d’être immoral! Son miroir montre la fange, et vous accusez le miroir! Accusez bien 41 e é nesta aceção, de resto, que o realismo pode ser entendido como uma categoria meta- histórica, transcendendo assim uma estrita categorização periodológica36. O primado da realidade sobre a criação imaginativa na construção da obra literária representa a rutura de base com o romantismo, que reagirá com escândalo e indignação à invasão da esfera literária por notações de um real a que não reconhecia dignidade estética; do outro lado, a clave inventiva romântica era avaliada, não intrinsecamente, mas na sua relação com esse mesmo real, e considerada construída, convencional e falsa. Isso mesmo afirmam os irmãos Goncourt no início do prefácio à primeira edição de Germinie Lacerteux: «Le public aime les romans faux: ce roman est un roman vrai./ Il aime les livres qui font semblante d’aller dans le monde: ce livre vient de la rue» (1921: 5). É claro que, como nota Jakobson, não é incomum uma corrente estético-literária reclamar a sua superioridade afirmando captar e exprimir melhor a realidade do que aquelas sobre as quais se quer impor37. O realismo, porém, tem a singularidade de procurar impor-se através de uma espécie de negação sacrificial e simultânea dos dois pilares que, isolada ou simultaneamente, sempre sustentaram o edifício literário: por um lado a criação, a imaginação; por outro o processo estilístico, a linguagem. Em compensação, estreitando a espessura da invenção e da linguagem, propunha-se acolher a realidade em toda a sua extensão («Nous disons tout, nous ne faisons plus un choix», escreve Zola – 1880: 127), observando-a em vez de a imaginar e reproduzindo-a sem os artificialismos retóricos que apontava ao romantismo. É precisamente nestes termos que Eça se refere a O Brasileiro Soares, de Luís de Magalhães, no prefácio que escreveu a este romance, enaltecendo-lhe as qualidades literárias de observação estrita e de expressão não-retórica: «O seu livro, caro Luís, tem a realidade bem observada e a observação bem exprimida – as duas qualidades supremas, as que se devem procurar antes de tudo na obra de Arte, onde outrora se admirava principalmente a imaginação e a eloquência» (CP: 185). No mesmo sentido, Lourenço Pinto escreve: «Antepõe-se, porém, a observação à imaginação, porque, em concordância com o nosso critério filosófico, para se fazer uma obra de arte verdadeira, força é que a prioridade plutôt le grand chemin où est le bourbier, et plus encore l’inspecteur des routes qui laisse l’eau croupir et le bourbier se former» (1964: 361). 36 Para além de Auerbach (2002), cf. tb. Roman Jakobson (1987: 99-100); Darío Villanueva (1992: 20-31); Carlos Reis (2001: 15-18). Este estatuto meta-histórico do realismo é, de resto, evidente para Eça de Queirós, que o invoca quer em «Idealismo e realismo» (CIFM: 179), quer no prefácio a Azulejos (CP: 195). 37 «Os clássicos, os sentimentalistas, em parte os românticos, até os “realistas” do século XIX, numa grande medida os decadentes, e finalmente os futuristas, os expressionistas, etc., afirmaram muitas vezes com insistência que a fidelidade à realidade […] é o princípio fundamental do seu programa estético» (1987: 100). 42 pertença à observação, que é o processo primário para constatar o que é verdadeiro e conforme com a natureza» (1996: 18). Teófilo Braga, mais tarde, sintetizará estas ideias da seguinte forma: «O Realismo na Arte é o esforço justo e inteligente para comunicar diretamente com a natureza, tomando a verdade do concreto como a expressão ideal que se procura» (1892: 298). Jaime Batalha Reis, no prefácio a Prosas Bárbaras, depois de nos traçar o retrato de um Eça boémio e romântico nos primeiros anos de atividade literária, assinala a conferência de 1871 sobre o realismo como um momento crucial na evolução do seu conceito de obra de arte: ela esvazia-se do primado da subjetividade autoral e o mundo, na sua realidade objetiva, vem ocupar esse lugar: «O fim da Arte foi, doutrinariamente, desde então, para Eça de Queirós, a reprodução exata da natureza, da realidade, impessoal, impassível» (Reis, s/d: 45). Fialho, a propósito de O Crime do Padre Amaro, dirá que se trata de uma obra-prima, igual às melhores que a admiração universal tem consagrado, porque ninguém como Eça de Queirós compreendeu melhor, com a sua prodigiosa sagacidade de artista, como o romance moderno aspira a ser a fotografia da sociedade, surpreendida no seu labutar incessante ou na sua atonia de decadência – manifestação de arte das mais complicadas e esplêndidas. ([1969]: 113). Esta celebração de uma espécie de ‘ideal fotográfico’ para o romance radica, naturalmente, na convicção de que, raspando a linguagem literária das espessas camadas de retórica que sobre ela se haviam depositado («cascalho de retórica», chama-lhe Eça – CP: 193), se encontraria uma linguagem transparente, cristalina, capaz de comunicar diretamente o real. Esse apagamento programático da linguagem é igualmente acompanhado por um sacrifício do próprio estatuto simbólico tradicional do escritor, que tenderá a explorar analogias que o afastam da qualidade de criador e aproximam da figura do cientista social (sociólogo, historiador) ou do cientista da natureza (zoólogo, anatomista, fisiologista). E é precisamente este ascendente da ciência sobre a literatura que está na base da segunda aceção do termo ‘verdade’, abordada na próxima secção. 43 1.2.2.2. Verdade e ciência No momento em que o conceito de observação deixa de ser empírico e passa a designar o instrumento axial de uma metodologia positiva cujo objetivo é a validação de teorias científicas, é a própria noção de verdade que sofre uma modificação substancial. O real torna-se laboratório e o escritor assume o papel de homem de ciência. A observação do real deixa de ser ‘desinteressada’; torna-se, efetivamente, experimentação, isto é, uma observação enquadrada por determinados parâmetros e com um objetivo definido. A verdade neste momento já não designa apenas a adequação da representação aos aspetos imediatamente percetíveis da realidade; ela diz respeito ao conhecimento da mecânica dos fenómenos naturais e das engrenagens sociais, que permitem compreender as dinâmicas do desenvolvimento do indivíduo integrado num contexto. Fialho explica como procede o romance naturalista com a sua personagem: De episódio em episódio, reconstrui-lhe o passado; por comparações e deduções hábeis infere a lei desse animal que obedece na vida, como escravo, a um código que lhe impõem a natureza da casta a que pertence, as condições em que os [sic] desenvolveram e a energia vital de que dispõe. (apud Lourenço, 2005: 246) Se o homem é a máquina de engrenagens ordenadas que Taine descreve no prefácio aos Essais de Critique et d’Histoire (1858: ii), o romance é o laboratório ideal para estudar os seus comportamentos. Em Le Roman Expérimental, Zola explora ao limite esta articulação entre a literatura e a ciência: […] le roman expérimental est une conséquence de la révolution scientifique du siècle; il continue et complète la physiologie, qui elle-même s’appuie sur la chimie et la physique; il substitue à l’étude de l’homme abstrait, de l’homme métaphysique, l’étude de l’homme naturel, soumis aux lois physico-chimiques et déterminé par les influences du milieu; il est en un mot la littérature de notre âge scientifique, comme la littérature classique et romantique a correspondu à un âge de scholastique et de théologie. (1880: 22) Teixeira Bastos, na Revista dos Estudos Livres, escreve que «[o] romance ou o conto naturalista deve ser apenas uma série mais ou menos extensa de causas e de efeitos, a explicação de um certo número de factos pela sua filiação histórica e natural» (apud Lourenço, 2005: 212). A atitude científica postulada por Zola faz escola. Como se sabe, a principal inspiração de Zola, ao conceber o seu Le Roman Expérimental, é a Introduction à l´Étude de la Médecine Experimental, de Claude Bernard – embora este, como lembra António 44 Apolinário Lourenço (2005: 70), tivesse deixado à margem do âmbito da ciência a arte e a literatura, que considerava criações espontâneas do espírito. Zola, no entanto, não tem grandes dúvidas de que a ciência se constituirá como uma rede de conhecimento global do mundo – e, portanto, do homem em todas as suas dimensões e manifestações38. Em Os Maias, Carlos da Maia identificará competentemente, embora em tom crítico, os postulados científicos desta nova literatura39; eles são, de resto, enunciados por quase todas as vozes que se empenharam na divulgação – e muitas vezes na defesa – do naturalismo. A euforia cientista e positivista do século XIX, antes de se resolver na aguda crise existencial do crepúsculo do século40, entrou triunfante em todas as áreas do labor humano. Teixeira de Queirós, logo na abertura do «Prólogo» a Os Noivos, filia a sua obra no espírito positivista, coloca-lhe o rótulo de romance crítico e enaltece-lhe as qualidades científicas: «O seu ideal é o mais simples e honrado; os seus processos literários os mais científicos e verdadeiros» (1879: [v]); pela mesma altura, Alexandre da Conceição vincula igualmente a literatura realista aos métodos e à filosofia do positivismo: «Ao realismo, impessoal, crítico, despreocupado e frio, corresponde o positivismo científico, com todo o seu rigor de método, com toda a sua indiferença religiosa, com a sua profunda compreensão do dever e do direito» (1881: 106); Teófilo Braga, em As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa, procede exatamente do mesmo modo: Para um espírito dirigido pela filosofia positiva, isto é, pela doutrina que primeiro coordenou em um todo sistemático os fenómenos sociais, submetendo-os à observação e previsão científicas, como qualquer outra ordem de fenómenos da natureza, o romance é uma forma da arte em que se estudam, como em um laboratório de experimentação sociológica, os diversos conflitos do homem com o seu meio, na luta das noções morais, dos interesses, das paixões e das perversões. (1892: 294) 38 «Un jour, la physiologie nous expliquera sans doute le mécanisme de la pensée et des passions; nous saurons comment fonctionne la machine individuelle de l’homme, comment il pense, comment il aime, comment il va de la raison à la passion et à la folie; mais ces phénomènes, ces faits du mécanisme des organes agissant sous l’influence du milieu intérieur, ne se produisent pas au dehors isolément et dans le vide. L’homme n’est pas seul, il vit dans une société, dans un milieu social, et dès lors pour nous, romanciers, ce milieu social modifie sans cesse les phénomènes. Même notre grande étude est là, dans le travail réciproque de la société sur l’individu et de l’individu sur la société. Pour le physiologiste, le milieu extérieur et le milieu intérieur sont purement chimiques et physiques, ce qui lui permet d’en trouver les lois aisément. Nous n’en sommes pas à pouvoir prouver que le milieu social n’est, lui aussi, que chimique et physique. Il l’est à coup sûr, ou plutôt il est le produit variable d’un groupe d’êtres vivants, qui, eux, sont absolument soumis aux lois physiques et chimiques qui régissent aussi bien les corps vivants que les corps bruts» (1880: 18-19). 39 «Carlos declarou que o mais intolerável no realismo eram os seus grandes ares científicos, a sua pretensiosa estética deduzida duma filosofia alheia, e a invocação de Claude Bernard, do experimentalismo, do positivismo, de Stuart Mil e de Darwin, a propósito duma lavadeira que dorme com um carpinteiro!» (M: 164). 40 Uma leitura sintética desta questão encontra-se em Pires, 2007. 45 A verdade que decorre desta assumida filiação científica do naturalismo traduz-se, em última instância, numa epistemologia. Trata-se de fazer o cerco total à realidade: a cartografia paciente das categorias tipológicas e contextuais, a classificação dos documentos humanos, a análise dos processos vitais, o estudo dos temperamentos, a decifração dos processos psíquicos. «Le naturalisme est purement une formule, la méthode analytique et expérimentale», escreve Zola (1880: 93). Se Mallarmé estava convencido de que todo o método é uma ficção (1998: 872), o naturalismo, pelo contrário, concebe o seu método como uma máquina de gerar verdades: qualquer parcela da realidade que seja abordada através da sua lente, exposta à incidência do método, acabará por descobrir os seus segredos ao escritor. Eça dirá em 1892, já na fase de crise do naturalismo, que o positivismo que o sustentava «se considerava o incontestado senhor das inteligências», em virtude da «verdade e utilidade das suas fórmulas» (TI, IV: 354) – isto é, constatando que a verdade reside na própria fórmula: «Toda a diferença entre o idealismo e o naturalismo está nisto. O primeiro falsifica, o segundo verifica» (CIFM: 180-81). Por oposição à ideia de um romantismo ‘gerador de falsidades’, poderíamos conceber um método gerador de verdades: assim é o naturalismo. 1.2.2.3. Verdade e progresso A nova atitude científica do escritor traduz-se numa consciência acrescida da sua responsabilidade social e da importância da sua intervenção pública. Esta transformação tem sugestivamente alguns pontos em comum com aquela de que Eça nos dá testemunho ao registar a transformação que o Cenáculo sofreu com a chegada de Antero: escreve Eça que o «alarido lírico-filosófico» deu lugar ao estudo de Proudhon, «nos três tomos da Justiça e a Revolução na Igreja, quietos à banca, com os pés em capachos, como bons estudantes». Do regime anterior só poderiam sair, «além da chalaça, versos satânicos, noitadas curtidas a vinho de Torres, e farrapos de Filosofia fácil»; do estudo sairiam «as Conferências do Casino, aurora dum mundo novo» (AOD: 306). 46 Precisamente acerca das Conferências, Eça identificaria n’As Farpas a sua «intenção científica» (tentando negar que lhes subjazesse uma «atitude política») e sublinharia a «serenidade filosófica» que as animava (F: 76-7). Trata-se de afirmar a natureza desapaixonada da atitude através da qual se encara o mundo, e esse é igualmente o princípio da literatura naturalista, que reclama (ou afeta) um semelhante desapego emocional pelos objetos sobre os quais se debruça, o despojamento de qualquer partis-pris que promova uma interferência afetiva na análise do objeto41. A célebre fórmula de Taine «Le vice et la vertu sont des produits comme le vitriol et le sucre», que Zola adota como epígrafe da primeira edição de Thérèse Raquin, representa bem esta atitude. Luciano Cordeiro, num passo já citado de um texto de 1869, não anda muito longe dessa formulação (cf. supra: 35), e Eça há de glosá-la igualmente, no texto em que traça o perfil de Ramalho Ortigão: Constitucionais, Socialistas, Miguelistas e Jacobinos, de resto para mim, como romancista, são todos produtos sociais, bons para a Arte, quando são típicos, todos igualmente explicáveis, todos igualmente interessantes; o dever do artista é estudá- los, como o botânico estuda as plantas, sem se importar que seja a beladona ou a batata, que envenenem ou nutram. (CP: 115) No entanto, esta serenidade (ou esta indiferença) nem sempre se articula em perfeita harmonia com a crescente convicção de que a nova literatura tem no mundo um lugar crucial; com a convicção de que lhe está reservado o lugar de farol da humanidade. O alcance último da verdade que se procura não é apenas a compreensão do fenómeno, o progressivo mapeamento racional do mundo; é a tradução civilizacional desses desenvolvimentos. Ora este objetivo derradeiro é aquele que alimenta o registo mais entusiástico. Para Júlio Lourenço Pinto, a verdade é a dádiva da ciência que permite ao homem conhecer o mundo e programar o seu futuro: O século é essencialmente científico; a ciência, cujos horizontes tanto alargam os métodos exatos e positivos, põe ao alcance da humanidade o conhecimento da 41 Cf. «Voilà donc le rôle moral du romancier expérimentateur bien défini. Souvent j’ai dit que nous n’avions pas à tirer une conclusion de nos œuvres, et cela signifie que nos œuvres portent leur conclusion en elles. Un expérimentateur n’a pas à conclure, parce que, justement, l’expérience conclut pour lui. Cent fois, s’il le faut, il répètera l’expérience devant le public, il l’expliquera, mais il n’aura ni à s’indigner, ni à approuver personnellement: telle est la vérité, tel est le mécanisme des phénomènes; c’est à la société de produire toujours ou de ne plus produire ce phénomène, si le résultat en est utile ou dangereux. On ne conçoit pas, je l’ai dit ailleurs, un savant se fâchant contre l’azote, parce que l’azote est impropre à la vie; il supprime l’azote, quand il est nuisible, et pas davantage. Comme notre pouvoir n’est pas le même que celui de ce savant, comme nous sommes des expérimentateurs sans être des praticiens, nous devons nous contenter de chercher le déterminisme des phénomènes sociaux, en laissant aux législateurs, aux hommes d’application, le soin de diriger tôt ou tard ces phénomènes, de façon à développer les bons et à réduire les mauvais, au point de vue de l’utilité humaine» (1880: 28-29). 47 verdade que lhe dá a consciência lúcida do seu destino. Sob esta influência da ciência, que penetra luminosa e cada vez mais fundo nas caligens do incognoscível, a humanidade renova-se, e o homem moderno, tão distanciado do homem antigo pelas conceções novas do universo, orienta-se para outros ideais. (1996: 17) Desta forma, a verdade enquanto lei científica, enquanto realidade exterior ao homem, torna-se princípio de orientação existencial no momento em que ela lhe confere a possibilidade de controlar o mundo, de o transformar segundo um programa que investe de sentido a sua existência. É a fórmula de Jacinto no auge da sua vigência: suma ciência × suma potência = suma felicidade (CS: 17). A verdade científica substitui Deus quando o homem volta a morder o fruto da árvore da Ciência e por esta via crê poder ter o controlo definitivo sobre o seu destino. «É o inverso da tradição bíblica; é o paraíso no fim», escreve Machado de Assis, que se refere igualmente à «vocação social e apostólica» do realismo (1955: 42). A explicação do mundo permite dar um sentido (na dupla aceção de orientação e significado) à existência, porque no horizonte está a ascensão a um estádio superior de compreensão do mundo, dos homens, das dinâmicas sociais e individuais, e, em última instância, a aquisição do domínio sobre o bem e o mal, sobre a virtude e o vício. Teófilo exprime deste modo essa aspiração ascensional da literatura: «Para que o realismo seja a forma definitiva da literatura positiva, é necessário que, além da verdade da forma ou expressão, sirva com essa verdade uma conceção, enfim, o intuito de uma sociedade que procura as vias do seu aperfeiçoamento» (1892: 301). Mas ninguém exprimiu tão bem esta convicção como Zola, em Le Roman Expérimental: Quand les temps auront marché, quand on possédera les lois, il n’y aura plus qu’à agir sur les individus et sur les milieux, si l’on veut arriver au meilleur état social. C’est ainsi que nous faisons de la sociologie pratique et que notre besogne aide aux sciences politiques et économiques. Je ne sais pas, je le répète, de travail plus noble ni d’une application plus large. Être maître du bien et du mal, régler la vie, régler la société, résoudre à la longue tous les problèmes du socialisme, apporter surtout des bases solides à la justice en résolvant par l’expérience les questions de criminalité, n’est-ce pas là être les ouvriers les plus utiles et les plus moraux du travail humain? (1880: 24) Noutro ponto da mesma obra, Zola projeta no futuro a fundação, devida ao naturalismo, de uma sociedade regida pela lógica e pelo método – logo, também por uma moral definitiva, geométrica, uma vez que, inevitavelmente, a ciência governará ainda o plano ético: «Du moment oú nous sommes la vérité, nous sommes la morale» (1880: 84). É esta atitude que leva Machado de Assis a ver na corrente naturalista «um otimismo, não só 48 tranquilo, mas triunfante» (1955: 182)42. A toda esta projeção no futuro de uma realização plenamente conseguida do programa naturalista subjaz, de facto, uma crença no progresso, alimentada pelo positivismo, e também, pelo menos no caso de Eça, pelas doutrinas socialistas (a ideia de progresso é, como se sabe, fundamental em Proudhon – como também em Michelet, de resto). O pensamento determinista, por um lado, permitia explicar os fenómenos atuais e, por outro, alimentava a convicção de que se poderiam condicionar as circunstâncias determinantes daquilo que viriam a ser os factos futuros. Não foi, no entanto, assim que realismo e naturalismo foram recebidos pela maior parte dos seus críticos – e também não foi assim que mesmo os seus representantes se reconheceram sempre. O próprio Teófilo haveria de apontar à literatura representativa destas correntes a carência de tipos positivos e a excessiva incidência sobre os aspetos mais baixos da realidade43. Eça regista a forma muitas vezes pouco esclarecida como a sensibilidade da época, educada pela matriz romântica, vinculou ao realismo e ao naturalismo as ideias de grosseria e sujidade, associando-lhes, mesmo para lá da estrita vigência literária, todas as manifestações da ordem do sórdido, do imundo, do bestial44. A crítica à nova literatura centrar-se-ia acima de tudo nas temáticas impróprias: o enfoque nos lados mais obscuros da humanidade sustenta um importante núcleo de críticas feitas à literatura realista e naturalista45. Mas os seus representantes e doutrinadores tendem a enquadrar essas 42 Acrescenta ainda Machado de Assis: «De quando em quando aparece a nota aflitiva ou melancólica, a nota pessimista, a nota de Hartmann; mas é rara, e tende a diminuir; o sentimento geral inclina-se à apoteose […]» (1955: 183). 43 «A arte e a literatura terão a sua parte negativa, atacando as instituições anacrónicas, e na sua missão positiva definindo o estado normal para que avançamos»; no entanto, Teófilo vê o Realismo estacionado na fase negativa, e com os alvos trocados: «em vez de atacar a família, ou o casamento, ou o pudor ou o dever, ou qualquer fatalidade orgânica, como se vê no realismo, há a demolir o clericalismo, o monarquismo, o militarismo, o argentarismo, e outras muitas tradições e desigualdades que embaraçam a legítima atividade humana» (1892: 302). 44 «Não tens tu reparado que, quando um jornalista, copiando no seu jornal com pena hábil a Parte de Polícia, que é o roast-beef da Imprensa, menciona um bruto que proferiu palavras imundas, nunca deixa de lhe chamar com uma ironia cujo brilho raro o enche de justo orgulho, – discípulo de Zola? Não tens notado que nos Periódicos, quando se quer definir uma maneira especial de ser torpe, se emprega esta expressão consagrada – à Zola? Não tens tu visto que, ao descrever um caso sórdido ou bestial, o homem de Gazeta acrescenta sempre, com um desdém grandioso: «Para contar bem como tudo se passou precisávamos saber manejar a pena de Zola»? Assim é, assim é! Estranha maravilha da Asneira! O nome do épico genial de Germinal e da Œuvre serve para simbolizar tudo que, em atos e palavras, é grosseiro e imundo!» (CP: 193). 45 Thérèse Raquin foi recebido em França com acusações de imoralidade, obscenidade e pornografia, como se lê no prefácio que Zola escreve para a segunda edição do romance (1868: i-ix), e para muitos, como Pinheiro Chagas, o romancista francês tornou-se a personificação do «grande corruptor, aquele cujos quadros lascivos inflamam diretamente os sentidos» (apud Pimpão, s/d: xvii). Em França, Brunetière escrevia que o naturalismo «ne recule ni devant l’indécence ni devant la trivialité, la brutalité même», dirigindo-se «aux instincts les plus grossiers des masses» (1875: 701). É, portanto, natural que em Portugal a sensibilidade instalada reagisse de forma semelhante: Arnaldo de Oliveira considera que ele «[p]rofunda tudo, e não há abismos que o façam 49 incidências temáticas num desígnio programático mais ambicioso: trata-se, ao deslocar a lente do romance para aquelas regiões normalmente consideradas indignas do olhar do artista, e por isso situadas no lado oculto da esfera literária, de inscrever o romance na própria realidade enquanto motor do seu aperfeiçoamento. Assim, quando Júlio Lourenço Pinto associa naturalismo e pessimismo, esse pessimismo é objeto de uma leitura que o vincula a uma atitude interventiva e progressista: Este ideal tem-no o naturalismo e por isso mesmo ele é pessimista. […] [N]ão o satisfazendo o estado moral, intelectual e social da humanidade a sua crítica não pode ser otimista. O otimismo é o reduto da banalidade e da rotina: quando o espírito se conforma acomodaticiamente com tudo o que o circunda, manifesta-se a impossibilidade de um esforço qualquer para melhorar e progredir. (1996: 44) Nesta perspetiva, a incidência sobre os aspetos baixos da realidade não traduziria a manifestação de uma sensibilidade ‘doente’ (como acontecerá posteriormente quando o decadentismo começar a afirmar-se), sendo antes a expressão de um desígnio programático de denúncia e superação dos vícios tematizados. É nestes termos que Eça se pronuncia sobre Os Noivos, de Teixeira de Queirós: «Dê-nos na mesma corrente de arte, e com igual talento outros [quadros] da abjeta Lisboa – é tudo o que lhe peço: e creia que terá feito um serviço social» (Cor, I: 238)46. Assim, o reflexo implacável de uma realidade suscetível de ferir a sensibilidade social é, afinal, o preço do progresso: é a «amarga ciência da vida», como lhe chama Zola47. À sensibilidade dominante da época, pareceria sem dúvida que esta literatura nova tinha algo contra a espécie, como escreve Eduardo Augusto Vidal em 187248, e é natural que a exposição instrumental do feio ou do abjeto promovesse fenómenos de adesão ou de aversão epidérmica às suas realizações literárias, mas qualquer destas atitudes corresponderia recuar, nem imundície que lhe faça voltar o rosto. Parece, ao contrário, procurar de preferência o que se afigura mais repugnante» (1881: 1); Camilo lamenta que os novos rumos da literatura explorem a baixa condição moral: «Se é preciso empegar no lameiral dos vícios inveterados e desonrar a época em que se escreve, pouco importa a repulsão dos olhos e os ouvidos honestos» (1907: 14); Alberto Carlos Freire de Oliveira acusa o Realismo de fotografar a realidade «pelo seu lado hediondo», fomentando o interesse por prostíbulos e tabernas, pelo adultério, pelas paixões miseráveis (cf. Palma-Ferreira, s/d: 128-130). 46 Em última instância, o derradeiro objetivo desta estratégia é, afinal, pôr em xeque a própria estabilidade das instituições consagradas: «Pobre Alencar! O naturalismo; esses livros poderosos e vivazes, tirados a milhares de edições; essas rudes análises, apoderando-se da Igreja, da Realeza, da Burocracia, da Finança, de todas as coisas santas, dissecando-as brutalmente e mostrando-lhes a lesão, como a cadáveres num anfiteatro» (M: 162). 47 «[…] nous enseignons l’amère science de la vie, nous donnons la hautaine leçon du réel. Voilà ce qui existe, tâchez de vous en arranger» (1880: 128). 48 «O realismo parece supor um não sei que de má vontade contra a espécie. E a entronização do feio, do pequeno, do detestável; é a franca exposição de quanto se topa por esse mundo mais ou menos ulceroso» (1872: 19). 50 a uma compreensão limitada do projeto naturalista. A «santa missão de verdade» do naturalismo a que Eça se refere, como qualquer santa missão, pressupõe, em contraponto à elevação do desígnio, uma via sinuosa e sacrificial. Ela ficará, por isso, ligada a um certo sentido de despojamento (também estilístico), uma espécie de ascetismo (de acentuado pendor científico: é a «laboriosa observação da realidade», a «investigação paciente da matéria viva», a «acumulação beneditina de notas e documentos»), mas também à esperança numa redenção social através da arte. Em traços inevitavelmente algo esquemáticos, é este o quadro contextual daqueles vetores d’As Farpas que serão objeto de análise nos próximos capítulos do presente trabalho. O foco incidirá essencialmente sobre os artigos que Eça de Queirós aí publica nos primeiros quinze números, entre maio de 1871 e outubro de 1872, mas sem perder de vista aqueles que, no mesmo período, saem da pena de Ramalho Ortigão. O primeiro número d’As Farpas é rigorosamente contemporâneo das Conferências Democráticas do Casino. Na conferência que aí profere, Eça situa o realismo em oposição ao romantismo e à sua retórica, inscreve nele uma ambição de verdade absoluta e sintoniza-o com o espírito revolucionário e progressista, apontado à transformação política, social e moral dos povos. Quando, sete anos depois, ao traçar o perfil literário de Ramalho Ortigão, Eça evoca a génese d’As Farpas, a filiação que aí estabelece deste projeto no realismo é inequívoca, e é também indissociável do seu vínculo à verdade: o objetivo da publicação desde o seu início foi, escreve Eça, «obrigar a multidão a ver verdadeiro», o que coincide, nas suas próprias palavras, com o objetivo do realismo, visto que «[u]m dos fins da arte realista é obrigar a ver verdadeiro» (CP: 109). Nesse texto fundamental, Eça acaba por, subsidiariamente ao perfil de Ramalho, esboçar também o perfil d’As Farpas, identificando os seus fins (a demolição das velhas instituições, condição base para a respetiva reconstrução futura noutros moldes), os seus métodos e instrumentos (de um lado a ciência, a lógica, a argumentação; do outro o sarcasmo e o riso), mas sobretudo os seus alvos (a poesia lírica, o sentimentalismo mórbido, a «religião por chic», as «educações atrofiadoras»…), de entre os quais se destaca claramente a retórica: quer a «retórica conservadora», quer a «democrática», mas sobretudo a retórica «parlamentar», «ministerial», «régia», «burocrática»; a retórica que sustenta o «orador do parlamentarismo», o «orador ilustre» que fala em S. Bento, mas cujos «períodos escorridos […] [são] as fezes biliosas de velhos compêndios decorados»; sem esquecer aquela retórica 51 que se alimenta do «abuso do tropo», e a que atravessa a «poesia lírica», matrizes de «todo um povo agachado e trémulo de tropos e de lirismo» (CP: 109; 114-16). Se todas estas questões emergem da leitura d’As Farpas sob a forma de temáticas que polarizam inevitavelmente o interesse crítico e teórico, o modo como a carta-perfil de Ramalho as convoca reforça sem margem para dúvidas a sua centralidade na conceção e na execução deste projeto de intervenção jornalística, política, sociológica, cultural e literária a vários títulos ímpar no panorama da imprensa portuguesa do seu tempo. 2. Máscaras retóricas: enigmas e decifrações 55 2.1. As faces da retórica No artigo que abre o primeiro número d’As Farpas, a retórica é objeto de diversas referências depreciativas, todas elas associadas ao campo da literatura. Eça critica os poetas que se abstraem da realidade e vêm a público contar «as suas descrenças idiotas ou as suas exaltações retóricas» (F: 25); os que, «por orgulho retórico, por farfanteria lírica», sendo «honestos na sua vida» se mostram «perversos na sua rima» (F: 26); os que cedem ao erotismo por «luxo de retórica» (F: 26) – enfim, toda uma «literatura de retórica e de cópia» (F: 29). Curiosamente, todas estas referências desaparecem na edição de 1890, embora o contexto em que elas surgem quase sempre se mantenha, e nele se preserve também o foco da crítica queirosiana, centrado naqueles aspetos do romantismo literário que consubstanciam a tantas vezes condenada retórica romântica49: não se trata, portanto, de uma reescrita das ideias que subjazem ao texto; trata-se, objetivamente, da supressão da palavra retórica do lugar exposto que ela ocupava na edição original. É possível que, decorridos vinte anos, Eça achasse algo excessiva a insistência com que na aurora do seu proselitismo realista, e porventura animado pelo entusiasmo das conversões recentes, nomeava a retórica como alvo sistemático dos seus ataques. Em 1890, não só as coordenadas estéticas e ideológicas de Eça de Queirós iam sendo objeto de revisão, como a própria retórica, pelo menos enquanto instituição, caminhava – finalmente – para um ocaso que a 49 «[…] estes senhores vêm contar-nos as suas descrençazinhas ou as suas exaltaçõezinhas!» (UCA: 21); «E a maior desgraça e a maior tolice é que, por farfanteria lírica, alguns homens honestos na sua vida vêm diante do Público declarar-se perversos na sua rima!» (UCA: 22); «Ou o Sr. X não diz a verdade, e todos aqueles seus êxtases são rimados muito aconchegadamente à mesa do chá, entre um dicionário e uma poética, com um barrete de algodão na cabeça…» (UCA: 22; cf. «Ou faz aquilo simplesmente, como um luxo de retórica, escreve a sangue frio aqueles delírios, todos aqueles êxtases são rimados muito aconchegadamente à mesa do chá, entre um dicionário e uma poética, com um barrete de algodão na cabeça» – F: 26); só no último exemplo a frase é integralmente suprimida. Esta tendência estende-se a outros momentos da publicação: «O Sr. Rocha Peixoto (?), depois de se ter visto singularmente enredado em grandes frases retóricas, conseguiu desprender- se […]» (F: 133) vs. «O Sr. Peixoto (?), depois de se ter visto singularmente enredado em grandes frases, conseguiu desentalar-se […]» (UCA: 117-18). 56 viria a retirar do mapa cultural da Europa por várias décadas. Ainda assim, Uma Campanha Alegre não faz de modo algum uma rasura das posições assumidas em 1871-2 em relação à retórica: limita-se a poupar-lhe o nome algumas vezes, sem contudo deixar de censurar aquilo que esse nome representa. A retórica, de resto, é um tema recorrente dos romances queirosianos, nomeadamente na chamada fase realista e naturalista. Os discursos de Alípio Abranhos na Câmara dos Deputados em O Conde de Abranhos, o necrológio de Luísa que o Conselheiro Acácio compõe em O Primo Basílio ou a aclamada intervenção de Rufino no sarau da Trindade em Os Maias são bons exemplos de como Eça encena nos seus romances aquela retórica desqualificada que As Farpas consideram uma nefasta tendência nacional – uma prática que o país acolhe com admiração e entusiasmo, e que contribui de forma decisiva para que modalidades mais retas de pensar, expor e agir tenham tanta dificuldade em vingar. Embora o texto dos romances a que me referi represente de modo lacunar os discursos de Alípio e de Rufino, predominando no primeiro caso a paráfrase e no segundo o discurso indireto livre, é mesmo assim possível identificar claras afinidades entre todos estes exercícios: há um nítido investimento em motivos convencionais e em imagens enfáticas50, as apóstrofes dramáticas comparecem inevitavelmente51, domina o apelo deliberado às emoções52, por vezes a um sentimento de piedade religiosa53, e aquela dimensão artificial, postiça, da retórica – nomeadamente da retórica parlamentar – que Eça e Ramalho denunciam n’As Farpas tem mesmo, no caso específico das intervenções de Alípio Abranhos no parlamento, uma caricata manifestação: a imagem do «cavalo de Átila que, onde pousa a pata, faz secar a erva dos prados» (CA: 127) que Alípio usa para ornamentar a despropósito o seu discurso inaugural reaparece, sem outra pertinência que não a mesma exibição de uma 50 «Mais um anjo que subiu ao Céu! Mais uma flor pendida na tenra haste que o vendaval da morte, em sua inclemente fúria, arremessou mal desabrochada para as trevas do túmulo…» (PB: 441-42); «Aqui aluía um casal, ninho florido de amores; além, na quebrada, passava o balar choroso dos gados; mais longe as negras águas iam juntamente arrastando um botão de rosa e um berço!…» (M: 590); «[…] por onde passa este novo cavalo de fogo (bravo! bravo!) brotam as searas, cobrem-se as colinas de vinha, (muito bem! muito bem!) penduram- se os rebanhos nas encostas verdejantes dos montes, murmuram os ribeiros nas azinhagas, ondulam as searas (muito bem!) e o jovial lavrador lá vai, satisfeito e alegre, cantando as deliciosas canções do campo, junto à esposa fiel, coroada das mimosas flores dos prados!» (CA: 130). 51 «Detende-vos, e olhai a terra fria!» (PB: 442); «Era o anjo da esmola, meus senhores!» (M: 590); «Que sublime apóstrofe arremessada a Tibério!» (CA: 127). 52 «Pareceu-lhe então que o final não era comovente: queria terminar por uma exclamação dolorosa, prolongada como um ai!» (PB: 445); «Rufino sorria bebendo esta comoção, que era a obra do seu verbo» (M: 590); «Que períodos repassados de lágrimas sobre o cadafalso de Luís XVI» (CA: 127). 53 «[…] seu espírito, librando-se nas cândidas asas, entoa louvores ao Eterno!» (PB: 442); «[…] a violeta em cada prado, o rouxinol em cada balseira provavam Deus irrefutavelmente […]» (M: 589). 57 erudição inconsequente, no discurso sobre o projeto do caminho-de-ferro do Leste: «e que maravilhoso espetáculo se nos oferece então: ao contrário do cavalo de Átila, cuja pata fazia secar a erva dos prados, por onde passa este novo cavalo de fogo (bravo! bravo!) brotam as searas […]» (CA: 130). A retórica é assim, na sua prática, reduzida a um repositório de lugares comuns. Em «A Retórica Antiga», Roland Barthes refere-se ao movimento de preenchimento dos lugares da Tópica, os quais, sendo inicialmente formas vazias, «muito rapidamente tiveram tendência para se encher sempre da mesma maneira, para obter conteúdos, primeiro contingentes, depois repetidos, reificados» (1978: 68). O processo de transformação das «formas vazias comuns a todos os argumentos» em «estereótipos, proposições repisadas» (1978: 68) foi gradual e, na Idade Média, a sua consumação estende-se à literatura, como demonstrou Ernst Robert Curtius em Literatura Europeia e Idade Média Latina. Assim, quando Alípio, na sequência do passo antes citado, descreve o cenário idílico e absolutamente convencional atravessado pelo comboio («brotam as searas, cobrem-se as colinas de vinha, […] penduram- se os rebanhos nas encostas verdejantes dos montes, murmuram os ribeiros nas azinhagas, ondulam as searas […]» – CA: 130), ele atualiza, obviamente, o tópico do locus amoenus, «um topos bem delimitado da descrição da paisagem» (Curtius, 1957: 205). Mas se estes topoi exigem a atualização de uma série de traços, eles admitem, ainda assim, que esses traços se realizem dentro do espectro de alguma variabilidade; já a reutilização de sequências textuais como aquela que Alípio pratica traduz o extremo do artificialismo a que pode chegar o processo de composição do discurso, que assim se torna, de certa forma, semelhante a uma estrutura modular pré-fabricada. É precisamente a esse trabalho de fabricar peças decorativas para discursos eventuais que se resume, afinal, o essencial da atividade política de Alípio Abranhos: «Mas nem por isso Alípio Abranhos ficou inativo. Trabalhou muito e ali escreveu trechos, imagens, perorações de futuros discursos» (CA: 131). Ora, não obstante a convencionalidade e a esterilidade destes exercícios retóricos, eles encontram nos contextos em que são produzidos um acolhimento quase sempre favorável, frequentemente entusiástico. Z. Zagalo, o enfático (mas também por vezes ambíguo) biógrafo do Conde de Abranhos, faz questão de reproduzir as reações dos deputados da Câmara à oratória de Alípio: os «bravo!», os «muito bem!» e afins sucedem-se quer em discurso direto (CA: 130), quer reportados pelo narrador54, e a eloquência de Alípio é 54 «Cada uma destas grandes imagens, destinadas a enriquecer o pecúlio nacional da oratória clássica, era seguida de um estalar entusiasta de «bravos!», de «sublimes!» (CA: 127). 58 reiteradamente celebrada pelos seus pares e mesmo elevada a modelo escolar55. Mas, considerando toda a obra queirosiana, talvez o mais económico e impressivo registo do efeito que a retórica logra ter perante um auditório representativo da sociedade portuguesa da época resida numa fugaz observação que Ega faz quando ele e Carlos chegam ao Teatro da Trindade na noite do sarau: «Por cima, de repente, no salão, estalaram grandes palmas. Carlos, que dava o paletó ao porteiro, receou que já fosse o Cruges… / – Qual! – disse o Ega. – Aquilo é aplaudir de retórica!» (M: 586). Era, de facto, Rufino, que entrava na peroratio da sua intervenção. O que é interessante nesta fala é que nela se transfira para o lado do auditório, o lado que está exposto ao discurso, a manifestação daquilo que permite reconhecer a natureza desse discurso. A retórica é aquilo de que Eça inscreve, a espaços, fragmentos ilustrativos na sua obra – é o necrológio de Luísa, são os discursos de Alípio e de Rufino –, mas é também o poderoso e singular efeito que os seus discursos, os discursos da retórica, têm sobre os auditórios. Daí que o enfoque de toda esta sequência em que acompanhamos os momentos finais da intervenção de Rufino não se centre exclusivamente nas palavras do orador, oscilando alternadamente entre as suas palavras e as reações do público. Por entre apontamentos isolados de adesão56, vamos assistindo a um progressivo transporte do auditório: primeiro uma multidão que sorri num silêncio deleitado, depois que não pode, aqui e ali, conter o aplauso57, até que, no final, toda a emoção que o discurso de Rufino alimentara no auditório é extravasada sob a forma de uma estrondosa aclamação: «E por todo o salão, no aperto e no calor do gás, os cavalheiros das Secretarias, da Arcada, da Casa Havaneza, berrando, batendo as mãos, afirmaram soberbamente o céu!» (M: 591). Quando, mais tarde, na sequência do programa do sarau, Cruges interpreta a Sonata Patética, de Beethoven, não consegue arrancar ao público mais do que algumas palmas «moles e de cortesia» (M: 597). Já Alencar, pouco depois, obtém de novo uma adesão desenfreada do auditório ao poema «A Democracia», peça que embrulha a República num lirismo humanitário e cuja retórica eficaz consegue vencer as reservas iniciais dos presentes: «Já não importava a República, os seus perigos. Os versos rolavam, cantantes e claros; e a sua onda larga arrastava os espíritos mais positivos» (M: 610). Na página 55 «Este discurso é bem conhecido. Alguns dos seus melhores trechos estão transcritos na Seleta para uso dos alunos do 3.º ano de português» (CA: 126). 56 O «tem estado soberbo» de Teles da Gama (M: 586); o «tem estado sublime» de um padre casual (M: 587). 57 «[…] vozes sufocadas de gozo mal podiam murmurar “muito bem, muito bem…”» (M: 589); «E em torno de Carlos e do Ega sujeitos voltavam-se apaixonadamente uns para os outros, com um brilho na face, comungando no mesmo entusiasmo: “Que rajadas!… Caramba!… Sublime!…”» (M: 590). 59 seguinte, o narrador complementa este esboço de leitura do processo subjacente à adesão do auditório: Uma rajada farta e franca de bravos fez oscilar as chamas do gás! Era a paixão meridional do verso, da sonoridade, do Liberalismo romântico, da imagem que esfuzia no ar com um brilho crepitante de foguete, conquistando enfim tudo, pondo uma palpitação em cada peito, levando chefes de repartição a berrarem, estirados por cima das damas, no entusiasmo daquela república onde havia rouxinóis! (M: 611) A «paixão meridional do verso», uma condição atávica que vincula todo um povo ao império do sentimento e da imaginação e lhe retira a frequência da crítica e do método, é reiteradamente apontada como explicação ‘antropológica’ para o fascínio nacional pela retórica. João da Ega, que não é a menos crítica das personagens queirosianas, reconhece-o textualmente: «E nós, os meridionais, por mais críticos, gostamos do palavreadinho mavioso. Eu cá pelo menos, à noite, com mulheres, luzes, um piano e gente de casaca, pelo-me por um bocado de retórica» (M: 584). É precisamente a esta condição que Eça se refere quando, n’As Farpas, escreve: «o nosso público inteligente e sobretudo literário, ama o bel-esprit: o que lhe agrada é a oratória e a frase. Moda peninsular» (F: 41). Eça, recorde- se, escreve isto a propósito da forma como as Conferências do Casino se propõem abordar com rigor científico a democracia, por oposição àquilo que vinha sendo a prática dominante: «As declamações têm tirado à democracia o seu carácter privativo de realidade e de ciência. Temos ouvido cantar a democracia, metrificá-la, soluçá-la: é tempo de a vermos demonstrar» (F: 41). O que Alencar faz perante o auditório rendido no Teatro da Trindade não é outra coisa senão aquilo que Eça neste passo – e noutros, de resto – critica: metrificar a democracia, vertê-la em imagens capazes de ferir a sensibilidade dominante, retirando-lhe, neste processo, «o carácter privativo de realidade». A democracia de Alencar – aquela república com rouxinóis, como o narrador faz questão de sublinhar 58 – não existe enquanto realidade; existe apenas enquanto discurso poético impregnado de uma retórica sentimental e é unicamente por esta via que conquista a adesão da sala59. 58 E, depois, também Ega: «Craft, no sarau, só gostara do Alencar. Ega encolheu violentamente os ombros. Ora histórias! Nada podia haver mais cómico que a democracia romântica do Alencar, aquela República meiga e loura, vestida de branco como Ofélia, orando no prado, sob o olhar de Deus…» (M: 649). 59 Esta prevalência do sentimento sobre a política tinha sido, aliás, antecipada numa troca de impressões entre Ega e Alencar: «– Ouve lá, isso que tu vais recitar, «A Democracia», é política ou sentimento? Se é política, raspo-me. Mas se é sentimento, e a humanidade, e o santo operário, e a fraternidade, então fico, que disso gosto e até talvez me faça bem. […] / – Eu vos digo, rapazes… Uma coisa não vai sem a outra, vejam vocês Danton!… Mas já não falo enfim desses leões da Revolução. Vejam vocês o Passos Manuel! Está claro, é necessário lógica… Mas, também, caramba, sebo para uma política sem entranhas e sem um bocado de 60 Também os discursos de Alípio Abranhos, enquanto representações de uma retórica parlamentar alheada do seu enquadramento político, e que por isso se esgota numa sucessão de exercícios de estilo desfasados das matérias em causa, têm n’As Farpas a sua matriz remota. Num dos artigos do primeiro número, Eça inclui a falta de eloquência numa extensa série de deficiências que aponta à câmara dos deputados, e serve-se de um discurso parlamentar recente para ilustrar a sua acusação. Embora o nome do orador seja omitido («Para quê dizer o nome? A nossa questão não é de nomes, é de factos» – F: 49), a síntese que o artigo d’As Farpas apresenta dessa intervenção permite-nos identificá-la sem qualquer margem de erro: está em causa um discurso proferido a 23 de maio60 por Alberto Osório de Vasconcelos. Deste discurso longo, que se estende por mais de uma dezena de colunas do Diário da Câmara, Eça fixa-se naqueles passos em que a matéria política é eclipsada pelas abundantes excrescências retóricas da intervenção do deputado, em que se sucedem as analogias mitológicas, as citações literárias, as referências eruditas (por vezes equívocas): O orador começa por um exórdio. Conta como Platão dormia a sesta e o que faziam as abelhas do Himeto, diz que desejava ter os dotes de suavidade e brandura para rastrear Platão. Pausa. Entra em seguida em matéria. Principia por dizer que já vai longe para ele o período da adolescência, mas que é natural que por lá lhe ficassem antigas fervenças, restos daqueles fluxos seivosos (textual). Depois conta como era o acordo que reinava entre os Deuses de Homero: «Aquiles empunhava o gládio, Ájax brandia o ferro!» exclama ele! Depois fala dos trabalhos de Hércules. Depois conta durante dez minutos a fábula de Oxilus. Fala na Eólia, na Etólia, e no Peloponeso. Depois fala de Júpiter, no Olimpo, sentado no seu trono coruscante (textual). Depois fala dos sacerdotes egípcios, dos ídolos, do cão Anúbis, e da esfinge, que, segundo ele, era um deus com cabeça de gato (parece incrível mas é textual!) Depois cita as portas da Aurora. Depois, a propósito da sua alma diz: «Malheur à qui sonda les abimes de l’âme!» Depois ocupa-se da maneira de conceber das aranhas. Cita por essa ocasião Saturno, um pouco mais abaixo Isócrates. Depois fala das hidras. Em seguida conta uma história imensa das Confissões de Santo Agostinho. (Tudo isto a propósito do sr. marquês de Ávila e da comissão de fazenda). Depois fala ainda de Sião e Babilónia, e senta-se. (F: 49-50) O discurso de Osório de Vasconcelos é, naturalmente, um pouco mais do que isto: é um ataque ao governo de Ávila e Bolama, que acusa de falta de iniciativa, de não ter coragem infinito!» (M: 604-05). Não é muito diferente, aliás, o que se passa entre as hostes republicanas: mesmo no club onde, em A Capital!, se conspira e se prepara o advento da República, as intervenções são inconsequentes, o debate é estéril e, afinal, «Ninguém parecia ter uma noção exata de reformas definidas: mas todos, vagamente, confiavam que da República escorreria a felicidade pública, penetrando todas as classes, até os mais obscuros casebres, com a fecunda universalidade da luz que cai de um astro» (Cap: 297). 60 E publicado no Diário da Câmara dos Senhores Deputados apenas no número relativo à sessão de 27 de maio. Recorde-se que, embora o primeiro número d’As Farpas tenha a data de maio de 1871, foi posto à venda já em meados de junho (cf. Mónica, 2004: 1). 61 de assumir o programa de cortes da despesa pública que quer implementar, de dificultar o trabalho da comissão de fazenda, de estar minado por dissensões internas, etc. Mas, sendo o discurso de Vasconcelos mais do que aquilo que acerca dele As Farpas nos dizem, ele é sem dúvida demasiadamente isso – isto é, demasiadamente tributário dessa conceção de eloquência parlamentar que tem em Alípio o seu mais elaborado modelo. E Eça nem sequer é exaustivo na recolha que faz: poderia ter acrescentado as referências a Quintiliano, a Demóstenes, a Prometeu, a Ulisses e Nestor, a Shakespeare, a Milton – para além de ter deixado de lado essa imagem dos deputados como «atletas da tribuna e da palavra», que não destoaria na boca de Alípio, ou de Acácio, ou do conde de Gouvarinho. No final, as felicitações que o orador recebe, e que o Diário da Câmara regista, parecem confirmar a predileção nacional pelas grandes manifestações retóricas – um diagnóstico espalhado por diversas obras queirosianas, mas que tem n’As Farpas a sua formulação inaugural. Um aspeto incontornável da visão que Eça nos dá da retórica n’As Farpas é que ela é, na pior hipótese, perigosa; na melhor, inócua. Quando não serve de revestimento aparatoso à ausência de substância, como é comum acontecer nos debates parlamentares, e é posta ao serviço de uma causa, a retórica constitui apenas uma forma de canalizar o esforço nela investido numa expressão que é, de facto, inútil. No artigo anteriormente citado em que Eça anuncia a abertura das Conferências Democráticas do Casino, o carácter científico deste projeto é contraposto ao esforço retórico empreendido por alguns jornais adeptos da causa revolucionária, cuja ação se esgota precisamente na ineficácia desse tipo de intervenção61. Do panorama da participação da imprensa revolucionária no debate político que Eça aí desenha, retemos como principais críticas o extravasamento do âmbito do combate ideológico para o território da calúnia e da difamação, aspeto já referido na primeira farpa, ou a desadequação de se proporem soluções retóricas para problemas de natureza pragmática (citar o Gólgota em questões de fazenda); no entanto, a natureza definitivamente inútil deste tipo de intervenção manifesta-se sobretudo em dois momentos do excerto: aqueles em que o efeito 61 «Às vezes meia folha de papel era distribuída grátis, com alguns insultos aos ministros, ao rei, e a um ou outro regedor. Outras vezes aparecia um jornal, que, em tom lírico, cantava a fraternidade e os seus encantos, dirigia apóstrofes ao rochedo de Guernesey, citava o Gólgota em questões de fazenda, e voltando-se para o rei dizia-lhe: – Tu! Outras vezes era um jornal de capa vermelha, e de calúnia de outras cores, que a propósito de liberdade insultava senhoras e que, sob pretexto de ser um jornal de combate, era um jornal de difamação. Havia outros republicanos: todos os jornais na oposição se dão vagamente esse ar, falam então no suor do povo… Imaginarão que a aristocracia não sua? Como se iludem! – O Jornal do Comércio, representante da burguesia liberal foi algum tempo republicano e dizia aos tiranos coisas desagradáveis, que deviam magoar Napoleão III, o defunto Calígula, e outros ex-opressores» (F: 41). 62 das invetivas ao poder é reduzido à expressão mínima de uma indelicadeza protocolar («e voltando-se para o Rei dizia-lhe: – Tu!» – F: 41) ou diluído numa expressão indefinida («e dizia aos tiranos coisas desagradáveis, que deviam magoar Napoleão III, o defunto Calígula, e outros ex-opressores» – F: 41). Noutros passos d’As Farpas encontramos o mesmo procedimento, com o propósito semelhante de diminuir o alcance de determinada tomada de posição que não vai além da manifestação indignada da palavra: por exemplo, quando a propósito da relação problemática que os territórios portugueses adjacentes mantêm com o poder central Eça menoriza o papel da imprensa local («Às vezes os jornais dos Açores, tomando um ar severo, voltam-se para a Metrópole e dizem-lhe no rosto: madrasta!» – F: 116), ou quando assinala a irrelevância da atitude adotada pelo Centro Promotor das Classes Laboriosas, uma das mais importantes associações representativas do operariado de Lisboa, para responder a uma alegada ofensiva do poder político: «o Centro subiu a um banco com um martelo, despregou um retrato da parede da sala, sacudiu-o do pó, pô-lo ao canto de um armário, e serenado por esta decapitação moral, sacudiu as mãos, limpou os beiços, e de pé – jurou qualquer coisa!» (F: 175). Para Eça, a palavra é inútil quando incapaz de se inscrever numa dimensão situada fora do seu contexto primário de produção e transmissão. Esta palavra pode ser expressão de um impulso gerado pelo desejo de mudança, mas ela não é, de facto, instrumento dessa mudança: a sua formulação tem como único efeito satisfazer o próprio impulso que a gera, e fora desse circuito inicial tudo permanece inalterado. Não há, por isso, diferença substancial entre as palavras irrelevantes do centro associativo do proletariado de Lisboa, inscritas sobre um vazio relacional, e, por exemplo, boa parte dos exercícios declamatórios com que se preenchem as sessões do Clube Republicano em A Capital!62: eles não fazem mais do que acionar os mecanismos que asseguram o funcionamento de uma adesão afetiva a determinada causa, sem contudo estabelecerem qualquer ponte efetiva com a realidade. No entanto, se a debilidade maior da eloquência é que ela não serve para nada quando reveste uma causa, a sua máxima perversidade é que ela se torna eficaz quando se coloca ao serviço de um baixo princípio. Eça parece só reconhecer eficácia perlocutória à retórica em determinadas circunstâncias, pelo que ela acaba por representar teoricamente sempre uma ameaça e nunca a possibilidade de se constituir instrumento ao serviço de um valor. A própria diabolização da retórica proposta por Platão, como se sabe, conhece os seus limites: 62 O Nazareno, republicano mais esclarecido, reconhece expressamente essa inutilidade: «Segundo ele, era inútil haver sessões, se elas deviam ser tomadas por aquelas leituras retóricas» (Cap: 297). 63 não obstante os ataques que lhe dirige, Platão chega ainda assim a conceber uma retórica psicagógica, moral, capaz de servir a causa da justiça e, portanto, que encontra a sua justificação à luz de critérios filosóficos63. Em Eça, isso não acontece: a lição que se retira d’As Farpas é que a retórica nada pode quando pretende contrariar as naturais pulsões do temperamento humano. Nestes casos, a realidade mundana sobrepõe-se inevitavelmente às habilidades do discurso – quer esteja em causa o apelo empenhado a uma insurreição militar64, quer se trate, por exemplo, de alertar as mulheres para os perigos do adultério e de as persuadir das virtudes da fidelidade conjugal: Ora observa-se que, se uma mulher tem um amante, poderá suceder que ela leia, pela manhã ao almoço, um artigo magnífico e pomposo com interjeições, lágrimas e flores: Sobre o adultério as suas aflitas misérias. Sobre a fidelidade e os seus claros esplendores; Mas nem por isso deixará, em vindo a noite, de ir pé ante pé, em todos os ardores do susto e do mimo amoroso, abrir a porta do jardim à impaciência de Artur. E isto porquê?… Porque a retórica não anula o temperamento. Porque um periódico bem escrito não abafa uma paixão bem movida; Porque os adjetivos não dirigem os nervos; E porque, oh senhores prosadores, a verdade é esta: entre um folhetim, que condena o adultério, impresso a tinta preta num papel amarelado e um amante vivo, sensível, forte e amado – nenhuma mulher deixará o amante que é a realidade para seguir o folhetim que é a linguagem […]. (F: 543-44) Uma questão que se impõe depois de ler um passo como este é se ele não traduz, em última instância, a capitulação de toda a manifestação discursiva de sentido interventivo junto da sociedade – e, por conseguinte, se não comporta a negação de um projeto como o das próprias Farpas. É verdade que Eça se distancia da orientação pedagógica que Ramalho pretendia imprimir na publicação por alturas da sua ida para Havana65, mas se Eça, na carta a Joaquim de Araújo em que traça o perfil de Ramalho, afirma que «[o] primeiro fim das Farpas foi promover o riso», poucas linhas depois reconhece que o seu derradeiro objetivo era «fazer ver verdadeiro» (CP: 109), e com isso promover uma mudança de atitude – isto é, uma 63 Górgias: 504d-e. Também em 480c-d e em 527c se concebe uma retórica legítima, e mesmo no Fedro esta questão se reveste de alguma ambiguidade (cf. Castillo, 2000: 183-184). 64 «De modo que, ao segundo dia, quando chega a hora do rancho – os oficiais só têm a dar aos soldados – palavras de entusiasmo! / Os soldados – nunca podemos compreender porquê – preferem o arroz à retórica; começam a debandar» (F: 188). 65 «Mas Ramalho Ortigão, já nesse tempo, pensava em dar às Farpas uma feição mais larga. / Estava cansado de rir, dizia. As Farpas, segundo as declarações do editor, tinham 2000 assinantes; isto representava de 5 a 6000 leitores: se, propunha ele, aproveitando um tal auditório, nós lhes ensinássemos alguns princípios? Fiquei aterrado: ensinar! Eu era, sou ainda, em filosofia, um touriste facilmente cansado, em ciência um dilettanti de coxia. Converter a alegre catapultazinha numa austera cadeira de professor!… Fui prudentemente para a Havana» (CP: 170-71). 64 transformação – na forma como os seus leitores se relacionariam com o mundo visto na sua feição verdadeira. Na «Advertência» que escreve para a edição de 1890, As Farpas são classificadas como «uma educação para todos» (UCA: 6). Mas até que ponto podem essas Farpas, afinal, cravar-se no corpo de hábitos, pulsões, valores, instintos e equívocos que constituem a nebulosa relação que em Portugal Eça afirma existir entre os indivíduos e a realidade? 2.2. A linguagem como lugar crítico No capítulo anterior referi-me ao facto de o realismo, e com mais propriedade o naturalismo, sob a capa do pessimismo das análises que produzem, serem animados por um otimismo resultante da convicção de que o mundo é transformável, de que a humanidade, globalmente considerada, caminha na senda do progresso, e de que as obras concebidas à luz dos fundamentos desta nova literatura constituem um contributo decisivo para a transformação positiva das sociedades. No entanto, passos como aqueles em que Eça parece presumir a resistência absoluta de certas forças ao efeito da palavra perturbam a viabilidade de uma intervenção efetiva e eficaz no tecido social, dado que postulam uma espécie de imutabilidade atávica de determinados comportamentos e pulsões humanas, e reconhecem a ineficácia do discurso – nomeadamente do discurso de esclarecimento e/ou de programação ético-moral – na transformação individual. Logo que saíram, As Farpas foram acusadas de veicular uma visão pessimista do estado de coisas; no entanto, essa crítica visou essencialmente o diagnóstico severo do «momento histórico» nacional que elas apresentavam desde as primeiras páginas (cf. Medina, 2000: 20 e ss.). Como que antecipando-se a esse juízo, Eça ressalva, na parte final do texto de abertura do primeiro número, que os quadros negros que acabava de traçar não eram senão o desenho realista do país – não apenas pela severidade dos retratos mas também pela preocupação neles investida de compreender processos, e não apenas de fixar o registo das suas manifestações: «É porventura isto desenhar, a capricho, um quadro antipático? – Não, leitor, atenta bem: o que fazemos é descrever a ação de uma lei geral» (F: 32). Outra coisa, 65 bem diferente, são as manifestações de um intrigante pessimismo acerca do lugar da linguagem no mundo que com inusitada frequência afloram à superfície dos artigos d’As Farpas, e de que é exemplo o excerto transcrito no final do ponto anterior. É conhecido o pessimismo de Carlos Fradique Mendes relativamente à possibilidade de a linguagem dizer o mundo, princípio em que assenta a sua renúncia de toda a criação literária (CFM: 104-06). Ora, se esta posição fradiquiana não poderia em toda a sua extensão ser partilhada pelo Eça dos anos 70, não só vinculado à escola realista mas também seu arauto e até certo ponto teorizador, a verdade é que a relação de Eça com a linguagem não deixa de ser embrionariamente problemática já nesta fase. Embora não chegue, naturalmente, a postular a radical inadequação da linguagem à expressão da realidade (e como poderia fazê-lo ao mesmo tempo que definia as bases teóricas do realismo nas Conferências do Casino?), Eça parece ter já uma consciência inquieta da instabilidade que subjaz à sua natureza. Se é possível ler As Farpas como um conjunto de textos críticos apontados a determinadas formas discursivas cujo revestimento simbólico promove a distorção total do processo comunicativo (perspetiva em que se enquadra também a eleição da retórica como alvo a abater), é igualmente possível identificar sintomas de mal-estar na relação d’As Farpas com a sua própria condição de discurso. Quando, na sequência de um quadro expressivo da ineficiência das instituições portuguesas66, Eça escreve «Nós fazemos os nossos livrinhos. Deus faz a sua primavera», por um lado afirma desse modo a impotência (ou indiferença) divina perante o cenário representado, mas por outro, numa contiguidade ousada, em que à parcela de imodéstia se sobrepõe a assunção do falhanço (ou vice-versa?), reconhece que o contributo de quaisquer «livrinhos» para a resolução dos problemas apontados será equiparável ao da primavera – ou seja, nulo. Isto é, muito discretamente, há aqui como que a denegação do sentido último de todo um projeto de denúncia de um estado de coisas e de esclarecimento de uma população: de que modo se inscreve então, afinal, na realidade, no mundo, o produto do esforço do escritor efetivamente empenhado nessa inscrição? A opção pelo humor enquanto registo d’As Farpas 66 «E não obstante, como tudo parece tranquilo, feliz, repousado, coberto de luz! Os jornais conversam baixinho e devagar uns com os outros. O parlamento ressona. O ministério todo encolhido diz aos partidos – chut! As secretarias cruzam os braços. O tribunal de contas, lá no seu cantinho, para se entreter maneja sorrindo as quatro espécies. A polícia, torcendo os seus bigodes, galanteia as cozinheiras. O conselho de Estado rói as unhas. O exército toca guitarra. A câmara municipal mata em sossego os cães vadios. O ar azula- se. As árvores do Rossio enchem-se de folhas. Os fundos descem, e descem há tanto tempo que devem estar no centro da terra. O povo, coitado, lá vai morrendo de fome como pode. Nós fazemos os nossos livrinhos. Deus faz a sua Primavera» (F: 22-3). 66 tem talvez por isso tanto de estratégia de ataque – nessa qualidade será abordada no capítulo 4. – como de inflexão defensiva: só ela permite afetar uma relativa indiferença perante o escasso efeito que se concebe vir a obter com cada um dos textos publicados67. É claro que, ao escrever algo como «Nós fazemos os nossos livrinhos», Eça explora também um tópico fundamental da captatio benevolentiae: o tópico da modéstia (apesar de toda a ambiguidade contextual). De resto, esta estratégia é utilizada logo na abertura do ‘prólogo’, isto é, no lugar que a tradição lhe consagra68, e depois recuperada episodicamente – ainda que com especial destaque no texto em que Eça responde às críticas que Vieira de Castro, sob o pseudónimo de Samuel, dirigira ao primeiro número da nova publicação (resposta essa na qual é, aliás, notório aquele movimento de recuo por parte de Eça para um lugar de quase indiferença perante o impacto que a voz d’As Farpas tem sobre o real69). Mas talvez esta prudência queirosiana não esteja inteiramente desligada de certas manifestações de ceticismo relativamente à linguagem, que tentarei sucintamente identificar. As Farpas nascem de um desencontro – ou, antes, nascem da constatação de um desencontro. Em 1871, este parece situar-se na distância que medeia entre a perceção imprecisa da realidade que advém da imersão num vórtice de acontecimentos desconexos e a aquisição de uma compreensão estruturada do momento histórico que por detrás dessa agitação se define. Eça exprime-o da seguinte forma: «E a ideia de te dar assim todos os meses, enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres, mordentes, justas, nasceu no dia em que pudemos descobrir através da penumbra confusa dos factos, alguns contornos do perfil do nosso tempo» (F: 16). Em 1890, a parte final desta formulação torna-se bastante mais clara e eficaz: «[…] nasceu no dia em que pudemos descobrir, através da ilusão das aparências, algumas realidades do nosso tempo» (UCA: 9). Ora esse desencontro entre realidade e aparência, esse desvio entre o modo como o mundo se dá a perceber e a sua forma verdadeira, é frequentemente preenchido por linguagem. Uma parte muito significativa dos ataques que As Farpas desferem sobre o mundo tem como alvo a linguagem, 67 Daí que, depois de assumida a opção pelo registo humorístico, Eça escreva: «Nunca poderão estas farpas ligeiras ferir a grande artéria social: ficarão à epiderme» (F: 18). 68 «Leitor de bom senso – que abres curiosamente a primeira página deste livrinho […]» (F: 16). 69 Pobres Farpas! decerto que elas não são a coluna de fogo, as doze tábuas da lei, a grande voz do deserto! – Enfeitadas e coloridas na sua qualidade de bandarilhas, aguçadas e incisivas na sua porção de ferro, ágeis e laboriosas como abelhas, elas são sobretudo e antes de tudo 96 páginas impressas na tipografia Universal, sem grandes erros de gramática e sem grandes verdades de filosofia, estalando de riso por todas as entrelinhas, mesmo quando franzem a testa – e contentando-se com serem alegremente recebidas, pela manhã, à hora do correio e do almoço, por alguns espíritos simpáticos e por algumas brancas mãos. Diógenes decerto não apagaria a sua lanterna!» (F: 122-23). 67 quase sempre na sua modalidade retórica – As Farpas visam, porventura mais do que qualquer outra fonte de erro, a virtude que a linguagem tem de revestir a realidade de uma espessura de mentira que se constitui universo de referência e conhecimento de toda uma comunidade. Como adiante abordarei de forma mais detalhada, o discurso da literatura, o discurso da religião, o discurso da política, todos de alguma forma coadjuvados pelo discurso da imprensa, constituem pilares fundamentais da construção de um mundo falso, feito de linguagem – pilares em torno dos quais gravita a existência equívoca de uma população. A crítica de Eça, que irradia d’As Farpas para a generalidade da sua produção ficcional, incide, por conseguinte, fundamentalmente sobre aquelas instituições a que Althusser (1980) chamará um século depois os aparelhos ideológicos do Estado, aparelhos que operam ideologicamente sobre os cidadãos, assegurando a estabilidade do Estado através da indução de uma ideologia (isto é, uma deformação – 1980: 82) que serve os seus interesses. Numa das suas principais vertentes críticas, As Farpas propõem-se precisamente desconstruir aqueles discursos que se insinuam como instrumentos através dos quais o sistema assegura a reprodução das suas condições de produção e, assim, garante a sua subsistência. 2.2.1. Realidade e encenação discursiva Há uma curiosa semelhança na forma como Eça se pronuncia, em pontos distantes destes textos – distantes quer porque quase um ano os separa, e por isso também algumas centenas de páginas, quer pela natureza do objeto abordado em cada um deles –, acerca das implicações éticas da mentira. No primeiro, está em jogo a necessária adesão da imprensa à causa das Conferências, em nome da coerência com posições anteriormente assumidas: Vejamos: não tem a imprensa confessado todos os dias a podridão do país e a desorganização das suas forças vivas? (Jornais políticos, passim.) Não ameaçam perpetuamente os governos com uma intervenção popular? (Jornais políticos, passim.) Ou são sinceros, ou não. Se não são, então faltam duplamente à dignidade porque desconsideram os outros enganando-os, e desconsideram-se a si mentindo. (F: 43) O segundo passo encontra-se no artigo em que Eça aborda vários aspetos relativos à condição e à formação da mulher, nomeadamente da «menina solteira», abrangendo o 68 período que vai da infância à idade núbil. É sobre o início deste percurso formativo que Eça escreve o seguinte: A pequerrucha Bebé, aos cinco anos, quando possui inteiramente a palavra e a frase – começa a mentir. Bebé mente. Uma senhora inglesa ou francesa ou alemã – se vê sua filha mentir, sente-se verdadeiramente ofendida. Uma mentira são duas degradações; deixamos de nos respeitar porque afirmamos o falso, e deixamos de respeitar os outros porque os lançamos em erro. (F: 421) Claramente, Eça não distingue os diferentes planos convocados nos dois casos: de um lado a opinião política da imprensa, do outro a asserção individual, produzida num contexto circunscrito às contingências do quotidiano. A opinião política, em regra, furta-se ao regime binário de verdade ou falsidade, por maioria de razão quando ela tem por objeto de incidência «o país» e as suas «forças vivas», uma realidade suficientemente complexa para que dela se façam leituras divergentes e ainda assim sustentáveis – isto é, um campo propício para as antilogias de Protágoras. Mas As Farpas parecem não reconhecer a existência de quaisquer planos discursivos que gozem de um estatuto que os dispense de ser submetidos a um escrutínio fundamental: aquele que verifica a sua relação com a verdade. No número de agosto de 1871, é Ramalho que se cruza com esta questão, quando censura a aparente prerrogativa que a classe política tem de conduzir os seus atos através de processos ilegítimos e inadmissíveis ao cidadão comum. «O homem político – simples influente eleitoral, mero candidato a deputado – lisonjeia, mente, difama, atraiçoa. […] Toda a gente o sabe», escreve Ramalho, para, linhas depois, identificar o problema de fundo do qual decorre este hábito instalado: «Ainda assim o público não considera desonrados esses homens, porque o público distingue a honra política da honra individual. Ora isto é que não deveria continuar a ser» (F: 158). Em última instância, quando As Farpas afirmam a solidariedade entre a obra literária e o escritor, defendendo a existência de uma sólida implicação entre o universo ético da obra e o ethos autoral, este postulado (realista) pode ser lido como uma derivação do mesmo princípio segundo o qual não é admissível subtrair ao juízo ético a leitura da imagem pública que qualquer indivíduo projeta. Daí as várias faces do retrato do «sr. X», o modelo do poeta romântico que, «por farfanteria lírica», sendo honesto na sua vida, se diz perverso na sua rima. Uma vez que o produto da criação inventiva é entendido como medida de aferição do carácter do criador, qualquer que seja o ângulo de abordagem do caso do «sr. X», o resultado 69 do inquérito é invariavelmente a evidência da contradição, da mentira70. Entre a mentira da «pequerrucha Bebé» e a mentira da palavra política ou da palavra poética desenha-se assim um arco que parece recobrir toda uma existência social, fundada sobre a cisão inaugural entre a realidade e a sua representação discursiva. A palavra e a mentira surgem associadas desde o início da apropriação que o indivíduo faz da linguagem, e é nesta possibilidade que a linguagem oferece de se deixar perverter enquanto expressão da realidade que radica o desencontro entre o indivíduo e o mundo, os outros e ele próprio. Quando, noutro ponto do mesmo artigo sobre o perfil feminino do seu tempo, Eça escreve «De resto, aqui a mentira é um hábito público. Mente o homem, a política, a ciência, o orçamento, a imprensa, os versos, os sermões, o romance – a arte, e o país é uma grande consciência falsa» (F: 421), está no fundo a propor, como síntese descritiva do desconcerto nacional, a generalização daquele pecado original da infância que consiste na distorção da relação de correspondência ideal entre a linguagem e o mundo. Este hiato entre a palavra e a realidade está na base de uma importante dimensão metalinguística e metadiscursiva d’As Farpas, que se reveste em regra de um duplo desígnio: denúncia dos desvios detetados e proposta da respetiva retificação. Uma das manifestações frequentes desta componente de reflexão metalinguística traduz-se numa preocupação recorrente em restaurar certas correspondências entre nomes e conceitos, uma vez que tal desencontro representa uma ameaça: ele distorce as condições de perceção da realidade nos termos em que esta é construída com base na imersão do sujeito em linguagem. Quando Eça escreve que «[h]á lupanares mais castos do que certos livros de versos, que se chamam melancolicamente Harpejos ou Prelúdios» (F: 26); quando, referindo-se a certo poema 70 «Ou o sr. X pinta a verdade quando escreve os seus versos, e então é um homem perigoso, um poseur de sedução, um artista em perversidade, é além disso um indiscreto, dá um exemplo detestável a seus filhos, se os cria, desconsidera sua esposa, se a tem: não merece a nossa estima, e cai no domínio policial. / Ou o sr. X não diz a verdade quando escreve os seus amores em verso. Nesse caso é ridículo, é pedante, dá-se ares, e sendo um burguês honrado quer fazer acreditar às costureiras que é um sedutor temeroso. – Assim como havemos de acreditar na seriedade do seu carácter? / Ou faz aquilo simplesmente, como um luxo de retórica, escreve a sangue frio aqueles delírios, todos aqueles êxtases são rimados, muito aconchegadamente à mesa do chá, entre um dicionário e uma poética, com um barrete de algodão na cabeça. – Neste caso como havemos de acreditar na seriedade da sua arte?» (F: 26). Em Uma Campanha Alegre, este esquema de três faces é reduzido a um esquema duplo, que opõe de forma mais eficaz verdade a mentira e arte a carácter: «Ou o Sr. X pinta a verdade quando escreve estes seus versos, e então é um devasso que dá um exemplo detestável a seus filhos, e desconsidera sua esposa… Como havemos de acreditar em tal caso na seriedade do seu carácter? /Ou o Sr. X não diz a verdade, e todos aqueles seus êxtases são rimados muito aconchegadamente à mesa do chá, entre um dicionário e uma poética, com um barrete de algodão na cabeça… Neste caso como havemos de acreditar na seriedade da sua arte?» (UCA: 22). 70 licencioso publicado na imprensa, explica o léxico do romantismo, ensinando que «[q]uanto é vil, na moral71 da poesia lírica é o mundo real, a família, o trabalho, as ocupações domésticas, a altivez do pudor, etc.» (F: 74); quando, a propósito dos equívocos da linguagem urbana, esclarece qual o verdadeiro sentido do verbo comprometer-se72, ou, a propósito dos eufemismos da linguagem política, descreve as manobras que efetivamente se realizam quando alguém diz que o governo protege a eleição de certo deputado73, a sua grande preocupação é assinalar, em todos os casos de distorção semântica, o perigo de uma outra distorção – a da perceção da própria realidade. Com efeito, este tipo de distorção semântica desloca, e por vezes inverte, a polaridade moral dos significados em jogo; ela tende a alastrar e a revestir os lugares críticos do mundo, tecendo uma realidade virtual, um simulacro feito de linguagem que se interpõe entre o sujeito e o real: não estamos muito longe dos receios orwellianos da criação de uma novilíngua capaz de programar a perceção e a avaliação coletivas da realidade. Quando não é eufemística, a linguagem cristaliza-se em fórmulas cujo uso sistemático se torna progressivamente acrítico, afastando-se também por essa via da tradução da realidade. O voto, esclarece Eça no artigo do número de junho de 1871 em que decide explicar aos leitores d’As Farpas toda a mecânica das eleições em Portugal, é obtido através da mobilização de múltiplas formas de corrupção, da chantagem, da coerção – mas esse voto é, «segundo os jornais de Lisboa, livre, espontâneo e consciente!» (F: 62). Um dos aspetos mais interessantes deste artigo parte da assunção de que toda a complexidade jurídica e cerimonial associada às eleições pode constituir um potencial obstáculo à sua leitura, pelo que Eça adota um registo pedagógico ostensivamente elementar – que lhe permite, por sua vez, chamar a atenção, entre outras coisas, para a relação equívoca entre os nomes e as instâncias que estes designam. As afinidades oblíquas entre as noções de eleger e nomear, a amplitude semântica da palavra voto ou da palavra urna, a catalogação específica da noção genérica de deputado, as diferenças e semelhanças entre os verbos demitir e dissolver em contexto político (F: 61-2) são 71 Em Uma Campanha Alegre, esta «moral» é substituída por «gíria» (UCA: 66), reforçando-se assim a centralidade da questão linguística. 72 «O homem de mais reto juízo e de mais completa honra não se atreveria a declarar-se publicamente tal qual é. Recearia comprometer-se. Comprometer-se é a vaga mas permanente ameaça constantemente levantada, pelo espírito da época sobre todas as determinações radicais. Comprometer-se quer simplesmente dizer: que os ministros nos demitam dos nossos empregos, que os centros políticos nos expulsem, que os partidos nos reneguem, que os frequentadores do Grémio ou do Martinho deixem de cumprimentar-nos e que alguns dos nossos conterrâneos discutam nos periódicos a nossa vida pública e a nossa vida particular, ou que meramente nos espanquem à esquina das nossas ruas» (F: 35). 73 «[…] é disto que se diz: o governo protege-lhe a eleição. Isto é – auxilia com a pressão e corrupção que exercem as suas autoridades oficialmente, a pressão e corrupção, que o deputado (proprietário, ricaço, agiota) exerce particularmente» (F: 62). 71 objeto de uma abordagem que pretende recuperar um estádio anterior à contaminação do olhar pelas construções retóricas através das quais todo este universo político se dá a conhecer. Ao denunciar a forma eufemística como forma retoricamente contaminada do termo que ela oculta (mesmo como forma suja: «Somente [os deputados] não se chamam demitidos: dá-se-lhes um nome menos asseado – chamam-se dissolvidos» – F: 58), Eça explora por uma outra via o mesmo desígnio de explicar a linguagem aos leitores d’As Farpas. Quando revela os sentidos que se ocultam sob o uso de termos ou expressões como «vil», «comprometer- se» ou «proteger a eleição», o seu procedimento é essencialmente analítico; já esta contiguação de formas lexicais alternativas constitui uma modalidade sintética que, ao trazer à superfície do texto elementos pertencentes ao mesmo eixo paradigmático, põe em destaque o facto de que todo o discurso, longe de ser um tecido ‘natural’, é produto de uma série de operações de seleção, às quais, em certos domínios críticos, subjaz uma clara intenção ideológica. É sintonizando esta modalidade sintética que As Farpas prosseguem de forma mais consistente o seu programa de retificação da seleção lexical promovida por determinados usos sociais da linguagem, procurando reaproximar a palavra da realidade que ela deve exprimir. Mas nem sempre esta operação de renomeação decorre da necessidade de despojar a linguagem dos seus revestimentos eufemísticos, como acontece quando Eça propõe a opção pelo verbo demitir, que exprime de forma mais rigorosa do que dissolver o procedimento através do qual um deputado é afastado do governo. Por vezes, a desadequação da nomeação resulta de um fenómeno de degradação da coisa nomeada – resulta do próprio processo de decadência das instituições. É o que acontece, por exemplo, quando Eça propõe que não se chame discussão parlamentar à prática desqualificada através da qual os deputados da nação interpretam este conceito, sugerindo que se lhe chame assuada74, ou que os conceitos de pátria ou de nação, referindo-se a Portugal, sejam substituídos pela noção mais consentânea de sítio75, ou que a identificação do regime constitucional português enquanto monarquia dê lugar 74 «A câmara dos deputados vive há um mês, tendo no seu seio o insulto em perpétua ordem do dia – e engorda! / Mas o sr. António Aires, esse, para que continua a dizer com a sua voz eloquente: / – Para amanhã continua a mesma discussão? / A dignidade da franqueza e o escrúpulo da verdade – e s. ex.ª sacerdote e católico está adstrito a observar este regimento da consciência – pedem que se diga: / – Amanhã continua a mesma assuada. /Assim – a curiosidade ficava avisada e os srs. deputados também!» (F: 142-43). 75 «[…] é justo que pensemos também um pouco na Pátria. Porque enfim, temos uma pátria. Temos pelo menos – um sítio. Um sítio verdadeiramente é que temos: isto é – uma língua de terra onde construímos as 72 à categoria de chinfrim76. Assim, se por vezes é a linguagem que se desloca, arrastando consigo nesse movimento a perceção de uma comunidade face à realidade designada e promovendo, em última instância, a sua rearrumação no paradigma axiológico vigente (é o caso dos desvios semânticos de termos como «vil», «comprometer-se», etc.), outras vezes a deslocação verifica-se no eixo da própria realidade, cuja trajetória de decadência lhe subtrai determinados aspetos valorativos inerentes ao conceito representado pela palavra que a designa – correndo neste caso a realidade o risco de perverter o conceito. Do cruzamento destes dois processos resulta em grande parte essa impressão geral que se tem ao ler as farpas queirosianas de que nelas se projeta uma instabilidade sistémica na relação entre a linguagem e a realidade – poder-se-á dizer, creio mesmo, que a encenação multiforme dessa instabilidade é um dos aspetos mais interessantes destes textos. Para além dos dois movimentos que referi, há no entanto outros que concorrem para este efeito de instabilidade. O atrito entre a lógica da linguagem e as distintas lógicas do mundo é manifesto, por exemplo, também num passo como aquele em que Eça observa que certas inscrições lexicais são inamovíveis e conflituam abertamente com a fluidez da realidade: Mas, cousa notável! Os cinco que estão no poder, fazem tudo o que podem – intrigam, trabalham, para continuar a ser os esbanjadores da fazenda e a ruína do país, durante o maior tempo possível! E os que não estão no poder movem-se, conspiram, cansam-se para deixar de ser – o mais depressa que puderem – os verdadeiros liberais e os interesses do país! Até que enfim caem os cinco do poder, e os outros – os verdadeiros liberais – entram triunfantemente na designação herdada de esbanjadores da fazenda e ruína do país, e os que caíram do poder, resignam-se cheios de fel e de amargura – a vir ser os verdadeiros liberais e os interesses do país. (F: 68-9) O recurso ao itálico é muitas vezes, n’As Farpas, precisamente a marca da cristalização do discurso, da sua desvinculação do mundo, da sua automatização e ritualização. Eça compreende o fenómeno da repetição da palavra até ela não significar coisa alguma – ou, o que é talvez mais grave, até ela significar algo que o espírito reconhece como fórmula tranquilizadora que cauciona uma ordem sem interpelar o seu real sentido. O itálico assinala assim a subtração da linguagem ao domínio vivo do pensamento e a sua transformação em pedra: expressões usadas na retórica política e repetidas com a insistência de refrães (como a nossas casas e plantamos os nossos trigos. O nosso sítio é Portugal. Não é uma nação, não é uma nacionalidade, não é uma pátria; mas é um sítio» (F: 322). 76 «– As geografias dizem que é uma monarquia: pelo que vi pareceu-me que nem era uma monarquia, nem uma república, e que era apenas um chinfrim…» (F: 323). 73 «emancipação das classes operárias» ou o «terrível proletariado»77) concorrem com aquelas de que a poesia se foi apropriando, tornando-se desta forma um sistema reprodutor de lugares comuns, que Ramalho faz questão de inventariar num artigo datado de junho de 1871: «vívidos anelos, crenças férvidas, fugazes ilusões, doces enleios, pungentes deceções, atrozes descrenças, profundos letargos, ígneas visões e raptos febris» (F: 84). Este estreitamento do discurso enquanto instrumento de expressão de um pensamento atinge aquela que é porventura a sua manifestação mais extrema no artigo em que o partido reformista é representado a responder sempre com a mesma palavra («Economias!») a todas as perguntas que a imprensa lhe faz – sobre religião, moral, educação, trabalho, jurisprudência ou literatura (F: 44-5). Mas uma alternativa à cristalização das fórmulas discursivas consiste na variação aparente do discurso: O partido histórico diz gravemente que é necessário respeitar as Liberdades Públicas. O partido regenerador nega, nega numa divergência resoluta, e prova com abundância de argumentos que o que se deve respeitar são – as Públicas Liberdades. A conflagração é manifesta! (F: 36) A variação mínima do quiasmo «Liberdades Públicas» / «Públicas Liberdades» é a máscara retórica que recobre uma identidade indiferenciada, mas essa variação mínima ocorre multiformemente ao longo do texto, em todo o elenco das «irritadas divergências de princípios» que Eça ironicamente aponta aos partidos portugueses: quer também sob a forma de quiasmo (um «é constitucional, monárquico», outro «é monárquico, é constitucional»), quer através da combinação entre a repetição e a sinonímia78. Já num artigo de janeiro de 1872, Eça coloca face-a-face as sínteses dos discursos do chefe da oposição e do ministro do Reino, optando por uma dispositio simétrica: o resultado é a indiferenciação genérica dos dois blocos textuais, cada um deles progredindo, por vias claramente análogas, 77 «A burguesia invejosa e desempregada fala na federação, na república federativa, na extinção do funcionalismo, na emancipação das classes operárias; mas entende que o país pode esperar por esses benefícios todos se no entanto lhe derem a ela lugares de governadores civis, ou de chefes de secretaria» (F: 20-1); «Parecia realmente indecoroso que Lisboa, civilizada, com teatro lírico a grandes ordenados e outros regalos de capital eminente, não tivesse esse tic – a greve! Oeiras, com uma dedicação antiga, forneceu-lhe este aparato: Oeiras deu a greve: alguns estadistas puderam ter ocasião de dizer a nossa última greve: e os jornais exultaram por ter a oportunidade chic, de falar no terrível proletariado» (F: 278). 78 Há nas farpas queirosianas múltiplos casos que ilustram o recurso a estas variações mínimas. O artigo que Eça dedica ao modo como a imprensa, ao noticiar a visita do Imperador do Brasil a Alexandre Herculano, opta sempre por usar sinónimos mais ou menos rebuscados da palavra ‘casa’, em detrimento deste termo simples (F: 382), assenta todo ele no recurso a variações lexicais («diz», «afirma», «declara», «confessando», «afiança», «sustenta», «ensinam», «mantém»; «ao contrário», «porém», «ainda que», «todavia», «contudo», «por seu turno»; «homem eminente», «ilustre historiador», «eminente vulto», «venerando cidadão») que enquadram – e caricaturam – aquela que inicialmente se pretende destacar («mansão», «retiro», «tugúrio», «tebaida», «aprisco», «abrigo», «albergue», «solidão», «exílio»). 74 para o mesmo reconhecimento final: «que o país está na última decadência administrativa» (F: 350). Daqui resulta que, no ponto subsequente do artigo, os dois atores políticos, representantes de quadrantes opostos, sejam congregados num sujeito plural («Resultado: o ministro e o chefe da oposição – declaram oficialmente – o país num estado deplorável de administração»), para logo a seguir a expressão da diferença entre o efeito (nulo) da ação de um e de outro ser reduzida, mais uma vez, à mera variação sinonímica de uma palavra isolada: «Nem a reforma do sr. Luciano se efetua: nem a reforma do sr. Sampaio se aplica» (F: 350). 2.2.2. A decadência do espaço público discursivo Todos estes casos traduzem, de uma forma ou de outra, a posição queirosiana perante aquilo a que poderíamos chamar, reconfigurando o alcance de um conceito habermasiano, a degradação do espaço público discursivo, bem como a sua preocupação relativamente às distorções que daqui poderão advir no que diz respeito à configuração de uma opinião pública. São, por isso, as modalidades institucionais de intervenção discursiva aquelas que polarizam a sua crítica – isto é, aquelas que assentam em estruturas materiais ou simbólicas que lhes asseguram uma repercussão pública e um estatuto de referência (moral, política, ideológica, etc.) que as projeta muito para além das respetivas circunstâncias imediatas de enunciação. A posse da palavra investe o homem de uma dupla responsabilidade ética – uma responsabilidade individual (desde logo porque a mentira, recorde-se, é segundo Eça um ato lesivo do próprio sujeito), mas sobretudo uma responsabilidade social. A exposição do indivíduo ao efeito de uma palavra corrompida e corruptora, sobretudo se essa palavra emana de estruturas jurídica ou simbolicamente investidas de alguma forma de poder, compromete drasticamente a possibilidade de realização de qualquer programa de progresso social, para além de, como dirá Hanna Arendt 75 quase um século mais tarde, envenenar aquela dimensão da esfera pública que funciona como garantia e referência da realidade para os cidadãos79. Por todas estas razões a retórica, nas diversas manifestações através das quais ela sustenta aparelhos ideológicos responsáveis pela degradação do vínculo entre a linguagem e a realidade (isto é, entre a linguagem e a verdade), é eleita como um dos alvos preferenciais dos ataques d’As Farpas. Na já citada carta a Joaquim de Araújo, Eça refere-se a essa batalha implacável contra a retórica, que Ramalho não cessara de travar, deixando claro em que medida toda ela é perniciosa, independentemente dos quadrantes ideológicos de onde emana: O que Ramalho mais tem odiado e invetivado na política é a Retórica: é o que o exaspera no Constitucionalismo; e a prodigiosa caricatura que tem feito da retórica parlamentar, da retórica ministerial, da retórica régia, da retórica burocrática, é que lhe tem dado a reputação republicana. Não penso porém que ele fosse hostil ao sistema, se o sistema não tivesse um tão desordenado fluxo labial. Se o sistema trabalhasse praticamente, em lugar de perorar com furor, estou convencido que Ramalho não o importunaria: ele supõe, creio, que o que há de mais urgente, certas reformas sociais, pedagógicas, económicas, poderiam bem fazer-se dentro do sistema, se os tropos não tomassem todo o lugar das ideias. É contra este abuso do tropo, que Ramalho tem conduzido, bem inutilmente, uma campanha viva, astuta, arrojada, pertinaz. A retórica é como a sua filha querida a hidra de Lerna: por cada velha cabeça decepada, nasce-lhe uma cabeça nova. […] Se Ramalho tem guerreado a retórica conservadora, não tem poupado a retórica democrática, que não é em Portugal menos nociva: é a sua vaga fraseologia idealista, que mantém tanto moço estimável num humanitarismo enevoado e sentimental, em que aspiram a ver toda a Europa livre, sem pauperismo, sem guerra, sem prostituição, sentando-se em banquetes fraternais, presididos pelos génios, numa concórdia universal, sob a proteção de Jesus, não do Jesus católico, mas do Jesus revolucionário, democrata, que sorri do alto dos céus, enquanto as searas nascem por si, em campinas arcádicas, ao som dos coros da liberdade… Não é neste estilo que escrevem os nossos jornalistas democratas? os nossos operários? (CP: 115-16) Embora Eça escreva aqui sobre Ramalho, o âmbito do que nestas linhas afirma pode alargar-se sem dificuldade aos anos de colaboração entre os dois. Não é sequer difícil encontrar nas farpas queirosianas algumas abordagens das questões laterais aqui enunciadas e verificar que a coincidência de posições é total – desde a ideia de que as reformas que o sistema político exigia poderiam ser implementadas a partir do seu interior80 até à acrimónia 79 «E que espécie de realidade possui a verdade se não tem poder no domínio público, o qual, mais do que qualquer outra esfera da vida humana, garante a realidade da existência aos homens […]?» (Arendt, 1995: 9). 80 «Sim, nós não queremos também que num país como este, ignorante, desorganizado, apaixonado, se lance através das ambições e das cóleras – o grito de revolta! / Nós queremos a revolução feita serenamente no domínio das ideias e da ciência, primeiro, – depois pela influência pacífica duma opinião esclarecida e inteligente, e pelas concessões sucessivas dos poderes conservadores; – enfim uma revolução pelo governo, tal qual 76 com que Eça recenseia alguns excessos retóricos do operariado81. A luta contra a retórica, essa, é inegavelmente uma bandeira comum, uma preocupação sistematicamente exercitada. Talvez pertença a Ramalho, e não a Eça, o artigo em que a atitude crítica d’As Farpas perante a retórica é enunciada de modo mais enérgico, visando nomeadamente a retórica parlamentar, a retórica da afetação oratória, mas também dos «palavrões grotescos» e das «banalidades descompostas» (F: 170-74); contudo, o que preocupa Eça está na verdade para além da forma como ela é aí apresentada. Recuperemos, entretanto, uma citação anteriormente feita, na qual Eça de Queirós enumera os vários domínios da sociedade portuguesa infetados pelo bacilo da mentira. Em Portugal, afirma Eça, «[m]ente o homem, a política, a ciência, o orçamento, a imprensa, os versos, os sermões, o romance – a arte, e o país é uma grande consciência falsa» (F: 421). Há um elemento neste passo cuja presença parece destoar: a ciência, encarada justamente pelas correntes do pensamento que alimentam o espírito d’As Farpas como o derradeiro reduto da verdade (cf. supra: 1.2.2.2.). Mas a sua inclusão nesta sequência de lugares da mentira fica esclarecida à luz do que Eça escreve no número de janeiro de 1872 – as verdades da ciência que vigoram em Portugal são obsoletas e estão ultrapassadas, logo não podem ser encaradas como tal: «– Mas, Santo Deus, estuda-se?/ – Sim, estudam-se ciências – que levam 5 anos a estudar – e que estão atrasadas 10 anos» (F: 324). Em 1890, quando Eça recupera este texto para a edição de Uma Campanha Alegre, as mesmas ciências estarão atrasadas – vinte anos (cf. UCA: 251). Já as restantes instâncias enumeradas – nomeadamente a política, a literatura, a religião, a imprensa – constituem efetivamente alvos privilegiados das farpas queirosianas. É precisamente neles, na sua retórica particular, que se concentra boa parte da intervenção crítica destas páginas – uma intervenção crítica que a posterior obra ficcional queirosiana irá retomar e em muitos casos amplificar, sem nunca perder a referência do seu projeto-matriz. Como procurarei demonstrar nos próximos pontos do presente capítulo, no âmbito da política a eloquência, que poderia ser o revestimento elegante da inteligência, encontra uma existência desqualificada, reduzindo-se à categoria de expediente ao serviço de uma estratégia ela se faz lentamente e fecundamente na sociedade inglesa. / É assim que queremos a revolução. Detestamos o facho tradicional, o sentimental rebate de sinos, e parece-nos que um tiro é um argumento que penetra o adversário… um tanto de mais!» (F: 79) 81 «Outra coisa lhes pedimos, senhores operários: é que contenham certas tendências que os senhores vão mostrando para a literatura. Aparecem aqui e acolá, nos anúncios, prosas de operários que em termos poéticos e com muita retórica agradecem aos patrões, exprimem o seu direito, ou suscitam a sua opinião. Os senhores não têm que fazer prosa. Prosa fazemo-la nós – e é mesmo uma das causas por que teremos de responder amargamente – no dia do juízo social» (F: 557). 77 de ludíbrio; na religião, Eça critica a linguagem moralmente equívoca, a ritualização de fórmulas que afasta o indivíduo da reflexão e exclui do verbo o espírito que o deveria habitar; a imprensa é o território da irrelevância informativa, dominado por agendas ligadas ao grande e ao pequeno poder, sem espaço para o pensamento, mas acolhendo a baixa retórica constitucional em toda a sua amplitude. E, sendo As Farpas contemporâneas das Conferências Democráticas do Casino, a literatura, como é natural, é também objeto, nas suas páginas, de um consistente núcleo de intervenções críticas, visando quer o culto persistente da linguagem do romantismo, quer principalmente a artificialidade na relação que ela estabelece com o seu tempo, com o viver social em cujo contexto é produzida. Uma vez que todas estas questões se projetam posteriormente na ficção queirosiana, em especial nas obras da fase realista e naturalista, procurarei ainda seguir a sua pista nesse âmbito situado a jusante d’As Farpas: nesse sentido, abordarei também alguns aspetos da respetiva tematização nessa ulterior obra ficcional, na medida em que os termos desta recuperação temática têm, em muitos casos, a sua fonte primitiva claramente localizada nas páginas d’As Farpas. 2.2.2.1. O discurso da política As feições do constitucionalismo tal como Eça as captou traçam-nos o retrato de um regime atolado nas inércias que ele próprio gerou: o sistema promove lutas partidárias estéreis, as eleições são uma coreografia viciada, os interesses pessoais sobrepõem-se sistematicamente aos coletivos e os políticos parecem desprovidos de qualquer capacidade para produzir ideias ou ações suscetíveis de contribuir para a organização e a direção do país. Dificilmente se encontrarão vestígios de uma figura política desenhada com benevolência na obra queirosiana; no entanto, são muitos os exemplos de benevolência no acolhimento de que essas figuras são objeto nos contextos diegéticos em que se movem. Isto aponta para uma leitura inevitável: significa que os vícios associados à classe política criaram raízes e se instalaram como cultura no sistema social. Se os agentes políticos são incompetentes no que diz respeito à produção de ideias e de ações que respondam às necessidades do Estado e ainda assim são celebrados como exemplos de talento, então é porque o critério de aferição 78 das capacidades políticas se deslocou para fora do estrito âmbito das ideias propostas e das ações desenvolvidas e se fixou noutro aspeto, necessariamente acessório. As consequências dessa deslocação e do correspondente esvaziamento da política enquanto ação definidora de formas de organização coletiva encontram-se amplamente representadas na obra queirosiana. Nela abundam os ministros ineptos, os deputados medíocres, os homens de Estado nulos – com a particularidade de, no entanto, todos eles gozarem de um prestígio alargado e serem considerados homens de talento, quando não de génio. Mesmo que, como no caso do conselheiro Gama Torres, de O Conde de Abranhos, esse génio não tenha outra manifestação senão a mesma frase irrelevante, sempre repetida, a pontuar uma existência de inércia e silêncio absolutos (cf. CA: 55-8), ou que esse talento se resuma ao esplendor que emana da larga testa de José Joaquim Alves Pacheco, em A Correspondência de Fradique Mendes, e a mais duas ou três afirmações tão anódinas como a de Gama Torres (cf. CFM: 161-168). Em regra, porém, as muito enaltecidas qualidades de ministros, deputados e outros atores políticos fixam-se num aspeto muito particular da sua atividade: os respetivos dotes oratórios. As competências discursivas parecem assim ocupar todo o espaço de atuação política que lhes deveria estar reservado – daí resultando a sistemática confusão entre política e retórica. Na carta a Joaquim de Araújo acima citada, Eça referia-se à batalha que As Farpas de Ramalho travavam contra a retórica do constitucionalismo – a retórica parlamentar, ministerial, régia, burocrática. Essa batalha de Ramalho não é, na sua essência, diferente daquela que ambos começam em 1871, e que depois Eça, no que lhe dizia respeito, deslocaria para a sua obra ficcional. Mas o ataque que As Farpas de Eça e Ramalho movem à retórica não é uma ação incondicional. Num artigo do número de setembro de 1871 a que já aludi acima, Ramalho, ao criticar a forma como decorrem os debates parlamentares, deplora sobretudo o registo desqualificado, os «palavrões grotescos», o «desasseio ordinário», «a reles frescata da moderna tribuna portuguesa». O que Ramalho exige não é que no parlamento haja Demóstenes («não cremos que eles sirvam para muito, nem que deles proceda grande bem»), mas que a palavra parlamentar readquira a gravidade com que se exprime necessariamente o pensamento elevado: O plebeísmo da palavra torna rasteira a opinião. A baixeza indecorosa do estilo é um peso que desloca insensivelmente o pensamento da sua dignidade e da sua elevação. Uma câmara que fala mal é impossível que proceda bem. Se ela tivesse conceções elevadas e retas, a sua linguagem seria indispensavelmente comedida, clara e grave. (F: 173-74) 79 Uma parte muito significativa das farpas queirosianas dedicadas à retórica política concentra-se precisamente na censura de uma prática discursiva inferior, que usa como argumento o insulto e prefere o ruído à discussão. No edição de agosto de 1871, Eça escreve uma sequência de três artigos sobre a questão da decadência do exercício parlamentar dos deputados portugueses – depois de abrir o número com um texto em que denuncia os argumentos oblíquos invocados pelos mesmos deputados para votarem contra uma reforma constitucional cuja necessidade todos eles afirmavam reconhecer. O primeiro desses três artigos, o mais violento da série, acusa o parlamento de substituir «todas as questões de administração, de política, de instrução, de dinheiro, etc.» por uma «ventania de insultos trocados, de desmentidos brutais, de agressões imbecis» (F: 139); o segundo reporta a narração de uma sessão parlamentar que resultou em autêntico motim, sendo os deputados representados «expedindo uivos, ladrando, miando, piando, grunhindo» e arremessando sobre as carteiras do parlamento «murros, socos, punhadas, encontrões, pontapés, cachações, palmadas, estoiros, cartoladas, todas as variedades sonoras de uma argumentação eloquente» (F: 139-40); o terceiro assinala novamente a vulgarização do registo ofensivo, instalado em todos os quadrantes da atividade parlamentar: «Leia-se qualquer sessão da câmara: a palavra insulto vem, volta a cada momento: coroa pomposamente os períodos: explica, comenta, argumenta e legisla» (F: 142). Mas já no primeiro número d’As Farpas Eça apontava a degradação das sessões parlamentares em termos semelhantes («A câmara tem apoiados que são apupos, outros que são insultos! Estabelecem-se a cada momento diálogos, ironias, motejos, graçolas. Uma luz bastarda cai sobre tudo aquilo» – F: 50), e no terceiro ilustraria com a agitação registada numa sessão específica, a do dia 29 de junho (mais do que agitação: «A assuada, o motim, o chasco, o charivari»), o juízo formulado no número inicial (F: 98- 100). O que Eça deplora em todos estes passos é aquela «baixeza indecorosa» a que se refere Ramalho, e que nestes artigos comparece no seu grau mais baixo e mais indecoroso. No texto de Ramalho Ortigão, a degradação da palavra é solidária da degradação do carácter, como se, numa perspetiva semiológica, fosse o seu significante. A recuperação da dignidade oratória da câmara dos deputados, na sua perspetiva, só poderia acontecer se em cada uma das suas cadeiras «se sentasse um homem digno e um cidadão honesto inteiramente devotado à justiça» (F: 174), porque desta atitude moral emanaria necessariamente um verbo 80 iluminado, como o de Lincoln82. Não estamos, na verdade, muito longe de um conceito de orador proveniente do próprio sistema da retórica: o vir bonus dicendi peritus de Catão, que postula a precedência das qualidades éticas sobre os atributos propriamente técnicos. Os próprios reparos que Ramalho faz à palavra banal, relaxada, grotesca, ou aos solecismos dos deputados portugueses, ou ainda ao «bamboleio de inflexões e de maneiras plebeias» com que estes proferem os seus discursos, são críticas enquadráveis no âmbito da condenação (retórica) do vitium contra a puritas (cf. Lausberg, 1982: 120), ou da denúncia (igualmente retórica) de uma pronuntiatio anómala. Em última instância, o que Ramalho reclama é um paradigma de homem político portador de um ethos que o invista de credibilidade enquanto orador e enquanto legislador, projetando assim um ideal de correspondência ao nível dos planos do carácter, do discernimento e da expressão – o qual não é alheio à representação que, segundo Michel Meyer, a retórica adquire historicamente no contexto da romanidade83. Com efeito, o que anima as manifestações de repúdio da retórica política que se encontram disseminadas n’As Farpas é sobretudo a recusa de uma certa retórica – de uma retórica desqualificada. Aliás, num dos artigos que escreve para o primeiro número, Eça inclui a eloquência na enumeração das qualidades que a câmara dos deputados deveria ter mas não tem: «A câmara […] não tem princípios, nem ideias, nem consciência, nem independência, nem interesse pelo país, nem ciência, nem eloquência, nem seriedade» (F: 48). Não nos encontramos, por conseguinte, perante uma qualidade negligenciável em si mesma; marca de sofisticação, de elevação, de distinção e inteligência, a eloquência é uma competência que se espera de um deputado da nação, uma necessidade ditada pela própria dignidade das suas funções. Há nesta posição, apesar da negação do paradigma representado pela oratória de Demóstenes, seguramente uma herança clássica – a retórica sustenta os alicerces a partir dos quais se viria a constituir a ciência política (cf. Júnior, 2015), e, mesmo depois de ver perdida a sua centralidade, a verdade é que a política a preservou sempre como instrumento fundamental da sua prática (e. g. Nelson, 1987: 210; Reboul, 1991: 90). Mas este registo de uma eloquência superior, clara e grave, digna e eficaz, é no panorama do constitucionalismo um lugar vazio, rodeado de todas as modalidades da sua degradação. Por isso, na perspetiva 82 «Na tribuna moderna o homem cuja voz deixou clarões tão intensos que parecem disgregados das imortais irradiações da Bíblia, foi Abraão Lincoln, o libertador dos escravos. E, contudo, ele não era um sábio nem um erudito, e muito menos um retórico; era simplesmente um espírito profundamente democrático e um coração elevadíssimo inteiramente dedicado à humanidade» (F: 174). 83 «Les rhétoriques, où le primus movens est l’orateur, sont celles qui ont vu le jour dans le monde romain. Cet univers de pensée considère les vertus de celui qui prend la parole comme le modèle de la source exemplaire de la persuasion, en politique comme en droit» (2009: 18). 81 d’As Farpas, quando não se apupam nem insultam, os deputados interpretam a eloquência na sua forma mais inchada e exuberante, como faz Osório de Vasconcelos no exemplo abordado no ponto 2.1. – isto é, ou ficam muito aquém das suas exigências de dignidade, ou vão muito além (melhor seria dizer muito ao lado) dos seus requisitos de estilo e de erudição. Assim, o juízo queirosiano acerca da eloquência parlamentar oscila de um modo geral entre a negação perentória da sua existência84 e o reconhecimento de que ela existe, sim, mas sob uma forma desqualificada, vocacionada sobretudo para levar a cabo manobras de manipulação e ludíbrio85 – e a metáfora reiterada do papagaio como representação dos atores políticos (F: 45; 56) acaba por ser a expressão definitiva do esvaziamento desse espaço de intervenção discursiva no qual se deveria projetar a expressão de um pensamento e de uma ação estruturados e consequentes. Uma modalidade específica da afetação retórica que será mais tarde objeto de frequentes revisitações no âmbito da produção ficcional queirosiana é aquela que resulta da contaminação da oratória parlamentar pela literatura. O universo da política é especialmente permeável a perfis provenientes do campo da criação literária, nomeadamente da poesia. Logo na farpa com que abre o primeiro número, Eça figura esse universo político como asilo natural das vocações poéticas contemporâneas86, circunstância glosada em textos posteriores, por exemplo, através da representação do deputado Pinheiro Chagas entregue a meditações líricas em plena sessão da Câmara87, ou de uma hipotética portaria de conteúdo estritamente poético88, resultado de estarem «as secretarias, como é notório, povoadas de vates líricos e outras espécies sentimentais não menos torpes» (F: 344). O resultado inevitável dessa porosidade das fronteiras que separam os dois campos é a progressiva indistinção entre os domínios do talento literário e do talento político (e nem está aqui em causa o erro de avaliação que em regra subjaz à perceção coletiva de determinadas características como manifestações 84 «A câmara não tem eloquência» (F: 49); «Não sai dela uma reforma, uma lei, um princípio, um período eloquente, um dito ao menos!» (F: 22), etc. 85 «[Eloquência parlamentar] É a série de palavras sabidas que vai de Barros e Cunha o sensível, a Osório o arrevesado – passando por Santos e Silva o facundo» (F: 325); «Com elas [as reformas] o ministro governa, entretém, ilude, caracola sobre a eloquência de aluguer, tem pretexto para governar, despachar, colocar, resplandecer e mandar […]» (F: 356); «[…] as leis são um aparato de eloquência parlamentar e não uma eficácia de organização civil» (F: 350), etc. 86 «Olha, queres tu saber, poesia lírica? – Vai-te embora, esconde-te nos conselhos de ministros ou nas secretarias de Estado!» (F: 26). 87 «O SR. PINHEIRO CHAGAS – (Deitado, fumando, com ar melancólico): /«Oh virgem pálida e triste / Branca visão doutros céus!» (F: 99). 88 «Portaria de 10 de janeiro / Ai! Adeus acabaram-se os dias / Que ditoso vivi a teu lado, / Soa a hora, o momento fadado, / É forçoso deixar-te e partir… / Secretaria do reino. – O ministro, António Rodrigues Sampaio» (F: 344-45). 82 de talento). Em diversos romances queirosianos, por exemplo, encontramos reiteradamente um termo como inspirado a qualificar o poeta e o político: aquilo que deputados como Alípio Abranhos89, Carvalhosa90 ou Rufino91 fazem não é, afinal, muito diferente do labor de poetas como Artur Corvelo92 ou Tomás de Alencar93. A recorrência desta ideia, e nomeadamente deste termo94, se por um lado ilustra o império dos lugares-comuns lexicais e conceptuais em vigor, por outro exprime algo porventura mais relevante para o caso: a matriz não-reflexiva, não-analítica das duas atividades em questão, a literária e a política. Um político inspirado – e celebrado por multidões enquanto ser em estado de inspiração – está tão longe, no universo queirosiano, de se mostrar capaz de programar e executar uma ação governativa eficaz como, no Ion de Platão, um rapsodo, ou mesmo um poeta, está longe de ser capaz de demonstrar verdadeiro conhecimento sobre a natureza da poesia que um recita e o outro compõe. A inspiração, sustenta a tese platónica, é de natureza diferente do conhecimento: ela provém de uma zona de irracionalidade pura95; sendo assim, tudo o que produz é tão-somente «apelo emocional» (Jabouille, 1988: 16). Não é outra coisa aquilo que um político inspirado está em condições de produzir: puro apelo emocional, que, para além de espetáculos capazes de animar uma sessão da câmara ou um sarau no teatro, não representa qualquer contributo efetivo em termos de programa ou ação política. Por outro lado, as afinidades entre os universos da política e da literatura estão longe de se esgotar neste jogo de espelhos: se a atividade política é, na obra de Eça, praticamente indiscernível das práticas retóricas dos seus agentes, essas práticas estão quase sempre 89 «E Alípio, que subira à tribuna “simples Alípio Abranhos” – era, quando desceu, “o nosso inspirado Alípio Abranhos!”» (CA: 128). 90 «Era conhecido pelas suas imagens – safadas pelo uso de gerações, como velhos patacos do tempo do Sr. D. João VI – e os jornais faziam sempre preceder o seu nome do adjetivo inspirado!» (Cap: 203). 91 «– Quem é por fim esse Rufino? perguntou Carlos […]. / Ega não sabia. Ouvira que era um deputado, um bacharel, um inspirado…» (M: 583). 92 «É hoje posto à venda o livro de poesias do nosso ilustre amigo Artur Corvelo, os Esmaltes e Jóias. […] Vamos ler e falaremos de espaço desta interessante estreia do inspirado poeta» (Cap: 305); «Os Amores de Poeta são dedicados a um augusto personagem. O público espera-os ansiosamente, este debute teatral do inspirado vate» (Cap: 312). 93 «Os ombros descaíam-lhe na saudade desse mundo perdido. E parecia mais lúgubre, com a sua grenha de inspirado saindo-lhe de sob as abas largas do chapéu velho» (M: 178). 94 No caso de Carvalhosa, o narrador diz-nos que «os jornais faziam sempre preceder o seu nome do adjetivo inspirado» (Cap: 203) – e, de facto, mais tarde podemos constatar que o Século se lhe refere como «o inspirado orador Carvalhosa» (Cap: 242). 95 «[…] o poeta é uma coisa leve, alada, sagrada, e não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da razão» (534b). 83 vinculadas a uma matriz literária de inspiração romântica. Um dos percursos seguramente mais comuns do ator político enquadrado pela objetiva social dos romances queirosianos começa pela criação, na juventude, de uma obra literária – normalmente poética – de gosto romântico, passa pelo reconhecimento, por parte de um círculo relativamente estreito e medíocre, do talento literário exibido nessa obra, e culmina no redirecionamento dos dotes expressivos aí exibidos, na medida em que estes vão ao encontro da sensibilidade dominante, para alimentar uma carreira política. Daí que, à semelhança do que se pode ler n’As Farpas, em A Capital! os ministérios apareçam igualmente «povoados de antigos poetas líricos» (Cap: 393), ou que Z. Zagalo, o narrador de O Conde de Abranhos, se refira a alguns «homens de estado, que foram, são ainda, poetas de alta imaginação» (CA: 30)96. Da mesma forma, Castanheiro, em A Ilustre Casa de Ramires, tenta convencer Gonçalo a concretizar os seus projetos literários acenando-lhe com uma futura carreira política97, cálculos semelhantes aos que Artur Corvelo, em A Capital, projeta inicialmente para si mesmo98. Como já referi, Eça e Ramalho (sobretudo Ramalho), n’As Farpas, referem-se mais do que uma vez à eloquência como uma competência básica de alguém que se propõe abraçar uma carreira política: ela é, por assim dizer, a menor das obrigações parlamentares de um deputado. Aquilo que n’As Farpas se critica é algo diverso: é a pseudo-eloquência que se crê contemporânea de Demóstenes, que se esgota numa retórica da ênfase, que exibe os brilhos de uma erudição despropositada, que incorpora, na capa literária com que faz questão de se recobrir, a estilística e a imagética românticas. Interpretar a política como eloquência, reduzi- la a um exercício discursivo, representa em si mesmo uma compreensão enviesada do lugar que a política ocupa na organização de um Estado e do papel que ela desempenha no seu desenvolvimento. No entanto, quando a esta interpretação equívoca do que é a política se soma uma interpretação equívoca do que é a eloquência, o resultado final desta série de deturpações não pode deixar de ser a caricatura do objeto inicial. 96 Nesta mesma obra, aquela que mais detalhadamente explora os meandros da vida política, comparece ainda um «famoso Torres, que já fora duas vezes ministro da Marinha» e a quem se aponta «a sua posição literária como um dos nossos mais estimados dramaturgos» (CA: 177). 97 «E depois, menino, a literatura leva a tudo em Portugal. […] Pois, amigo, de folhetim em folhetim, se chega a S. Bento!» (ICR: 84). 98 «E numa exaltação pela sala, falou do seu talento, das altas posições, que dão as letras, da influência da imprensa, de uma cadeira em S. Bento, e da posteridade» (Cap: 171). Mesmo quando essa vocação literária não chega a concretizar-se, é frequente que dela haja vestígios – como no caso de Alípio Abranhos, que compôs secretamente versos na juventude (CA: 29-30), ou no do deputado Carvalhosa, que, quando estudante, em Coimbra, «fazia discursos líricos no Teatro Acadámico» (Cap: 203). 84 Assim, o aplauso unânime (quase unânime – porque há sempre aquelas personagens que constituem uma referência crítica nas obras queirosianas, nem que seja sob a forma de uma voz que se refuta a si própria, como acontece em O Conde de Abranhos) à classe política que atravessa os romances de Eça de Queirós funda-se precisamente nas razões pelas quais aquilo que essa classe produz não pertence à categoria de política. Quando o Conselheiro Acácio diz que o presidente do Conselho é «o nosso primeiro parlamentar; vastíssimo talento, uma linguagem muito castigada!» (PB: 238) ou quando o conde de Gouvarinho considera Rufino superior aos deputados franceses, ingleses ou espanhóis devido à opulência da sua oratória («–Tenho ouvido grandes parlamentares, o Rouher, o Gladstone, o Canovas, outros muitos. Mas não são estes voos, esta opulência…» – M: 603), incorrem notoriamente em três vícios: em primeiro lugar, avaliam a competência parlamentar em função daquilo que é apenas habilidade oratória; em segundo lugar, tomam por genuína eloquência aquilo que é sobretudo ostentação e espalhafato (a «linguagem castigada», os «voos» e a «opulência» destes exemplos denunciam esta degeneração do gosto, mas fá-lo ainda melhor o elogio sistemático dos jornais à imagética medíocre do deputado Carvalhosa99); em terceiro lugar, promovem o desprezo por aquilo que é o trabalho político substantivo. Neste contexto em que um deputado é apreciado sobretudo pela sua oratória, eventualmente pela capacidade de embaraçar uma bancada adversária com um comentário lateral100, estes méritos espúrios ocupam o lugar das legítimas competências de um político – as quais, numa inversão de valores muito frequente nos retratos queirosianos da sociedade portuguesa, acabam por ser genericamente menosprezadas. O passo em que o conde de Gouvarinho compara a opulência do estilo de Rufino à expressão objetiva de outros reputados parlamentares europeus («É tudo muito seco, ideias e factos. Não entra na alma!» 99 Cf. n. 90. 100 Logo abaixo desta retórica inconsequente e obsoleta na série de competências que se exigem a um deputado, parece estar a sua capacidade de produzir comentários chistosos nas suas intervenções parlamentares. O conde de Gouvarinho, por exemplo, vê reconhecidos os seus «enormes dotes de parlamentar» menos pela eloquência do que pela mordacidade das suas intervenções: «O Neves no entanto celebrava o Gouvarinho como orador. Não que tivesse os rasgos, a pureza, as belas sínteses históricas do José Clemente! Nem a poesia do Rufino! Mas não havia outro para as piadas que ferem e que ficam cravadas, ali a arder, na pele do touro! E era a grande coisa na Câmara – ter a farpa, sabe-la ferrar!» (M: 574); o próprio Alípio Abranhos adquire primeiro na Câmara, a contragosto, a reputação de «grande chalaceador» – sendo por isso, aliás, muito saudado: «– É disso que se quer! É disso que se quer! Vejo que o amigo é homem de pilhéria. É matá-los com dichotes…» (CA: 122). Mas o certo é que essa habilidade do conde de Gouvarinho o coloca num plano inferior ao de deputados como o incensado Rufino, e também Alípio, incomodado com o epíteto de «chalaceador», faz questão de conquistar o estatuto de deputado eloquente, com o qual se pretende impor entre os seus pares: «compreendia que a maneira eficaz e digna de mostrar à Câmara e ao país a verdadeira feição do seu talento sério, era pronunciar um grande discurso de eloquência grave […]» (CA: 123). 85 – M: 603) ou aquele em que Carvalhosa, na sua primeira encarnação como personagem de A Tragédia da Rua das Flores, aponta ao último discurso de Gambetta o problema da falta de estilo («faltam-lhe imagens, o belo, a eloquência, as flores» – TRF: 87) exemplificam uma hierarquia na qual a forma tem precedência sobre o conteúdo – ou na qual a forma é o verdadeiro conteúdo101. Há ainda um derradeiro desafio que se coloca ao discurso político: a realidade que o enquadra e que lhe serve de referência direta tende, no caso português, a progressivamente perder consistência, a rarefazer-se, e, sem matéria substantiva em que se possa ancorar, o discurso vê-se na contingência de encontrar em si mesmo o desígnio da sua existência. Este problema é abordado exemplarmente através do caso específico do discurso da coroa (o discurso que no início de cada sessão legislativa o chefe de Estado dirige à Câmara), o qual não só evidencia um desconcertante alheamento do mundo, como permanece aparentemente indiferente ao progressivo descrédito com que é recebido, dada a insistência com que, ano após ano, retoma um registo compromissivo sistematicamente violado (F: 94-5). Ora, na verdade, esta virtualização do discurso da coroa é vista como uma consequência inevitável do estado geral de decadência do país, e em particular da ineficácia das políticas dos sucessivos ministérios: a degradação da atividade governativa acaba por condenar o discurso político a uma condição de perda progressiva de referência, conservando-se este apenas enquanto «fórmula de um cerimonial antigo e rococó» (F: 96): O discurso da coroa tem de dizer alguma coisa ao país: mas o quê? factos da vida política? da ação civilizadora? do pensamento público? Como? se não se fez nada, não se civilizou nada, não se pensou nada? O discurso da coroa, nesta falta de significativos factos da vida pública, tem de recorrer aos cancans interessantes da vida particular. Não podendo falar como uma página de história, conversa como um habitante do Chiado. De outro modo não tem que dizer ao país. O seu dever era resumir os factos da política, os melhoramentos, as criações – tudo o que se fez no interregno parlamentar. Mas se nesse interregno o facto mais característico na vida nacional foi o partir para o Porto a companhia do Ginásio, que remédio senão dar o discurso da coroa parte desse sucesso constitucional! (F: 95)102 Dada a esterilidade da atividade governativa, não se podendo alimentar de matérias com efetivo conteúdo político, o discurso, constata Eça, ver-se-á na contingência de se 101 É por isso que, no sarau de Os Maias, as multidões conservadoras acabam a aplaudir a república representada no poema de Alencar: a forma ocupara, entretanto, todo o espaço do conteúdo (cf. M: 607-12). 102 São claras as afinidades entre este artigo e aquele que Ramalho escreve sobre o discurso da coroa para o número de janeiro de 1872 (F: 345-47). 86 tornar noticioso, e daí literário, e depois, finalmente, poético103 (F: 95-6), tornando-se cada vez mais precários os vínculos que o ligam ao seu suposto universo de referência e, depois, rarefazendo-se até à completa dissolução a sua relação com a realidade. Na verdade, o discurso da coroa está encurralado entre duas hipóteses que, de modo diferente, comprometem decisivamente a sua existência enquanto legítima manifestação do sistema: ou continua a ser o que é, uma mentira, «uma negação da verdade pública, uma falsificação da história» (F: 96), e, como tal, carente de legitimidade ética; ou, optando por ser fiel à verdade, deixaria nesse momento de ser a expressão política do sistema – porque a sua voz passaria a confundir-se com a das próprias Farpas: Porque, sabe a coroa o que logicamente devia dizer? – o seguinte: «Meus senhores – É com o maior desprazer que me acho no meio de vós, porque estou fatigado da vossa imbecilidade, da vossa intriga e do vosso desleixo. A situação exterior é esta: somos o que somos, porque nos deixam sê-lo por misericórdia. A interior é esta: finanças em ruína; exército indisciplinado; marinha nula; colónias exploradas pelo estrangeiro; a indústria entorpecida; clero ignorante e imoral; vida municipal extinta; funcionalismo progredindo; pensamento emudecido; carácter público corrompido; serviços públicos desorganizados; leis em confusão; agiotagem em triunfo; proletariado em miséria; etc., etc., etc. Façam o favor de se sentar, e Deus os amaldiçoe. Está aberto isto.» Assim devia falar a coroa. (F: 97) Assim, o discurso político na sua expressão legítima é, em Portugal, segundo As Farpas, uma impossibilidade teórica: uma impossibilidade ditada, por um lado, pela pequenez intelectual da classe parlamentar, incapaz de produzir pensamento político (ou sequer pensamento em sentido lato: «confessem connosco que são deploráveis todos os discursos que têm sido proferidos no parlamento em questões de crítica, de doutrina e de ciência», lê- se no primeiro número – F: 49), e, por outro, pela própria ausência de uma ação política substantiva, da qual, em rigor, só se poderia dizer com propriedade – que não existe. Ora, precisamente na medida em que a ação política é inexistente, o espaço que essa ação deveria ocupar é paradoxalmente ocupado por um discurso político hipertrofiado, que se apresenta ao país nas suas múltiplas modalidades de aparato vão, de sentido obscuro ou de verbalização indigna. Na sua dimensão institucional, o discurso político é, por conseguinte, na perspetiva de Eça, o resíduo, inegavelmente tóxico, que sobreviveu ao declínio e à extinção de todas as qualidades da classe política – e que, tendo-lhes sobrevivido, ocupou os 103 Este esvaziamento do discurso ideológico, que, uma vez destituído do seu objeto natural, é preenchido por assuntos e registos alternativos, nomeadamente o registo lírico, é um cenário que Eça explora com alguma frequência (cf. F: 176, 314-15, 344-45, etc.). 87 lugares que ficaram vazios em resultado dessa extinção. 2.2.2.2. O discurso da religião Os ataques que na sua obra Eça desfere contra o catolicismo não podem ser encarados como a manifestação de uma antipatia pessoal, nem sequer como uma marca ideológica singular no contexto de ideias em que ocorrem. Bastaria a assunção do seu tributo ao realismo, com o que isso implica em termos de renúncia a um projeto estético ou ideológico individual e de adesão a um programa coletivo, para enquadrar num plano concertado a luta queirosiana contra as velhas estruturas que sustentam um país, entre outras coisas, católico e devoto104. Com efeito, Eça está longe de travar sozinho esse combate contra aquilo que aos olhos das correntes progressistas do seu tempo se afigurava como uma das mais poderosas forças sociais de entrave ao desenvolvimento do país. No artigo «Eça de Queirós e Clarín ou o romance como discurso ideológico», Carlos Reis ensaia um esboço de mapeamento dos ambientes de inclinação anticlerical que rodeiam a conversão de Eça ao realismo e as suas primeiras produções filiadas nesta corrente105. Referências do anticatolicismo como Michelet e Proudhon, movimentos emergentes como o socialismo e o republicanismo, a par dos sinais de repúdio por parte da Igreja em relação ao progresso científico, político e social, bem como de reforço das suas posições conservadoras em matéria de doutrina – são vários os fatores que contribuem para o surgimento de uma sensibilidade crítica em relação à Igreja. É nesse contexto, refere Carlos Reis, «que se enuncia, a várias vozes e em vários registos, um discurso ideológico-artístico de propensão anticlerical e laicizante mais ou menos audível, mas não necessariamente de intenção anti-religiosa» (1999: 98). 104 «Os meus romances importam pouco […]; o que importa é o triunfo do Realismo» (Cor, I: 187); «O que queremos nós com o Realismo? […] queremos fazer a fotografia, ia quase a dizer a caricatura do velho mundo burguês, sentimental, devoto, católico, explorador, aristocrático, etc.» (Cor, I: 188). 105 «O anticlericalismo é um componente decisivo do contexto cultural e mental em que se enquadra o discurso ideológico queirosiano, quando ocorre a génese d’O Crime do Padre Amaro, num tempo propício a reacender uma questão religiosa que tinha raízes remotas na cultura portuguesa» (1999: 97). 88 Convém não esquecer que no século XIX a Igreja de Roma é forçada a enfrentar uma série de complexos desafios que ameaçam quer a estabilidade da sua estrutura temporal, quer a solidez do seu corpo teológico: por um lado as revoluções liberais tinham atingido os alicerces políticos, sociais e ideológicos em que ela se apoiava historicamente; por outro o pensamento filosófico produzido por correntes e autores ligados ao racionalismo, ao idealismo, ao materialismo, ao positivismo – Kant, Hegel, Fichte, Feuerbach, Comte… – colocava cada vez mais desafios à sustentação da teologia tomista. Entretanto, correntes de doutrinação política como o socialismo e o anarquismo ameaçam desviar do seio do catolicismo as populações mais atingidas pela miséria social – preocupação que viria depois a estar na base da doutrina social da Igreja. Vários progressos no âmbito das ciências exatas, naturais e sociais atingem o coração de algumas verdades fundamentais da fé – desde os trabalhos no domínio do historicismo bíblico de Strauss e Renan até ao evolucionismo de Lamarck e Darwin. Em face deste cenário, a Igreja defende-se. Por um lado, consegue garantir a preservação do seu papel como instrumento de reprodução de estruturas sociais: pelo magistério de proximidade que o clero mantém junto das populações, pelas influências que manobra nos processos eleitorais, pela presença nas estruturas do poder político (cf. Ferreira, 2000). Por outro, reage contra os ventos de mudança: na encíclica Mirari Vos (1832), Gregório XVI ataca o indiferentismo religioso e as liberdades de consciência, de opinião e de imprensa consignadas na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, posição reforçada depois por Pio IX, que no Syllabus (1864) elenca e condena os erros da época: racionalismo, socialismo, comunismo, autonomia da razão e da moral em relação à fé, laicidade dos Estados, liberdades individuais de culto, de consciência, de expressão, etc. Perante a vulnerabilidade das verdades de fé quando submetidas ao escrutínio da história e da ciência, o mesmo papa responde com a instauração de dogmas como o da Imaculada Conceição (1854) e o da infalibilidade pontifícia (Concílio do Vaticano I, 1870). Contemporâneas d’As Farpas, as Conferências do Casino são, entre muitas outras coisas, também um marco incontornável na afirmação pública de um pensamento crítico de pendor anticatólico. Enquanto Antero, Eça e Adolfo Coelho (mais do que Augusto Soromenho) apostavam numa ação que pudesse contribuir para que o país se sincronizasse com a hora da Europa transpirenaica, Roma ia procurando a todo o custo travar os ponteiros desse relógio. Antero de Quental denuncia o papel da Igreja na história da Europa, 89 e em particular na história dos povos do Sul, elegendo o catolicismo pós-tridentino como o mais determinante dos três grandes fatores responsáveis pelo seu declínio106. Está em causa, na abordagem anteriana, sobretudo o condicionamento do livre uso da razão e o ataque ao princípio da autonomia da consciência individual que o concílio determinara, na sequência das decisões nele tomadas107. Antero passa em revista medidas e dogmas impostos em Trento, assinalando o respetivo alcance: o dogma do pecado original atingia a liberdade e a dignidade humanas, a transubstanciação feria a razão natural dos fiéis, a confissão fundava o poder do confessor enquanto elemento infiltrado na célula familiar, emergindo afinal o conceito de que «o homem deve ser um corpo sem alma, que a vontade individual é uma sugestão diabólica, e que para nos dirigir basta o Papa em Roma e o confessor à cabeceira» (1987: 39). Todas estas questões estão presentes no espírito de Eça e informam decisivamente o cunho das suas críticas de cariz antirreligioso, quer elas se projetem em personagens de ficção, quer ocorram em textos de intervenção. Elas ecoam com assinalável precisão, por exemplo, no passo de O Crime do Padre Amaro em que o doutor Gouveia explica a João Eduardo, tomando o exemplo de Amélia, todo o fenómeno de submissão do espírito do fiel católico à autoridade da sua Igreja e a influência direta que sobre ele exercem os seus representantes108. Os múltiplos exemplos de personagens femininas expostas à influência dos respetivos ‘diretores espirituais’109 (Amélia nem sequer constitui o caso mais típico, que se 106 Cf. «Baixávamos pela indústria, pela política. Baixávamos, sobretudo, pela religião» (1987, 31); «Tal é uma das causas, senão a principal, da decadência dos povos peninsulares. Das influências deletérias nenhuma foi tão universal, nenhuma lançou tão fundas raízes» (1987: 49). 107 «[…] a liberdade moral, apelando para o exame de consciência individual, é rigorosamente o oposto do catolicismo do Concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus» (1987: 31). 108 «Toda a vida do bom católico, os seus pensamentos, as suas ideias, os seus sentimentos, as suas palavras, o emprego dos seus dias e das suas noites, as suas relações de família e de vizinhança, os pratos do seu jantar, o seu vestuário e os seus divertimentos – tudo isto é regulado pela autoridade eclesiástica (abade, bispo ou cónego), aprovado ou censurado pelo confessor, aconselhado e ordenado pelo diretor da consciência. O bom católico, como a tua pequena, não se pertence; não tem razão, nem vontade, nem arbítrio, nem sentir próprio; o seu cura pensa, quer, determina, sente por ela. O seu único trabalho neste mundo, que é ao mesmo tempo o seu único direito e o seu único dever, é aceitar esta direção; aceitá-la sem a discutir; obedecer-lhe, dê por onde der; se ela contraria as suas ideias, deve pensar que as suas ideias são falsas; se ela fere as suas afeições, deve pensar que as suas afeições são culpadas» (CPA: 583). 109 A questão da passagem do confessor a diretor espiritual (confessor na igreja, diretor em casa das fiéis) é abordada por Michelet em Le Prêtre, la Femme et la Famille: o ascendente do confessor sobre a mulher, o seu papel no enfraquecimento dos laços familiares, o isolamento da mulher numa solidão moral que reforça a dependência, etc. 90 encontra antes em personagens como Maria Eduarda Runa110 ou D. Laura Amado111, por exemplo) representam bem, por um lado, a supressão de todo o princípio de autonomia individual, a alienação da consciência, dos instrumentos de julgamento e de ação, e, por outro, o efeito perverso da entrada do clero numa esfera de proximidade demasiado estreita. O doutor Gouveia, de resto, embora pelas contingências da cronologia não possa ter assistido às Conferências do Casino (a última cena de O Crime do Padre Amaro, volvidos anos sobre os acontecimentos centrais da ação, situa-se precisamente em fins de maio de 1871), exibe um pensamento assinalavelmente sintonizado com as teses aí defendidas. Na sua conferência sobre A Questão do Ensino, Adolfo Coelho, reagindo assumidamente contra a doutrina antiprogressista do Syllabus de Pio IX112, procura demonstrar uma consequência devastadora da subordinação da ciência à religião em matéria de conhecimento: o facto de a religião fornecer um sistema explicativo para a totalidade dos fenómenos torna, ipso facto, inútil o ensino de qualquer disciplina científica113. Também neste caso o doutor Gouveia assume o papel de porta-voz ficcional das conferências, ao defender perante o abade Ferrão ideias muito semelhantes, numa discussão em que sobressai, além do mais, a incapacidade do eclesiástico para rebater a argumentação do representante da ciência114. 110 «O padre Vasques, apoderando-se daquela alma aterrada para quem Deus era um amo feroz, tornara-se o grande homem da casa» (M: 19). 111 «O sacerdote particular deste Deus, o intérprete na terra das suas vontades, era o padre Augusto, que morava numa casa de hóspedes às Portas de Santo Antão, e de quem D. Laura recebia a direção espiritual, as ordens, os conselhos, as admoestações e as baforadas do hálito impregnado de alho» (CA: 69). 112 «“Lembremos” [sic], dizia ainda eu, em cujo espírito estava bem presente a Encíclica e o Syllabus de Pio IX “de que estamos num país em que que o catolicismo é a religião do Estado imposta materialmente à consciência de todos os que são portugueses: o espírito científico é, pois, aqui repelido de tudo o que estiver sob a ação imediata do Estado, perseguido fora dele […]”» (Adolfo Coelho, Alexandre Herculano e o Ensino Público, 1910. Apud Medina, 1984: 76). 113 «A questão da absoluta impossibilidade duma conciliação entre a ciência e a religião salta aos olhos de todos os que têm um pouco de bom senso; mas infelizmente o bom senso, os espíritos raciocinadores são raríssimos. É evidente que os dogmas católicos fornecem solução para todos os grandes problemas científicos; para quê pois a ciência? para quê reagir contra o que está estabelecido na Bíblia e nas decisões dos concílios? As investigações etnográficas e linguísticas são heresias: o Génesis fornece quanto é necessário saber sobre a origem das raças e das línguas. Os geólogos são heréticos, porque o grande fenómeno da criação se acha explicado no mesmo livro de Moisés; as ciências sociais são heresias porque o homem só deve tratar da sua salvação. Como explicar pois a contradição que existe na prática senão pelo estado ilógico dos espíritos e das sociedades, que fazem concessões simultâneas à tradição e à revolução?» (Coelho, 1872: 25). 114 «– Mas quando se manifestam no pequeno os primeiros sintomas de razão, continuava o doutor, quando se torna necessário que ele tenha, para o distinguir dos animais, uma noção de si mesmo e do Universo, então entra-lhe a Igreja em casa e explica-lhe tudo! Tudo! Tão completamente, que um gaiato de seis anos que não sabe ainda o bê-a-bá tem uma ciência mais vasta, mais certa, que as reais academias combinadas de Londres, Berlim e Paris! O velhaco não hesita um momento para dizer como se fez o Universo e os seus sistemas planetários; como apareceu na Terra a criação; como se sucederam as raças; como passaram as revoluções geológicas do globo; como se formaram as línguas; como se inventou a escrita… Sabe tudo: possui completa e imutável a regra para dirigir todas as ações e formar todos os juízos; tem mesmo a certeza de todos os 91 Neste clima de fricção entre um pequeno grupo de jovens que pretendem sacudir consciências e um statu quo que procura impedir que ventos contrários se agitem e abalem as estruturas do poder, as Conferências são encerradas – e essa mesma religião acossada por vários quadrantes, desgastada de tantos embates, inconformada com o liberalismo, e por isso enfraquecida, é afinal a razão por que o Marquês de Ávila e Bolama decreta a suspensão das sessões do Casino Lisbonense, invocando o artigo 6.º da Carta Constitucional115. Mais convicto, porém, do que um verdadeiro sentimento antirreligioso, era o combate às posições retrógradas da Igreja que estava frequentemente em causa. Num texto em que responde às opiniões críticas que os jornais católicos Bem Público e A Nação publicam sobre a sua conferência, Antero de Quental escreve o seguinte: Eu sou naturalista e, como tal, pouco afeiçoado aos deuses. Simpatizo porém com o que há no sentimento cristão de puro ideal, de humano, de eterno. Neste sentido, não tenho dúvida em me dizer cristão, apesar de não pertencer a igreja alguma… engano-me! exatamente por não pertencer a igreja alguma… É neste sentido também que me considero melhor cristão do que o papa, porque compreendo e sinto melhor do que ele o cristianismo. (Quental, 1982: 322) Também o ataque que As Farpas fazem à Igreja, mais do que os fundamentos da religião, visa sobretudo as suas práticas. Eça tem o cuidado de preservar uma ideia que lhe será sempre cara: a de que o cristianismo comporta na sua origem um princípio de justiça inscrito numa história bela, que as vicissitudes da História foram progressivamente deturpando. Um artigo publicado no número de outubro de 1871 ilustra de forma particularmente feliz esta ideia: no início, Eça evoca um Cristo brando e acolhedor, um «meigo rabi» que quer junto de si as crianças que os discípulos procuravam manter afastadas, lição que contrasta com a atitude do Encomendado de Santos-o-Velho, que proíbe as mães da levarem os filhos à missa; no final, o divórcio entre o exemplo de Cristo e as práticas da mistérios; ainda que seja míope como uma toupeira vê o que se passa na profundidade dos céus e no interior do globo; conhece, como se não tivesse feito senão assistir a esse espetáculo, o que lhe há de suceder depois de morrer… Não há problema que não decida… E quando a Igreja tem feito deste marmanjo uma tal maravilha de saber, manda-o então aprender a ler… O que eu pergunto é: para quê? / A indignação tinha emudecido o abade./ – Diga lá, abade, para que os mandam os senhores ensinar a ler? Toda a ciência universal, o res scibilis, está no Catecismo: é meter-lho na memória, e o rapaz possui logo a ciência e consciência de tudo…» (CPA: 971). 115 Segundo o texto da portaria afixada à porta do Casino Lisbonense a 26 de junho de 1871, o encerramento das Conferências deve-se ao facto de nelas se sustentarem «doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições políticas do Estado» e de tal ofender «clara e diretamente as leis do reino e o código fundamental da monarquia» (apud Rodrigues, 1980: 59). Determinava o artigo 6.º da Carta Constitucional de 1826 (na sequência, aliás, do artigo 25.º da Constituição de 22), à época na sua terceira vigência histórica: «A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Reino» (Miranda, 1984: 95). 92 Igreja projeta-se deste caso particular para toda uma história secular: «Pobres pequenos! consolai-vos. Jesus o vosso amigo, também não é mais feliz: há muitos séculos que ele procura erguer a pedra do seu túmulo, e há muitos séculos que o seu clero carrega na pedra para baixo!» (F: 232). Se considerarmos o processo crítico a que As Farpas submetem determinados aspetos da vida portuguesa, compreende-se que Eça concebe um lugar no sistema para uma eloquência parlamentar que não seja a sua própria caricatura ou para uma literatura que não se alheie das questões do seu tempo. Nesse sentido, é possível que haja também lugar para uma interpretação do cristianismo que não deturpe o exemplo do seu fundador. É, de resto, sintomático que não se encontre nos romances de Eça de Queirós uma personagem que encarne de forma edificante a classe política, que talvez só Fradique interrompa a galeria de escritores medíocres criados por Eça (mas Fradique é a todos os títulos a representação de uma impossibilidade), ao passo que entre os eclesiásticos se destaca, pela interpretação reta que faz do seu ministério, o abade Ferrão, de O Crime do Padre Amaro, precisamente aquela obra em que a Igreja é mais fustigada. O abade Ferrão representa a vocação que a religião poderia ter no mundo se os seus ministros não fossem sensíveis a chamamentos mais mundanos do que cristãos, e é também a manifestação de que, sob o anticlericalismo que informa o programa ideológico de Eça, nele existe um irreprimível fascínio pelos exemplos de santidade, que acaba por pontuar vários momentos da sua obra (cf. Monteiro, 2002). O artigo de abertura do primeiro número d’As Farpas parece disposto a ajudar-nos a compreender esse lugar alternativo que a religião poderia ser, o papel que ela poderia desempenhar na vida das pessoas, em contraponto com os valores que efetivamente representa no momento histórico em curso. Num passo em que a ideia de decadência, transversal a todo o texto, é manifesta, encontramos uma das críticas mais sistemáticas que As Farpas lhe dirigem: o culto dos seus aspetos exteriores, formais (poder-se-ia dizer desde já: retóricos), que acaba por preencher todo o espaço do culto; em contrapartida, a religião «não dá uma regra para o julgamento, nem um critério para a consciência». Quase um ano depois, em março de 1872, Eça retoma em termos muito semelhantes este tópico: Ora para que se dá religião a um homem, a uma mulher? Para lhe dar um guia para a sua consciência e um guia para a sua moral: uma doutrina que lhe ensine o que deve pensar e o que deve fazer: critério para o seu juízo e critério para a sua ação. O que se lhe ensina no catecismo? Uma série de fórmulas e de palavras, cujo sentido lhe é estranho, como uma língua ignorada. Aprende-a maquinalmente como uma lição, que recita a certas horas, depressa ou devagar, como uma obrigação, como se penteia e como trata as unhas. (F: 420) 93 Aquilo de que a religião se viu expurgada foi, portanto, segundo Eça, da sua qualidade de mapa para o julgamento, a consciência, a inteligência. Mas, sem esse mapa, ficarão perdidos julgamento, consciência e inteligência? Trata-se de saber se há, fora do âmbito da religião, uma razão ética, uma razão lógica e uma razão prática que permitam ao homem julgar, pensar e agir de outra forma que não ao sabor de impulsos ou condicionalismos externos. Um dos tópicos recorrentes da abordagem que nos romances queirosianos se faz da questão religiosa prende-se precisamente com o papel da religião na definição das referências éticas do indivíduo. Em Os Maias, Afonso da Maia e o abade Custódio discutem sobre se Carlos deve ou não ser catequizado: o abade considera impossível que haja «felicidade e bom comportamento na vida sem a moral do catecismo» (M: 67); Afonso, por seu lado, crê numa ética laica, desejando que o neto «seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas não por medo às caldeiras de Pêro Botelho, nem com o engodo de ir para o Reino do Céu» (M: 68)116. Naturalmente, se os interditos e as obrigações religiosas são aquilo em que assentam as decisões fundamentais do indivíduo, este coloca-se sob o domínio de uma moral coerciva, uma moral que se impõe através de um sistema de recompensas e penalizações; já a ideia de moral que o avô de Carlos pretende incutir no seu neto apresenta- se como um valor superior, porque desinteressado. Em O Crime do Padre Amaro, o doutor Gouveia – a voz da razão esclarecida, a personagem que representa o espírito das Conferências – explica a João Eduardo precisamente que «a moral católica é diferente da moral natural e da moral social», e que ela é – depreende-se das suas palavras – perversa nos juízos em que assentam as suas hierarquias117, logo uma modalidade inferior de moral. Esta é, aliás, a questão central de um romance como A Relíquia, como observa João Medina: «Tal como Eça, Teodorico não tinha qualquer necessidade de um Deus no Céu: bastava-lhe uma 116 A ideia de que a religião é fundamental para estruturar um edifício ético é defendida, por exemplo, pelo conselheiro Acácio, para quem «A falta de religião era a causa de toda a imoralidade que grassava» (PB: 238), sustentando ainda esta personagem que, caso se chegasse a prescindir completamente dela, «veríamos aumentar a estatística dos crimes» (PB: 331). 117 «– Meu rapaz, tu podes ter socialmente todas as virtudes; mas, segundo a religião de nossos pais, todas as virtudes que não são católicas são inúteis e perniciosas. Ser trabalhador, casto, honrado, justo, verdadeiro, são grandes virtudes; mas para os padres e para a Igreja não contam. Se tu fores um modelo de bondade mas não fores à missa, não jejuares, não te confessares, não te desbarretares para o senhor cura – és simplesmente um maroto. Outros personagens maiores que tu, cuja alma foi perfeita e cuja regra de vida foi impecável, têm sido julgados verdadeiros canalhas, porque não foram batizados antes de terem sido perfeitos. Hás de ter ouvido falar de Sócrates, dum outro chamado Platão, de Catão, etc… Foram sujeitos famosos pelas suas virtudes. Pois um certo Bossuet, que é o grande chavão da doutrina, disse que das virtudes desses homens estava cheio o Inferno… Isto prova que a moral católica é diferente da moral natural e da moral social…» (CPA: 585). 94 Consciência capaz de mostrar o bem e o mal, e essa consciência encontrava-se dentro de si próprio» (1988: 558). Portanto, quando Eça observa que a religião se esvaziou daquele que era o seu mais relevante papel na vida de cada um dos seus seguidores (regra para o julgamento, critério para a consciência, guia para a inteligência, etc.), não está sequer a afirmar a necessidade dessa função: embora o edifício ético seja mais sólido quando é feito de material laico, a questão é que a religião deixou de participar de todo na construção desse edifício, confinada à exterioridade dos seus códigos rituais e vivida por muitos fiéis como se se tratasse apenas de um complexo sistema de superstições118. Sintomaticamente, Amélia, educada nos preceitos do catolicismo, não só não encontra na doutrina recebida valores suficientemente fortes para resistir às investidas de um desejo interdito, como depois não encontra nela qualquer critério para guiar as suas ações no momento em que tem de lidar com as consequências da sua relação com Amaro119. E o próprio abade Ferrão, não obstante a forma justa como interpreta o espírito do cristianismo, não encontra na teologia argumentos capazes de refutar aqueles com que o médico procura demostrar que a Igreja se posiciona no mundo sistematicamente ao arrepio da razão120. Do que fica exposto, compreende-se que a vivência coletiva da religião, bem como as suas ramificações individuais, assentam em grande medida sobre uma série de distorções e de paradoxos socialmente enraizados. Melhor do que qualquer outra personagem, é Teodoro, 118 Também se encontra esta ideia na conferência de Antero, para quem uma das consequências de Trento fora a relação entre o homem e o divino ser colocada na órbita da idolatria e do paganismo: «É mais um passo (e este decisivo) para fazer entrar o cristianismo no caminho da idiolatria, para colocar o divino no absurdo […], para fazer reviver nele [no povo] os instintos pagãos […]» (1987: 39-40). Veja-se, por exemplo, o argumento queirosiano, vertido num dos primeiros textos do número de abril de 1872, segundo o qual a impossibilidade de os fiéis compreenderem a ideia de Deus, fomentada pelo próprio catolicismo, acaba por os empurrar para um entendimento e uma vivência da religião que a percebe sobretudo como um sistema de superstições: «Para espíritos estreitos, embrutecidos, esterilizados, como os forma a devoção fanática, Deus e os mistérios, é alguma coisa de incompreensível, de vago, de distante, no fundo dos céus: pelo contrário o padre é o sempre presente e o sempre visível. […] Deus está num indefinido misterioso, na profundidade dos firmamentos: o padre está ali, na sua rua, ao pé da sua casa, sempre pronto, e torna-se assim um Deus ao alcance dos sentidos e ao contacto da mão» (F: 445). 119 «– Que hei de eu fazer? que hei de eu fazer? murmurava, às vezes, com as mãos apertadas na cabeça. O seu cérebro de devota apenas lhe fornecia soluções devotas – entrar num recolhimento, fazer uma promessa a Nossa Senhora das Dores "para que a livrasse daquele apuro", ir confessar-se ao padre Silvério… E terminava por se vir sentar resignadamente ao pé da mãe com a sua costura, considerando, muito enternecida, que desde pequena fora sempre bem infeliz!» (CPA: 447). 120 CPA: 969-77. N’As Farpas, Eça aponta frequentemente as fragilidades da argumentação proveniente de atores associados ao campo do catolicismo, nomeadamente de jornais como A Nação ou o Bem Público. 95 protagonista de O Mandarim, quem assume a sua própria instalação nesse sistema desvirtuado121, para o qual As Farpas chamam a atenção logo no início do primeiro número: «Descreu-se da religião […]. Desprezam-se os padres e despreza-se o culto, o que não impede que a propósito de qualquer coisa se exija o juramento!» (F: 19). Um tema recorrente na ficção queirosiana traduz precisamente a aparente contradição na forma como a religião se encontra simultaneamente ausente e omnipresente na sociedade da época. Destituída da sua dimensão espiritual, sem contacto com a sua mensagem original, com a sua axiologia fundadora, ela domina, no entanto, todas as categorias da vida do país, das mais globais às mais particulares: o Estado protege constitucionalmente a sua confissão religiosa, a teia de relações entre a política e a religião é densa (cf., e. g., CPA: 311 e 431), a imprensa católica floresce, o clero preserva o seu ascendente sobre a respetiva comunidade, o confessor trabalha consciência a consciência. Assim, poucas são as personagens queirosianas que se situam fora do seu domínio – simplesmente, neste grupo hegemónico de fiéis e simpatizantes, multiplicam-se as demonstrações equívocas desse sentimento religioso, todas elas traduzindo um desvio em relação à essência do cristianismo. Um grupo significativo de caracteres tem em relação à religião uma atitude semelhante àquela que Eça descreve no prólogo d’As Farpas, na sua primeira tematização da questão religiosa: «A religião ficou sendo um artigo de moda. Expulsa da consciência liberal, as burguesas enriquecidas tomaram-na sob a sua proteção: é um bom-tom aristocrático. Elas gostam igualmente que as suas parelhas sejam vistas à porta da Marie e à porta dos Inglesinhos. Aceitam Deus como um chic» (F: 19). Esta tese será depois vertida sobretudo no molde de que saem as filhas da marquesa de Alegros, em O Crime do Padre Amaro122 – mas deixa-se entrever também em Amélia123, ou em Genoveva124, 121 «Não, não acredito! Céu e Inferno são conceções sociais para uso da plebe – e eu pertenço à classe média. Rezo, é verdade, a Nossa Senhora das Dores: porque, assim como pedi o favor do senhor doutor para passar no meu ato; assim como, para obter os meus vinte mil réis, implorei a benevolência do senhor deputado; igualmente para me subtrair à tísica, à angina, à navalha de ponta, à febre que vem da sarjeta, à casca da laranja escorregadia onde se quebra a perna, a outros males públicos, necessito ter uma proteção extra-humana. Ou pelo rapapé ou pelo incensador, o homem prudente deve ir fazendo assim uma série de sábias adulações, desde a Arcada até ao Paraíso» (Man: 89). 122 «As suas duas filhas, educadas no receio do Céu e nas preocupações da Moda, eram beatas e faziam o chic falando com igual fervor da humildade cristã e do último figurino de Bruxelas. Um jornalista de então dissera delas: – Pensam todos os dias na toilette com que hão de entrar no Paraíso. / No isolamento de Carcavelos, naquela quinta de alamedas aristocráticas onde os pavões gritavam, as duas meninas enfastiavam-se. A Religião, a Caridade eram então ocupações avidamente aproveitadas: cosiam vestidos para os pobres da freguesia, bordavam frontais para os altares da igreja. De maio a outubro estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho de salvar a sua alma; liam os livros beatos e doces; como não tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os padres e cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era o seu luxo de verão» (CPA: 137). 96 a protagonista de A Tragédia da Rua das Flores, por exemplo. São ainda mais as figuras em que se manifesta a compensação do esvaziamento espiritual da religião através da excessiva (quando não exclusiva) adesão aos seus aspetos formais, tal como As Farpas denunciam igualmente: pensemos em personagens como Maria Eduarda Runa125, a tia Patrocínio126 ou Maria da Assunção127. São normalmente estas que, na sua devoção materialista, falha de espiritualidade, tendem a aproximar a religião do domínio da superstição128, a submetê-la a princípios utilitários129, a conceber o mundo como um palco de permanente intervenção do divino nos mais pequenos episódios do quotidiano130, e sobretudo a projetar em Deus a representação de um ser temperamental e vingativo, sempre pronto a desferir castigos sobre os corpos – mais do que sobre as almas – dos seus fiéis131. Servem igualmente estas 123 «[…] o que amava agora na religião e na igreja era o aparato, a festa – as belas missas cantadas ao órgão, as capas recamadas de ouro, reluzindo entre os tocheiros, o altar-mor na glória das flores cheirosas, o roçar das correntes dos incensadores de prata, os uníssonos que rompem briosamente no coro das aleluias. Tomava a Sé como a sua Ópera: Deus era o seu luxo» (CPA: 255). 124 «Ela repreendeu-o brandamente: devia ser pelo seu rei, pela religião. A religião é o primeiro dever de um homem bem-educado; não era possível ser-se de sociedade, ter chique, sem a religião» (TRF: 99). 125 «[…] aquele catolicismo sem romarias, sem fogueiras pelo S. João, sem imagens do Senhor dos Passos, sem frades nas ruas – não lhe parecia a religião» (M: 18). 126 «Eu devia identificar-me tanto com as cousas eclesiásticas e submergir-me nelas de tal sorte, que a Titi, pouco a pouco, não pudesse distinguir-me claramente desse conjunto rançoso de cruzes, imagens, ripanços, opas, tochas, bentinhos, palmitos, andores, que era para ela a religião e o céu…» (R: 43). 127 Veja-se a «imensa armazenagem de santaria e de bric-à-brac devoto» descrita em O Crime do Padre Amaro a pp. 665-667. «Ela mesma, só ela, arrumava, espanejava, lustrava toda aquela santa população celeste, aquele arsenal beato, que era apenas suficiente para a salvação da sua alma e o alívio dos seus achaques» (CPA: 667). 128 D. Josefa, de O Crime do Padre Amaro, sobre a possibilidade de se encarregar da roupa de Amaro: «Ai, até era uma honra para mim! Eu mesmo as passava a ferro, e até se podia benzer o ferro…» (CPA: 679). 129 «– Ó Sr. Juliana! – disse a outra de entre os lençóis. – Se vossemecê quer rezar três salve-rainhas pela saúde do meu rapaz, que tem estado adoentado, eu cá lhe rezava três pelas melhoras do peito. / – Pois sim, Sr.ª Joana! Mas reflectindo: / – Olhe. Eu do peito vou melhor; dê-mas antes pra alívio das dores de cabeça. A Santa Engrácia! / – Como vossemecê quiser, Sr.ª Juliana» (PB: 75); «E àquele contacto diário com a imagem do santo, levando-a apensar decerto na proteção inesperada do Céu, [Luísa] fez uma promessa de cinquenta missas se as cautelas fossem premiadas…» (PB: 287). 130 «– E outra cousa, filho… Trazes de lá algumas orações, das boas, das que te ensinassem por lá os patriarcas, os fradezinhos?… / – Trago-as de chupeta, Titi! / E numerosas, copiadas das carteiras dos santos, eficazes para todos os achaques! Tinha-as para tosses; para quando os gavetões das cómodas emperram, para vésperas de loteria…» (R: 237). O Conde de Abranhos, por seu lado, lastima a ingratidão divina quando chove na abertura da Câmara (CA: 125). 131 As manifestações deste sintoma são naturalmente abundantes em O Crime do Padre Amaro («– É que até pode cair um raio, dizia para os lados, baixo, a Sra. D. Maria da Assunção, muito aterrada» – CPA: 207; «Todas as senhoras, instintivamente, afastaram-se do aparador onde jazia aberto o Panorama fatal, arrebanhando-se, num arrepiamento de medo, àquela ideia da Excomunhão que se lhes representava com um desabamento de catástrofes, um aguaceiro de raios despedidos das mãos do Deus Vingador» – CPA: 651; «Eram vagos medos de doenças, de lepras, de paralisias ou de pobrezas, de dias de fome – de todas essas penalidades de que ela supunha pródigo o Deus do seu catecismo» – CPA: 783, etc.), mas comparecem igualmente na ficção posterior: a mulher de Afonso é uma «alma aterrada para quem Deus era um amo feroz» (M: 19); a mãe e a tia de Ega atribuem à ira divina certo surto de anginas diftéricas («A mamã salta imediatamente à conclusão que é a minha presença, a presença do ateu, do demagogo, sem jejuns e sem missa, que ofendeu Nosso Senhor e atraiu o flagelo. Minha irmã concorda» – M: 104); D. Laura Amado crê num «Deus terrível, que vivia na Igreja 97 personagens o propósito de desacreditar o perfil ético de matriz católica: inspiradas pelo Deus impiedoso em que acreditam, mas ao arrepio de toda a ideia de compaixão evangélica, são muitas vezes destacados o rigor da respetiva propensão judicativa e as atitudes pouco compassivas que manifestam132. Para esta experiência tangencial, ornamental ou mecânica da religião, contribui ainda um clero sem vocação133, que privilegia a vida mundana em detrimento da espiritual134, hábil a manobrar consciências135, e que reduz a mensagem do cristianismo a uma fórmula destituída de conteúdo136. Expurgada do seu conteúdo espiritual, a religião não perde, assim, território enquanto presença material instalada no espaço social ou individual: ela sobrevive nomeadamente enquanto estrutura fortemente ritualizada. E esse trabalho de instalação de um programa de reconhecimento e reprodução de fórmulas que se constituem corpo essencial da vivência religiosa assenta antes de mais, como se lê no texto de março de 1872 acima citado, no verbo, na linguagem: se o catecismo é incapaz de agir sobre a consciência ou sobre a inteligência, ele ensina eficazmente uma série de «fórmulas» e de «palavras combinadas» de sentido obscuro e alcance desconhecido para o espírito, que as memoriza e reproduz «maquinalmente», «a certas horas», «como uma obrigação» (F: 420). Antes, no primeiro número, Eça referira-se já à «devoção automática», assente em «padre-nossos maquinais» (F: 17). de S. Domingos, insaciável de louvores, pródigo de catástrofes, sempre pronto a despedir, como raios, doenças mortais ou desgostos com as criadas, e que era necessário abrandar constantemente com promessas, missas, ladainhas e ofertas, porque o seu divino temperamento, de uma irritabilidade fora do vulgar, o mantinha no desejo frenético de fazer mal» (CA: 69). 132 D. Laura Amado «[e]ra dotada de uma língua feroz com que lacerava todas aquelas […] que não exerciam uma devoção tão complicada, ou tinham os gozos, os luxos, as paixões que lhe proibia o seu Deus» (CA: 69); para a implacável tia Patrocínio, «[t]odas as recreações moças: um passeio gentil com senhoras, em burrinhos; um botão de rosa orvalhado oferecido na ponta dos dedos; uma decorosa contradança em jucundo dia de Páscoa; outras alegrias, ainda mais cândidas, pareciam perversas, cheias de sujidade, e chamava-lhes relaxações» (R: 57); em O Crime do Padre Amaro, certo episódio excita os impulsos punitivos das senhoras devotas: «– É para o fogo, é para o fogo! gritava a Gansoso excitada. / A sala vibrava agora com a gralhada das senhoras, arrebatadas num furor santo. D. Josefa Dias, D. Maria da Assunção falavam com gozo do fogo, enchendo a boca com a palavra, numa delícia inquisitorial de exterminação devota» (CPA: 653). 133 «Nunca ninguém consultara as suas tendências ou a sua vocação. Impunham-lhe uma sobrepeliz; a sua natureza passiva, facilmente dominável, aceitava-a, como aceitaria uma farda» (CPA: 143). 134 «E, a não ser alguns devotos, todos, ou aspirando ao sacerdócio ou aos destinos seculares, queriam deixar a estreiteza do seminário para comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres» (CPA: 151). 135 «–Nós veremos, padre-mestre, replicou Amaro repoltreando-se e balouçando a perna, muito certo do seu prestígio devoto. Nós veremos… Hei de lhe eu falar… E quando lhe tiver contado umas lérias… Quando lhe tiver representado que é para ela um caso de consciência encobrir a pequena… Quando lhe lembrar que nas vésperas da morte é que se deve fazer alguma boa ação, para não se apresentar à porta do Paraíso com as mãos vazias… Nós veremos! / –Talvez, talvez, disse o cónego. A ocasião é boa, porque a pobre mana está fraquita do juízo e leva-se como uma criança» (CPA: 829). 136 Amaro «“Estava habituado”, como ele dizia. Murmurava as santas leituras do missal monotonamente, com uma recitação maquinal» (CPA: 266 – 2ª ed.); «E o cónego Dias disse, meneando uma garfada de vagens: /– Quorum remiseris peccata, remittuntur eis. É a fórmula. A fórmula é tudo, menino…» (CPA: 315). 98 A redução da doutrina a um conjunto de fórmulas ritualizadas, desvinculadas de um sentido, tem algumas semelhanças com o fenómeno a que me referi da reprodução acrítica de determinadas expressões usadas no domínio da retórica política, que, em termos de realidade evocada, convocam sobretudo, a partir de um determinado ponto de saturação do discurso, o facto mesmo da sua enunciação. Como observa Barthes, a repetição instala o vazio: «repetir até ao excesso é entrar na perda, no zero do significado» (1974: 84). Num caso como noutro – talvez apenas em graus diferentes –, a repetição leva a que os sentidos de que a formulação original do discurso se encontrava investida percam intensidade, depois presença; sobre eles sedimenta-se um novo sentido, e este é já de uma outra ordem semiótica, uma vez que o discurso passa a significar sobretudo a sua conotação ideológica: torna-se transparente, o seu reconhecimento é automático, os desafios que coloca são nulos, o efeito da sua enunciação ou da sua receção é sobretudo tranquilizador. É este o lugar da reprodução das fórmulas e dos ritos religiosos, a que se adere maquinalmente, estabelecendo assim aquilo a que poderíamos chamar uma semiose de terceiro grau: o discurso deixa de significar em função do código da linguagem quotidiana, perde igualmente a significação que, neste caso, o código simbólico-religioso lhe confere – e, pondo entre parênteses estes dois estratos (ou reduzindo-os a uma dimensão material, isto é, constituindo estes estratos como significante), adquire, enfim, uma terceira significação, que é já da ordem do mero ritual. Há, no entanto, na perspetiva queirosiana, uma circunstância em que a retórica da religião ameaça acordar da dormência da in-significância em que o culto da fórmula a mergulha: quando o seu discurso incorpora uma linguagem equívoca, nomeadamente uma linguagem pontuada por uma clave erótica. Embora Eça aponte também, entre outros aspetos, a violência que subjaz à imagética da retórica religiosa137, o que de forma manifesta o preocupa acima de qualquer outra coisa nas práticas discursivas através das quais o clero se dirige aos fiéis – e nomeadamente às fiéis – é a apropriação de um registo amoroso, que promove a sensualização do auditório: Que lhe ensina [à mulher] a mesma religião? o amor. Duvidam? – aqui estão os trechos dum livro de orações aprovado pelo sr. arcebispo de Rouen – traduzido por toda a parte: «Ato de desejo. – Oh vem, meu bem amado, carne adorável, minhas delícias, meu 137 Por exemplo, ao chamar a atenção para os títulos de certos livros: «Chicotes, Lanternas, Fustigações, são os títulos dos livros dos dominicanos» (F: 232; na edição de 1890, lê-se: «[…] são os títulos destes livros pios» – UCA: 182). A violência é associada à palavra da religião também quando se assinalam as manifestações discursivas de uma história marcada por perseguições bárbaras («As matanças de mouros, turcos, albigenses, luteranos, judeus, cristãos novos que encheram a história de sangue, foram pregadas, dirigidas, executadas por padres» – F: 456; itálico meu). 99 amor, meu tudo, meu alento! Minha alma impaciente enlouquece por ti! «Ato de amor. – Tenho pois enfim a felicidade de te possuir! Abrasa-me, queima-me, consome-me com o teu amor. Jesus é o meu, o bem-amado é meu.» Que lhes parece? Aprovado por monsenhor de Rouen, o cardeal Bonnechose, príncipe da Igreja. E um catecismo francês, quase um catecismo universal. Trata-se do amor de Jesus – dirão: pois também seria excessivo que se tratasse de Artur! A Igreja não o faz expressamente – dirão ainda: quem o duvida? Nem um momento desconfiamos da austera intenção da Igreja. Mas é inocentemente e sem intenção, que as mães deixam as crianças ao pé do lume, e quantas vezes a casa arde! (F: 548) A obra a que estas linhas se referem é seguramente a mesma que, por alturas do capítulo VI de O Crime do Padre Amaro, o protagonista lê todas as noites depois de se instalar em casa da S. Joaneira: traduzida do francês, aprovada por um bispo, entregue às confessadas e citada em termos análogos («Oh! vem, amado do meu coração, corpo adorável, minha alma impaciente quer-te!» – CPA: 281), ela reveste-se nesse contexto diegético de toda a ambiguidade para a qual As Farpas alertavam alguns anos antes, e assume plenamente no romance o papel perverso enquanto catalisador da cedência feminina ao erotismo que no periódico era apenas sugerido. Nas duas primeiras edições de O Crime do Padre Amaro, Amaro canaliza para Amélia a linguagem erótica do cântico, de certa forma materializando o cenário «excessivo» que consistiria, na opinião de Eça em 1872, em imprimir o nome de Artur como destinatário da devoção que o catecismo celebrava por Jesus. E, se esse passo específico é suprimido na edição definitiva do romance, esta mantém no essencial a relevância que o episódio adquire a partir da edição de 1878: o enfoque na isotopia da luxúria que o texto religioso explora em abundância («as palavras gozo, delícia, delírio, êxtase, voltam a cada momento», observa o narrador), no papel insidioso que uma obra com esta linguagem pode assumir numa estratégia de sedução, no efeito que ela efetivamente tem sobre Amélia, etc. Mas talvez o aspeto mais significativo de todo este episódio seja o facto de o narrador se permitir abrir um parêntese na capa de distanciamento interventivo que lhe impõe a metodologia naturalista, assumindo um registo empenhado, opinativo, ideológico, de todo invulgar na atitude discursiva desta instância nos romances queirosianos: Quando descia para o seu quarto, à noite, [Amaro] ia sempre exaltado. Punha-se então a ler os Cânticos a Jesus, tradução do francês publicada pela sociedade das Escravas de Jesus. É uma obrazinha beata, escrita com um lirismo equívoco, quase torpe – que dá à oração a linguagem da luxúria: Jesus é invocado, reclamado com as sofreguidões balbuciantes de uma concupiscência alucinada: «Oh! vem, amado do meu coração, corpo adorável, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero! Abrasa-me! queima-me! Vem! esmaga-me! possui-me!» E um amor divino, ora grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama assim em cem páginas inflamadas onde as palavras gozo, delícia, delírio, êxtase, voltam a cada momento, com uma persistência histérica. E depois de monólogos frenéticos de onde 100 se exala um bafo de cio místico, vêm então imbecilidades de sacristia, notazinhas beatas resolvendo casos difíceis de jejuns, e orações para as dores do parto! Um bispo aprovou aquele livrinho bem impresso; as educandas lêem-no no convento. É beato e excitante; tem as eloquências do erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em marroquim e dá-se às confessadas; é a cantárida canônica! (CPA: 281-83) Se fosse preciso reforçar o sublinhado da relevância crítica de que se reveste para Eça o domínio da linguagem nas suas diversas manifestações sociais, bastaria mencionar que o outro caso que me ocorre de irrupção doutrinária do narrador no registo narrativo, situado em O Primo Basílio, incide também sobre uma modalidade discursiva, desta vez de natureza poética: a «composição delambida, de um sentimentalismo reles» (PB: 29), que uma episódica paixão de Leopoldina lhe dedica – e que me parece igualmente poder ter a sua matriz n’As Farpas (cf. infra: 105). Em ambos os casos, o narrador é uma instância notoriamente assaltada por uma tomada de posição autoral, e é muito provável que este envolvimento acrescido resulte de, quer no que diz respeito à modalidade específica da retórica religiosa que está em causa no passo citado de O Crime do Padre Amaro, quer no que respeita à retórica do lirismo romântico exemplificada em O Primo Basílio, se verificar, na perspetiva queirosiana, um cúmulo de circunstâncias críticas: um discurso de feição erótica e um auditório feminino. Eça coloca a questão do papel social da mulher nos termos dramáticos que Proudhon lhe emprestara, «ménagère ou courtisane – dona de casa ou mulher de prazer» (F: 551), e neste sistema binário é quase sempre pela via da sugestão erótica que se rompe a fina e quebradiça linha que separa um polo do outro. Assim, no que diz respeito ao discurso da religião, As Farpas são especialmente críticas em relação às suas ressonâncias licenciosas, potencialmente corruptoras da moralidade feminina. Num texto de outubro de 1871, dedicado à prática fraudulenta do comércio de pseudo-relíquias sagradas, Eça alude à questão da temática e da linguagem libertinas dos sermões dos missionários (F: 220); em janeiro de 1872 denuncia o elogio público da carnalidade eclesiástica, feito na imprensa, por parte de um membro do clero (F: 334); também Ramalho escreve sobre o tratamento ambíguo («uma monografia da luxúria») que o jornal católico A Nação dedica ao tema do adultério (F: 224). No entanto, o artigo em que esta matéria se reveste de maior centralidade é publicado no número de junho-julho de 1872. Nele, Eça ensaia uma classificação das modalidades do sermão que o desviam do seu propósito legítimo, e antes de se fixar na contaminação do discurso religioso pela temática política na sua feição mais baixa, a da difamação e da injúria, aborda aquilo a que chama «o sermão obsceno»: 101 O sermão obsceno é uma particularidade minhota dos senhores missionários. Uma de suas senhorias sobe devotamente ao púlpito, e depois das ave-marias murmuradas, olha pausadamente a multidão feminina, apertada e contrita, e com gestos sumptuosos, anuncia que vai tratar da castidade. Tratar da castidade significa contar a que se arriscam, nos futuros infernos de além-vida – os que cometem os ternos pecados de amor. E então o senhor padre, revolvendo o assunto com a sofreguidão com que um avaro revolve o dinheiro, dilata-se, explica, diz as palavras próprias cruamente, descreve, conta anedotas, especializa atitudes, faz certas proibições, marca dias, prescreve abstenções, divide as espécies, aprofunda, exalta-se, clama, – e as mulheres coram. (F: 485) É preciso não esquecer que a mulher é o ponto angular da célula social onde se joga a estabilidade ou a dissolução de toda a vida coletiva. Em dois dos mais extensos artigos que escreve para As Farpas (F: 412-29 e 542-54), Eça concebe-a como um ser no qual a vertente emocional tem um claro ascendente sobre a racional; um ser, portanto, precariamente equipado para filtrar através de um juízo informado pela razão e pelo conhecimento a forma como a realidade comparece perante si. Daí que se apresente como um cenário particularmente crítico a sua exposição, por um lado, à idealização romântica do adultério e, por outro, ao tratamento de que esse assunto é objeto por parte da religião: esta deveria fornecer-lhe um escudo moral capaz de neutralizar uma eventual inclinação sinuosa, mas não só é ineficaz nesse desígnio como chega a contribuir para a construção de um imaginário equívoco. A censura d’As Farpas à abordagem ambígua de certas temáticas de natureza erótica por parte das entidades religiosas não é muito diferente daquela que suscitou noutro quadrante o tratamento detalhado de alguns temas mais delicados pelo naturalismo, acusado também de ambivalência na forma como tematizou os vícios que alegava denunciar, isto é, com uma atitude em que nem sempre era fácil identificar a fronteira entre a repulsa e a atração. No passo acima citado, há um outro aspeto incontornável da crítica queirosiana, também suscetível de iluminar certos aspetos da sua própria estratégia expositiva. Eça aponta como sintoma de um investimento retórico de efeitos equívocos acima de tudo determinadas técnicas de amplificação – «dilata-se», «explica», «descreve», «especializa atitudes», «divide as espécies», «aprofunda»… – e a consciência que aí revela das implicações retóricas e argumentativas da amplificatio não pode deixar de iluminar a determinação estratégica com que ele próprio utiliza este recurso. Mas sobre este assunto deter-me-ei com mais detalhe nos pontos 3.5. e 3.5.1. 102 2.2.2.3. O discurso da literatura Só nos são revelados quatro dos versos da elegia que o amante de Leopoldina lhe dedica e que esta mostra a Luísa, no início de O Primo Basílio: dois deles evocam a hora do poente, os outros dois situam o poeta frente ao mar; no primeiro, além disso, ele cisma. O resto do poema, ficamos a conhecê-lo através da síntese que dele faz o narrador: «Era uma composição delambida, de um sentimentalismo reles, com um ar tísico, muito lisboeta, cheia de versos errados. E, terminando, dizia-lhe que não era “nos esplendores das salas” ou nos “bailes febricitantes” que gostava de a ver: era ali, naqueles rochedos […]» (PB: 29). A despeito deste juízo que desconsidera as qualidades literárias e morais do poema, Leopoldina entrega-se ao enlevo romântico do cliché, corporizado desde logo no efeito que sobre ela exerce a mera enunciação da palavra ‘poeta’: «– […] É poeta! – Dizia a palavra com devoção, prolongando o som das sílabas. – É poeta!» (PB: 28). O caso de Leopoldina tipifica a queda feminina na sua forma instalada, mas o papel do imaginário romântico na génese dessa queda, em todo o processo que vai da sedução até à consumação do adultério, é um tópico recorrente da obra queirosiana, em especial dos textos diretamente inspirados nos pressupostos do realismo e do naturalismo. O diagnóstico dos principais focos críticos da vida nacional expostos no primeiro texto d’As Farpas compreende algumas páginas importantes dedicadas à literatura. Em termos de extensão trata-se mesmo do principal núcleo temático desse artigo, circunstância a que não deve ser alheia a coincidência temporal entre o início da publicação da revista e a realização das Conferências do Casino. A sintonia entre a visão que As Farpas têm da literatura e as ideias que Eça expõe na sua intervenção no Casino Lisbonense sobre o realismo não surpreende: na conferência, Eça decreta a vinculação necessária entre a literatura e o seu contexto histórico, condena a arte pela arte, acusa a literatura contemporânea de ser reacionária, indiferente aos desafios do seu tempo, de estimular pela via do sentimentalismo a atração pelo adultério, de ser desprovida de moral, incapaz de análise, indiferente à verdade; no artigo de abertura d’As Farpas, a literatura é descrita como um organismo convencional, ilusório, alienado, anacrónico, inútil, perverso. A dado ponto, Eça propõe-nos o sumário do drama passional de que se alimenta a generalidade da ficção narrativa do romantismo, com os seus lugares comuns devidamente coreografados: O romance, esse, é a apoteose do adultério […]. Júlia pálida, casada com 103 António gordo, atira com as algemas conjugais à cabeça do esposo, e desmaia liricamente nos braços de Artur, desgrenhado e macilento. Para maior comoção do leitor sensível e para desculpa da esposa infiel, António trabalha, o que é uma vergonha burguesa, e Artur é vadio, o que é uma glória romântica. E é sobre esta ação de lupanar que as mulheres honestas estão derramando as lágrimas da sua sensibilidade desde 1850! (F: 26-7) A exposição reiterada de «mulheres honestas» a exemplos desta «ação», nomeadamente sob a forma idealizada de que a reveste a retórica do romantismo, representa para Eça um risco efetivo de distorção do eixo moral do adultério – a sua justificação sentimental, a sua deslocação para a categoria de requinte, a sua erotização, etc. –, que cumprirá à literatura realista desmontar, retratando-lhe a feição autêntica, expondo a degradação pessoal, familiar e social que ele invariavelmente acarreta (é esse, explicará depois Eça no Casino, o alto valor moral de Madame Bovary, de Flaubert: cf. Reis, 1990: 140-1). A representação ideal da vitória da paixão sobre todo o constrangimento moral perfila-se como uma ameaça pendente sobre a estabilidade social, uma vez que os valores que ela exalta se alojam sobretudo no elemento simultaneamente mais vulnerável e mais determinante para a estabilidade da instituição familiar – a mulher. Daí que, ao expor as suas ideias sobre literatura, e em particular ao abordar a questão do culto romântico do sentimentalismo e das suas ramificações sensuais, a preocupação queirosiana com o auditório feminino se manifeste de forma particularmente vincada. Na sequência do passo citado, Eça figura o diabo exultante face ao efeito que esta literatura tem sobre «as meninas» (F: 27); no artigo de março de 1872 dedicado à educação feminina, renova a sua preocupação com o facto de as mulheres esgotarem os seus hábitos de leitura com Ponson du Terrail e os «analistas lascivos» (F: 426); no número de setembro e outubro, ao abordar a questão do adultério, a mulher é de novo colocada no centro do problema, exposta a uma série de estímulos que alimentam a sua propensão para a fantasia sentimental, entre os quais o romance (F: 547). As obras queirosianas subsequentes aos textos d’As Farpas recuperarão com frequência o tópico da leitura romântica e dos respetivos efeitos sobre a sensibilidade feminina: veja-se o perfil, enquanto leitoras138, de personagens como Luísa em O Primo Basílio139, de Maria Monforte 138 Encontra-se um estudo abrangente do lugar da leitura no romance queirosiano em A Inscrição do Livro e da Leitura na Ficção de Eça de Queirós, de Maria do Rosário Cunha, e nomeadamente da leitura no feminino (veja-se em especial o capítulo 3). 139 «Ia, enfim, ter ela própria aquela aventura que lera tantas vezes nos romances amorosos!» (PB: 195); «É muita dose de novelas naquela cachimónia. Eu vejo-a de pela manhã até à noite de livro na mão. Põe-se a ler romances e mais romances…» (PB: 344). 104 em Os Maias140 ou de Maria da Piedade no conto «No Moinho»141, todas elas expostas à influência de uma literatura que excita a imaginação e os sentidos, todas elas seduzidas por um imaginário que exalta o domínio das pulsões sentimentais – todas elas também adúlteras. Mas o artigo d’As Farpas que melhor exemplifica a atitude queirosiana perante a literatura romântica, a sua retórica, a sua temática e o seu auditório, situa-se no número de junho de 1871: refiro-me ao texto em que Eça censura asperamente um poema publicado havia pouco tempo no «Folhetim» do Diário Popular, acusando-o de promover ideias de conteúdo licencioso, ofensivas da moral pública, e que, impressas «num jornal popular, com uma tiragem de 20.000 exemplares», circulavam livremente «por cima das mesas e nos cestos de costura» (F: 74). Aquilo que é primeiro uma sugestão metonímica torna-se, poucas linhas depois, um foco apontado expressamente para um auditório específico, constituído pela população feminina: «Nenhum jornal publicaria aquelas teorias em prosa; / Nenhum homem que as escrevesse ousaria lê-las a sua filha sem gaguejar e sem comer as palavras; / Nenhuma senhora que por acaso as tivesse lido ousaria citá-las» (F: 74). Este artigo tem sobretudo a vantagem de constituir um exemplo concreto de desmontagem da retórica do romantismo, nomeadamente daquela retórica da luxúria que, acima de qualquer outra, suscita os mais exaltados ataques por parte do realismo e do naturalismo. No caso do poema do Diário Popular, os processos que subjazem a essa desmontagem decorrem de uma estratégia assente na diluição dos protocolos de leitura associados a diferentes tipologias textuais. A primeira frase do texto é elucidativa: «No folhetim do Diário Popular de 24 de junho lêem-se notáveis considerações de ordem moral. São em verso» (F: 74). Propor a leitura de um poema enquanto «considerações de ordem moral» significa colocar entre parênteses o conjunto dos traços semântico-pragmáticos e técnico- formais nos quais reside a especificidade da semiose poética (cf. Silva, 1988: 582-596; Reis, 2001a: 314-330): trata-se de penetrar diretamente no conteúdo axiológico do texto lírico, atribuindo-lhe um estatuto autónomo, destacável do objeto poético globalmente considerado. A hibridez genológica que Eça procura instituir é reforçada na sequência do artigo: Eça finge que cita o poema, mas verte-o para prosa – o leitor lê, desta forma, uma paráfrase, que no entanto é tipograficamente assinalada como se constituísse discurso enunciado pelo 140 «[…] a senhora, essa, vivia num ninho de sedas todo azul-ferrete, e passava o seu dia a ler novelas» (M: 24). 141 «Foi durante meses um devorar constante de romances. Ia-se assim criando no seu espírito um mundo artificial e idealizado» (Cnt: 217). 105 autor do poema. A tese queirosiana assenta no pressuposto de que nenhum jornal aceitaria ser o veículo das ideias expostas no poema do Diário Popular se estas fossem vertidas em prosa, e é isso mesmo que o artigo procura demonstrar: a tradução prosaica do texto poético restaura a nitidez das imagens nele inscritas, revelando toda a inconveniência dos seus contornos morais. Aquilo que desta forma se torna visível é uma sequência de «estrofes lascivas» expostas na sua clareza prosaica, pontuada por sugestões de isolamento dos amantes – que reencontramos, em termos muito semelhantes, naquela «composição delambida» e de «sentimentalismo reles» que entusiasma Leopoldina em O Primo Basílio142. Em O Conde de Abranhos, Eça retomará o problema da imunidade moral subjacente às formas poéticas, cujo aparato retórico tende a revestir conteúdos eróticos, que não deixam por isso de atuar sobre o público. Alípio recita, perante um auditório familiar, um poema que atualiza os lugares-comuns do romantismo, no qual uma inevitável Elvira se abandona às promessas e às investidas amorosas do poeta, para escândalo das mães de família presentes no sarau – e é neste caso Alípio quem se mostra atónito perante a inusitada atitude de submeter o lirismo romântico ao escrutínio moral dos seus temas: «quando se recita», alega o futuro conde de Abranhos, «é para se apreciar a forma. É como uma música ao ouvido…» (CA: 86). Face a uma literatura cujos dispositivos formais funcionam quer como meio de distração, quer como instrumento de sedução (como também ilustra exemplarmente, num outro domínio temático, o poema que Alencar recita no sarau do Trindade), a atitude d’As Farpas consiste em colocar em lugar visível o que essa literatura tem de frívolo ou de perverso. O campo de possibilidades da sua realização parece, aliás, confinar-se em grande medida a estas duas categorias – a «inutilidade lorpa» ou o «erotismo ofensivo» (F: 21) –, e Eça, raspando o «cascalho de retórica» que as envolve a ambas no aparato literário em que normalmente se apresentam, expõe-nas no que elas têm de inconsequente e irresponsável: o alheamento absoluto da realidade, a temática egótica e irrelevante, os lugares-comuns reproduzidos através de uma infinita rede de espelhos, o estreitamento do léxico, o estreitamento do mundo. Eça chega mesmo, no número de março de 1872, a renegar O Mistério da Estrada de Sintra, que publicara, também em parceria com Ramalho, entre julho e setembro de 1870 no Diário de Notícias, considerando que este enfermava dos mesmos vícios 142 O amante de Leopoldina, recorde-se, «dizia-lhe que não era “nos esplendores das salas” ou nos “bailes febricitantes” que gostava de a ver: era ali, naqueles rochedos» onde se isolava para a evocar; no poema do Diário Popular, o poeta escreve que «prefere o campo, porque nas salas do mundo não lhe é dado beijar a mão dela às largas», e que «queria que os raios cintilantes os cingissem a ele só com ela, erguidos em êxtase, longe de tudo o que é vil». 106 apontados ao romantismo – apesar do anúncio que aí se faz de uma literatura positiva, «científica» (cf. supra: 34); apesar da redenção moral da condessa de W., a personagem adúltera que, num dos capítulos finais do folhetim, antecipa no essencial o diagnóstico sociológico do adultério que As Farpas proporiam dois anos mais tarde (MES: 245-52); apesar ainda de esse diagnóstico do adultério proposto pela condessa conter expressamente a condenação de todo o imaginário romântico, desde as «figuras líricas da paixão […] que são Traviata, Lúcia, Elvira, Amélia, Margarida, Julieta, Desdémona» (MES: 247) até ao sedutor que lança à sua presa o engodo de uns versos («uns versos – uns versos, meu Deus!»), errados e copiados da Grinalda (MES: 251). É inquestionável que, quando Eça tematiza questões relacionadas com o universo da literatura, em toda a abrangência do fenómeno comunicacional que lhe está subjacente (do processo de criação à experiência de leitura, passando por aspetos associados à sua difusão, sem esquecer os contextos sociais e culturais de todas estas vertentes), quase sempre a sua preocupação passa mais pelo combate ao romantismo, no que ele tem de nefasto, do que pela celebração do realismo ou do naturalismo, no que estes podem representar em termos de contributo positivo para a vida coletiva. Parece haver uma certa diabolização da literatura em Eça, que frequentemente se refere a ela como se de uma substância perigosa se tratasse, um pharmakon capaz de destruir o organismo social, contaminando célula a célula, indivíduo a indivíduo – e embora esse pharmakon, manipulado e doseado em observância à fórmula certa, possa igualmente promover a regeneração do tecido social e contribuir para o progresso (é isso, pelo menos, que defende na conferência apresentada no Casino: cf. Reis, 1990: 141) a verdade é que no retrato da vida portuguesa que a sua obra nos propõe são sobretudo visíveis os danos provocados pela exposição do espírito à ação tóxica da literatura. A matriz de todos os pecados dessa literatura condenável, que As Farpas identificam no ‘prólogo’ e que a conferência sobre o realismo volta a apontar, reside sobretudo na sua dessintonia em relação ao mundo – com a agravante de essa dessintonia só se verificar num dos sentidos do trânsito de representações através do qual mundo e literatura comunicam. Enquanto escritor filiado no eixo do realismo-naturalismo, Eça enquadra a relação entre a realidade e a literatura num processo dinâmico de aperfeiçoamento coletivo, processo este assente na resposta que a sociedade é capaz de dar à imagem crítica que a literatura dela projeta. Ora a literatura romântica, acusa Eça, encontra-se desvinculada do mundo real, mas tal não obsta a que os seus leitores a leiam como um mapa de referências existenciais, 107 simbólicas e axiológicas – e é este o lugar central de onde irradiam as consequências nefastas da sua disseminação. Alheada da realidade, confinada a questões sem alcance social, enredada na reprodução dos seus próprios tópicos, a literatura romântica apresenta-se ao universo dos seus leitores como uma chave equívoca para compreender o mundo, como um repositório de valores e de comportamentos desajustados da sua época – em última instância, acusa Eça, como uma manifestação de irresponsabilidade cívica por parte de todos os agentes envolvidos na sua reprodução. Com efeito, na perspetiva queirosiana – que é a perspetiva da crítica realista e naturalista, fortemente avessa à ideia de autonomia da obra de arte, e por isso precursora de uma sociologia da literatura –, o facto de a literatura romântica não exprimir a realidade, não renovar a sua linguagem e não rever os seus pactos de representação não é o pior dos seus defeitos. Isto comprometeria apenas o seu valor intrinsecamente artístico; no entanto, este alheamento dos desafios que um mundo em transformação lhe coloca não a subtrai desse mundo: não suspende a sua condição de facto social. António José Saraiva observa justamente que o romantismo não é para Eça apenas uma estética; é em toda a plenitude uma atitude existencial (1990: 150). Daí o enfoque da sua ficção em toda a problemática das personagens românticas, das personagens expostas à influência do romantismo – na música, na literatura, no teatro, como também em todos os domínios em que se infiltrou um gosto, uma sensibilidade, uma retórica de matriz romântica. Seguramente devido ao esquematismo de um texto que nunca saiu do seu estado de esboço, no parágrafo em que é apresentado Vítor da Silva, protagonista de A Tragédia da Rua das Flores, observa-se de modo exemplar esse intenso trânsito de contágios entre o que é do âmbito da arte e da vida: Pensava assim, vagamente, porque era de temperamento sentimental e melancólico. Chamava-se Vítor da Silva, era bacharel em Direito, vivia com o seu tio Timóteo e praticava no escritório do soturno Dr. Caminha. Tinha trazido da universidade e da convivência literária um vago romantismo, um tédio da atividade e da profissão, e uma tristeza mórbida; lia muito Musset, Byron, Tennyson; ele mesmo fazia versos; publicara, aqui e além, em jornais, em semanários, poesias: o Sonho de D. João, Flores da Neve, alguns sonetos; compusera ultimamente um poemeto sobre o rei Artur, a Távola Redonda, os amores de Lancelote e o Santo Graal. A vida real, em redor, dava-lhe a melancolia de uma imperfeição bruta. Não desesperava de encontrar uma amante como Julieta; ao contacto de realidades muito fortes, perdera já algumas superstições românticas, mas a falta completa de ironia fazia-o persistir na veneração do ideal. (TRF: 13) Como se vê, a exposição à literatura romântica não configura apenas uma sensibilidade e um gosto estéticos; essa exposição define um temperamento, condiciona uma 108 vontade, molda um carácter – e, em última análise, vicia toda uma dinâmica de relacionamento do indivíduo com o mundo que o rodeia, dado que o simulacro de mundo que a literatura representa se interpõe entre um e outro. A alienação da realidade que o romantismo promove não impede que a realidade exista – impede que o indivíduo a perceba, que reconheça as suas exigências, que esteja à altura dos seus desafios. Vítor, adianta-nos o narrador, «ao contacto de realidades muito fortes», perde «algumas superstições românticas». Não as suficientes para que o perfil traçado seja diferente – não as suficientes sobretudo para que o corpo essencial do seu sistema de crenças se fenda, e essa fratura permita que haja uma falha de adesão, um descolamento da consciência crítica, a emergência de um esgar de dúvida onde se instale a ironia. Em todo o caso, devemos reter este dado que coloca «realidade» e «superstições românticas» em duas dimensões inconciliáveis: a própria essência do romantismo é a superstição, o primado do que não existe sobre o que existe, postulado que a experiência não deixará de invalidar, visto que a realidade não se compadece com as fantasias de que a revestem. Eça retomará, ainda de forma algo esquemática, este confronto em A Capital!143, que pode ser lido como o colapso sucessivo de uma série de investidas românticas do protagonista, Artur Corvelo, contra uma realidade pouco disposta a corresponder às suas aspirações. Mas é especialmente interessante observar o contraste entre os dois paradigmas em causa quando recortamos do corpo do romance alguns episódios singulares em que Artur interage com uma personagem secundária – tão secundária que foi suprimida na primeira edição da obra, de 1925144 –, a sua prima Cristina, de Oliveira de Azeméis. Cristina 143 A Capital! propõe-nos o desenvolvimento ficcional das principais teses d’As Farpas sobre literatura, cabendo a Damião reproduzir, em resposta à produção literária de Artur Corvelo, algumas das ideias defendidas por Eça entre 1871 e 1872. Damião refere-se à necessidade de a poesia deixar «a preocupação estreita da dor individual» e abraçar a «simpatia mais larga da humanidade martirizada» (Cap: 126); acusa Artur de escrever uma poesia «cheia de lamentações caóticas e lamartinianas» (Cap: 126), censura-lhe o recurso a «adjetivos tão espantados, verbos tão plangentes, e […] fileiras de interjeições, que parecem renques de ciprestes» (Cap: 126), e recomenda-lhe que «leia Proudhon» (Cap: 156) – o que traduz uma clara revisitação de tópicos d’As Farpas. Também quando Damião encontra na literatura de Artur o tributo a uma estética ultrapassada, shakespeareana, obsoleta e alheia à sua época («Essas florescências de linguagem (que Shakespeare elevou ao sublime, que eram nele a exuberância de um génio bárbaro desprezando as regras, e que são historicamente explicáveis noutros poetas mais calmos e mais conscientes da Renascença), são hoje de um mau gosto deplorável e de um ridículo desopilante» – Cap: 156), ou quando considera moral e socialmente indignos os caracteres de certa peça de Artur («Dizia-lhe que, pela descrição da peça – “Álvaro, lírico de profissão, vadio e cheio de chamas ilegítimas”, lhe parecia inteiramente digno da polícia correcional, a duquesa idem, e todo o drama, uma sucursal do Limoeiro» – Cap: 156), é nítida a sintonia com aquilo que Eça escreve no primeiro artigo d’As Farpas (cf. F: 25-7). 144 «A edição da Obra Completa de E. Q., da editora Aguilar do Rio de Janeiro, apresenta uma nova versão d’A Capital, da responsabilidade de Helena Cidade Moura, com novos elementos relativamente à 1.ª edição de 109 desenvolve uma afeição especial por Artur; compreende, porém, que ele sofre daquela patologia na relação com o real de que mais tarde falará Caeiro, que consiste em projetar fantasias sobre as coisas e na recusa de que elas se reduzam à sua emergência material e aos fenómenos físicos – ou físico-químicos – que lhe estão subjacentes. Ela «sentia, por instinto, que para o interessar devia ser pálida, delgada, e enternecer-se com o luar: mas […] a Lua só lhe representava a influência regularizadora da humidade ou das secas» (Cap: 153). Cristina não é uma burguesa indolente e sofisticada, como muitas das mulheres queirosianas: tem as horas contadas pelo governo da cozinha, pela costura, pela criação dos animais, pela assistência aos desvalidos. Não lhe sobraria decerto muito tempo para integrar no seu quotidiano a leitura como um hábito, mas isso não a impede de ter opiniões sobre literatura. Artur pergunta-lhe se gosta de ler; Cristina responde que não: considera os romances que por vezes lhe chegam às mãos «uma trapalhada», «tudo mentiras» (Cap: 121); quanto aos versos, acha-os «sempre a mesma choradeira», «pieguices» (Cap: 122). Cristina está demasiado vinculada à vida real para se deixar seduzir pela artificialidade da literatura. Os animais de que trata, por exemplo, absorvem-na e bastam-lhe: são autênticos, imediatos, reais; preenchem a vida, no sentido em que a sua inexistência produziria um vazio problemático, um défice de realidade que seria preciso compensar – eventualmente, com essa entidade equívoca que é a literatura. Artur, por seu lado, no retiro forçado de Oliveira de Azeméis, abandona-se em êxtase às leituras que lhe chegam em caixotes: são elas que lhe permitem alhear-se das tias, da farmácia, da prima e dos seus bichos de criação. A antítese entre as duas personagens e o que elas representam surpreende-se em diversas cenas, nas quais Artur encarna a artificialidade de uma literatura à qual a realidade repugna, e Cristina celebra a precedência ontológica do real sobre qualquer representação literária que se procure substituir-lhe: – Para que servem tantos livros?, perguntou Cristina, que compreendia ainda a posse dum livro, o livro que se relê, que se tem à cabeceira da cama, – mas tantos, com tantos nomes… – Nem todo o mundo se pode divertir com galinhas! – disse Artur excitado. Ela calou-se para o não descontentar, mas pareciam-lhe bem mais interessantes os seus pintainhos abrindo o biquinho ao grão – que todos aqueles versos, queixando-se e gemendo. (Cap: 131) Mas foi sobretudo Cristina que o indignou, dizendo-lhe que em lugar de perder o tempo com pieguices, devia entreter-se indo à fazenda olhar pelas terras, tirar as 1925, entre os quais uma personagem denominada Cristina, que havia sido suprimida por José Maria filho nessa edição […]» (Matos, 1988: 111). 110 contas aos caseiros. […] E no fim, não era preferível a todos os versos do mundo ir ver os pomares, as casas, os celeiros, a criação, as colheitas? (Cap: 135) O enlevo de Cristina por Artur esboroa-se nesta incomunicabilidade de dois planos paralelos; o seu instinto, afinado pela noção exata do real, diz-lhe que o universo em que Artur habita está cheio de espectros, vazio de realidades. Quanto a Artur, a esse custar-lhe-á muito mais, em todos os sentidos do termo, compreender até que ponto o mundo é um lugar diferente da representação que dele faz a sua sensibilidade romântica. Artur falha como escritor, mas falha ainda mais como personagem à deriva num mundo cujos mecanismos tenta em vão perceber através das lentes enevoadas dos seus «preconceitos românticos». Esta inaptidão para estar à altura dos desafios da vida que Artur revela manifesta-se noutras personagens que partilham com ele um traço biográfico precoce. Quer Julinha, que tem apenas uma aparição fugaz em O Conde de Abranhos, quer Eusebiozinho, personagem secundária de Os Maias mas que acompanha num plano afastado todo o percurso de Carlos, têm em comum com Artur Corvelo o facto de terem sido, desde a infância, educados para o romantismo e afastados do contacto com as exigências da realidade física. Em contraponto à formação de Carlos da Maia («Prrimeiro forrça! Forrça!», gosta de sublinhar Brown, o precetor inglês145), Artur, Eusebiozinho e Julinha coincidem, quando crianças, na lassidão física, no exercício da memória, no repertório de poemas românticos – entre João de Lemos e Soares de Passos – que aprendem a recitar, e finalmente no percurso de vida errático, que se limita a confirmar teses naturalistas146. Estas – e outras – personagens queirosianas falham sobretudo por terem uma visão distorcida do mundo: a literatura na qual desde a infância se encontram mergulhados conta- lhes uma mentira; a realidade que as rodeia perde na luta contra uma imagem que só existe nas suas cabeças porque os livros a depositaram lá. Vítor da Silva procura uma amante como Julieta, Artur vê em Rabecaz «um destes mestres de armas, capitães a meio soldo, azedados e turbulentos, dos romances de Eugénio Sue» (Cap: 137), João Eduardo toma as suas 145 A alternativa ao desenvolvimento das aptidões físicas na criança é a exacerbação da sensibilidade nervosa, explica Eça no artigo sobre a educação feminina: «Na criança assim há muito do animal preso. Como não pode desenvolver a força muscular, – desenvolve a ação nervosa» (F: 423). 146 Os episódios em que Artur, Eusebiozinho e Julinha são representados como crianças fisicamente murchas que declamam poesia romântica ocorrem em Cap: 100-01; em M: 75-6, e em CA: 77-8. Neste último passo, o narrador, Z. Zagalo, salta diretamente da evocação desse episódio de infância para a revelação de que Julinha se entregaria em adulta a uma vida de adultério. Em Os Maias, Eusebiozinho protagoniza vários reveses pessoais, mas a apoteose do seu falhanço é revelada na p. 705. 111 misérias triviais por dramas heroicos, como só há na literatura147, Luísa dirige-se para o “Paraíso”, onde consumará o adultério com Basílio, sentindo-se na pele de uma personagem romanesca148… Desta forma, no âmago da crítica que Eça dirige à literatura romântica não está o facto de se tratar de um paradigma estético ultrapassado, não está a saturação de temas e formas, não estão aqueles «adjetivos tão espantados, verbos tão plangentes, e […] fileiras de interjeições» (Cap: 126) que Damião, em A Capital!, condena na escrita de Artur Corvelo; o que está em causa nessa crítica é essencialmente o desencontro entre a literatura e o mundo149. Naturalmente, todos estes traços estilísticos, temáticos e formais concorrem para que esse desencontro se acentue: eles alimentam uma atitude evasiva, que coloca à partida o produto artístico na órbita de uma aspiração ideal de fuga para certos territórios alheios à realidade – o passado, a lenda, o sonho, o devaneio, a contemplação, o sentimentalismo, etc. –; a reprodução deste modelo acaba, por um lado, por gerar constelações de lugares-comuns que se reproduzem em espelho, transmutando em pura convenção aquilo que, num dado momento, fora a expressão de uma necessidade artística, e por outro por se insinuar junto dos leitores como uma melopeia envolvente, que promove a sua alienação da realidade. 147 «O destino tornara-o igual a tantos heróis que lera nas novelas sentimentais… E o seu paletó coçado, os seus jantares a quatro vinténs, os dias em que não tinha dinheiro para tabaco, tudo atribuía ao amor fatal de Amélia e à perseguição duma classe poderosa, dando assim, por um instinto muito humano, uma origem grandiosa às suas misérias triviais…» (CPA: 901). 148 «Ia, enfim, ter ela própria aquela aventura que lera tantas vezes nos romances amorosos! […] Havia tudo — a casinha misteriosa, o segredo ilegítimo, todas as palpitações do perigo! Porque o aparato impressionava-a mais que o sentimento; e a casa em si interessava-a, atraía-amais que Basílio! Como seria? […] Lembrava-lhe um romance de Paul Féval em que o herói, poeta e duque, forra de cetins e tapeçarias o interior de uma choça; encontra ali a sua amante; os que passam, vendo aquele casebre arruinado, dão um pensamento compassivo à miséria que decerto o habita — enquanto dentro, muito secretamente, as flores se esfolham nos vasos de Sévres e os pés nus pisam Gobelins veneráveis! Conhecia o gosto de Basílio — e o «Paraíso» decerto era como no romance de Paul Féval» (PB: 195). 149 Depois dos reparos estilísticos que lhe dirige, Damião aconselha a Artur: «Escreva páginas vivas!…» (Cap: 126). Exprimir a realidade viva exigiria forçosamente uma linguagem diferente daquela que constitui o registo poético de Artur Corvelo – e exigiria, antes de tudo o mais, uma outra atitude artística, disposta a colocar a realidade no centro do seu programa. 112 2.2.2.4. O discurso da imprensa Os trabalhos de Jürgen Habermas, desde a publicação em 1962 de A Transformação Estrutural da Esfera Pública, evidenciam o papel desempenhado pela imprensa na constituição de uma esfera pública burguesa na Europa, a partir de meados do século XVIII. No caso português, as condições para o desenvolvimento dessa esfera decorrentes do florescimento da imprensa ocorrem um pouco mais tarde e estão associadas ao liberalismo (Tengarrinha, 2013: 371-5), nomeadamente por via da abolição do sistema de licenças necessárias para a criação de jornais e pela supressão da censura prévia, consubstanciada na primeira lei de liberdade de imprensa (1821). O liberalismo está, assim, na origem de um extraordinário «surto jornalístico», cuja expressão se pode entrever a partir de um simples dado numérico: antes do pronunciamento de 1820 publicam-se apenas quatro jornais em toda a monarquia; só nos três anos subsequentes são fundados 112 jornais (Tengarrinha, 2013: 318-320). Nesta fase de afirmação da imprensa, dominam os jornais políticos. A imprensa impõe-se como instrumento privilegiado de comunicação ideológica; é um espaço de desconfinamento do ecossistema político, cujos temas se tornam tópicos de discussão no território alargado da opinião pública. O sistema parlamentar prolonga-se nos debates travados nas colunas dos jornais, que por sua vez são replicados de forma atomizada nas discussões que animam e agitam cafés, teatros ou grémios: «Não apenas nas Cortes, mas na casa do cidadão, no café ou no clube político passou a ouvir-se o orador parlamentar através da extensão do jornalista» (Tengarrinha, 2013: 615). O jornalista torna-se, assim, uma espécie de duplo do orador parlamentar. As fronteiras entre o jornalismo e a política esbatem-se, quando não são inexistentes (Sousa, 2011: 2), e é a este respeito sintomático que António José Saraiva e Óscar Lopes dediquem um subcapítulo da sua História da Literatura Portuguesa a jornalistas e parlamentares do romantismo, reunindo-os na mesma secção do texto (1987: 805-9). A figura do deputado e jornalista, com tendência para a supressão da copulativa150, torna-se comum: Rodrigues Sampaio e José Estêvão são a expressão mais destacada e mais celebrada desta confluência (Saraiva & Lopes, 1987: 720), mas são muitos os nomes que ao longo do século encarnam a contiguação ou a sobreposição dos dois estatutos, entre vultos incontornáveis da cultura de 150 Veja-se o título do volume coordenado por João Pedro Sousa António Rodrigues Sampaio. Jornalista (e) Político no Portugal Oitocentista. 113 oitocentos e personagens de relevo mais circunstancial151. De resto, se a imprensa acolhe com liberalidade a colaboração do deputado, ela é muitas vezes a rampa de lançamento para uma carreira política152, a que se ascende depois da exibição pública no jornal de uma eloquência alinhada com aquela que se pratica no parlamento. Tudo isto contribui para que a linguagem jornalística tenda a reproduzir os modelos da retórica parlamentar – a imprensa textualiza a oratória política, fixa-a em discursos impressos e promove a sua difusão. A mediatização dos debates parlamentares consagra deste modo junto de um público alargado os heróis da tribuna, que se tornam referências de estilo. Esta oratória tribunícia, que informa o registo jornalístico e por essa via acaba por ascender à categoria de modelo exemplar de expressão, tem como traço dominante o investimento na criação de um efeito de ênfase: José Manuel Tengarrinha destaca a «impetuosa carga emocional», o «estilo declamatório, empolado, eivado de expressões redundantes» (2013: 615); João Pedro Sousa refere-se aos «constantes apelos à emoção, mais do que à razão e à ponderação», e à «exploração imaginativa da hipérbole e da metáfora» (2011: 44); António José Saraiva e Óscar Lopes apontam a persistência das «alusões históricas e mitológicas greco-romanas» e o «cunho latinizante de parte do vocabulário» (1987: 808). Das câmaras para os jornais, o raio de influência deste registo multiplica-se por milhares de leitores, a que acrescem provavelmente ainda milhares de ouvintes153, e infiltra-se na linguagem. Ramalho Ortigão escreverá n’As Farpas que a arte portuguesa do seu século, «filha da revolução liberal de 1834, irmã gémea do constitucionalismo e da carta, [se manifesta] principalmente pela eloquência parlamentar» (1926, IV: 40). Michel Bréal, porém, 151 Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Mendes Leal, Latino Coelho, Rebelo da Silva, Pinheiro Chagas, Teixeira de Vasconcelos, Mariano de Carvalho, Oliveira Marreca, Paulo Midosi, António Enes, Leonel Tavares, Fonseca Magalhães, Carlos Lobo d’Ávila, Emídio Navarro, Magalhães Lima, etc. 152 «Nesse sentido, o jornalismo, mais do que uma alternativa, aparecia como um modelo relativamente rápido e fácil para fazer uma reputação, valorizar-se e começar a escalada para a desejada meta. Fazer jornalismo (e particularmente jornalismo político) significava enveredar por uma via promocional que, nos novos tempos, exercia sobre os jovens desfavorecidos um poder de atração comparável ao da carreira eclesiástica no antigo regime» (Santos, 1988: 332-3). Nelson Traquina, apoiando-se em Lenore O’Boyle, traça um cenário semelhante em relação ao contexto francês: «Mantiveram-se em França ligações muito estreitas com a política. Escrever nos jornais era visto como um passo normal na carreira política de um homem e um meio aceite para atingir um cargo político. Na ausência de uma imprensa de massas, o jornalismo era mais visto como um primeiro passo para outras carreiras e não uma profissão de direito próprio» (2004: 28). 153 «Crónicas lisboetas da época (de Silva Túlio, Júlio César Machado, Bulhão Pato, Palmeirim, Tinop) contam- nos de maneira pitoresca como se tornara já habitual, nos clubes políticos e nos cafés […], alguém ler em voz alta, chegando a subir a uma cadeira, os relatos dos discursos parlamentares. Mas não apenas estes. Em voz alta liam-se também os editoriais dos jornais mais importantes […]» (Tengarrinha, 2013: 615). 114 alguns anos antes de publicar a obra fundadora da semântica moderna, num texto contemporâneo do de Ramalho, chama a atenção para o facto de que essa influência se estende ao quotidiano: «Sur tous les sujets du monde nous avons une quantité de phrases faites par avance, et qui passent de bouche en bouche comme étoffe et comme aliment de la conversation. On les retrouve dans les journaux, dans les livres, à la tribune» (1872, 107). A imprensa acelera e expande a circulação de fórmulas expressivas que se instalam como lugares-comuns nas práticas discursivas da sociedade, e esse papel que ela desempenha na cristalização de uma retórica fátua é um dos aspetos visados pela crítica queirosiana vertida quer n’As Farpas, quer na produção ficcional subsequente. Mas Eça deplora com igual veemência outros aspetos do desvirtuamento do campo jornalístico, desde a lógica de submissão da imprensa a interesses sectários, nomeadamente de natureza partidária, com a consequente alienação da verdade e da coerência em nome de estratégias oblíquas, até à forma como aquilo que deveria ser um espaço de debate virtuoso se transforma na arena de uma luta desbragada, que resvala a todo o instante para o domínio do ataque pessoal. E passando ainda, noutro quadrante do espectro informativo, pelo esvaziamento absoluto da relevância noticiosa, pelo império do pseudofacto, da futilidade elevada ao estatuto de critério – o que se traduz numa mediação inevitavelmente distorcida da realidade. Se recuarmos alguns anos e nos detivermos no número inaugural de O Distrito de Évora, podemos verificar que este abre com um texto, como observa justamente Elza Miné (1986: 14-20), que pode ser lido como uma brevíssima teoria do jornalismo. Nele, Eça defende a ideia de um jornalismo comprometido com o conceito de utilidade pública, capaz de intervir nos diversos quadrantes da sociedade (na «vida política, moral, religiosa, literária e industrial» – DE, I: 9); um jornalismo empenhado no esclarecimento da população e consciente do seu papel de vigilante atento a quaisquer desvios em relação às práticas justas que se espera sejam exercidas pelos poderes instituídos. Trata-se, sem dúvida, de um elogio singular no conjunto da produção textual de Eça de Queirós. Nessa página, Eça define a matriz ideal do jornalismo, associando-lhe valores como a independência, o trabalho árduo, o espírito crítico, a inteligência, a versatilidade e a abnegação: fica assim definido o arquétipo à luz do qual não deixará a partir daí de avaliar as práticas efetivas dos profissionais desta área. Se deste primeiro texto de O Distrito de Évora transitarmos para a antepenúltima carta de A Correspondência de Fradique Mendes, deparamo-nos com uma série de considerações que constituem, em boa parte, o negativo daquela página de 1867. Fradique acusa o jornalismo de ser responsável pela difusão de juízos infundados, de promover um conhecimento 115 superficial da realidade em resultado da reprodução de práticas incompatíveis com as exigências da profissão; vê nele uma entidade que estimula a sede de fama, um instrumento de instigação da vaidade humana, capaz de gerar atos irracionais, determinados exclusivamente pela ambição de notoriedade; associa-o a maniqueísmos contrários aos valores da razão e da justiça e repudia a intolerância que advém da filiação de todos os jornais num determinado quadrante de ideias – o que leva cada um deles a defender o partido a que pertence mesmo quando este está errado, bem como a atacar os partidos adversários ainda quando eles têm razão (CFM: 215-24). Consideremos três circunstâncias que enquadram as diferenças exibidas por estes dois textos: em primeiro lugar, eles parecem sobretudo traduzir a distância que medeia entre a perfeição ideal de um programa e os homens imperfeitos que o realizam, o que justificaria o contraste acentuado entre as visões que ambos propõem; em segundo lugar, o arco temporal que liga O Distrito de Évora a A Correspondência de Fradique Mendes por pouco não é coincidente com aquele que delimita todo o percurso autoral de Eça, pelo que Fradique poderia traduzir uma visão desencantada dos ideais do jovem Eça; em terceiro lugar, Fradique é uma personagem ficcional e as suas opiniões não vinculam necessariamente o seu autor. Dá-se, porém, o caso de partes substanciais deste texto, e precisamente aquelas em que Fradique expõe as suas teses sobre o jornalismo, terem sido publicadas por Eça na sua crónica da Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, a 28 de abril de 1894 (TI, IV: 459-62; cf. tb. intr. Elza Miné: 24-6), o que por um lado anula a mediação ficcional da autoria do texto, e por outro documenta a relativamente precária autonomia de Fradique em relação a Eça de Queirós. Além disso, não se pode propriamente dizer que esta visão hipercrítica da atividade jornalística seja o ponto de chegada de um processo de erosão progressiva que a representação do jornalismo sofra na ficção ou na opinião de Eça. Na verdade, o elogio que se lê no primeiro número de O Distrito de Évora parece ser sobretudo um discurso de legitimação do projeto jornalístico que ali começava; nunca veremos Eça escrever depois deste texto algo remotamente semelhante sobre a imprensa – embora possamos ler, como faz Elza Miné (1986: 15-16) no caso específico de um texto queirosiano publicado em julho de 1870 no fugaz A República, de Oliveira Martins, todos os ataques ao jornalismo desferidos a partir daqui como a confirmação do elogio dos valores celebrados n’O Distrito, mas através da implacável condenação das práticas que deles se desviam. 116 O artigo em causa, intitulado «Palavras sobre o jornalismo constitucional» (AOD: 89- 94) e publicado no jornal A República a menos de um ano do lançamento d’As Farpas, antecipa muitas das questões depois retomadas nesta última publicação, bem como na ficção ulterior. É o primeiro ataque violento que Eça de Queirós desfere contra a imprensa constitucional154: está em causa o jornalismo da Regeneração (Eça situa entre 1850 e 1870 o âmbito cronológico visado pelas suas críticas – isto é, precisamente um período de particular florescimento da imprensa portuguesa: cf. Tengarrinha, 2013: 736), que é encarado como espelho da decadência do país. Sustenta Eça que os jornais são inúteis para a causa pública: criados para servirem os interesses de quem os patrocina, são plataformas de ascensão pessoal ou defendem poderes instalados155. De resto, a própria imprensa convive bem com a desconsideração com que é acolhida, contanto que os seus propósitos estratégicos sejam assegurados; e a única razão por que ela é ainda temida reside no poder que detém de, recorrendo à calúnia, arruinar uma reputação. Quer pelo teor das acusações que dirige aos jornais, quer sobretudo pelo seu perfil estilístico e retórico, este texto de Eça poderia perfeitamente integrar a série d’As Farpas. Traços como o recurso reiterado à enumeração, frequentemente organizada segundo um princípio gradativo, ou a insistência no tópico do diagnóstico da falha, da lacuna156, aproximam este registo daquele que caracterizará o conjunto de textos que Eça escreveria com Ramalho entre 1871 e 1872. Um dos aspetos centrais em que o artigo d’A República 154 Ainda assim, menos de um mês depois de publicar o elogio do jornalismo no primeiro número d’O Distrito de Évora, Eça escreve de passagem na crónica no número 5, a propósito de Les Odeurs de Paris, de Louis Veuillot, algumas linhas críticas sobre a imprensa portuguesa, que anunciam a posição futuramente assumida de forma dura e sistemática: «Mas a grande instituição moderna, a soberana instituição contemporânea – é a imprensa. Desde o jornalismo que elogia as botas de verniz do ministro até ao jornalista que protege modestamente os reis e as nações, tudo passa sob o azorrgue de Luís Veuillot. Aqueles capítulos, traduzidos, seriam a imagem fiel da imprensa portuguesa» (DE, I: 273). 155 Em O Conde de Abranhos, o próprio Z. Zagalo reproduz muito aproximadamente as ideias de Eça aqui expressas a este respeito. Escreve Eça n’A República: «Como [os jornais] não saem dum princípio, da fé que se pode pôr numa ideia, não têm individualidade, nem lógica, nem acção determinada, nem probidade pública: são uma voz sonora e enfática que serve todas as opiniões, advoga em nome de todas as situações, dá-se a todos os grupos ambiciosos e flutua sonolentamente do ministério A para o ministério B, agarrando aqui num subsídio, além um lugar de funcionário, por toda a parte o desdém» (AOD: 90). Em O Conde de Abranhos, Zagalo refere-se à imprensa nos seguintes termos: «A Bandeira Nacional era um destes muitos jornais, que fundados sem capitais e não correspondendo a nenhuma necessidade intelectual, têm na sociedade um lugar isolado e sem valor, arrastam uma vida difícil, tendo que mendigar, aqui e além – ou da oposição ou do governo – a esmola de um subsídio, e, quando este lhes falta, se extinguem por si mesmos no silêncio e na obscuridade» (CA: 55). 156 «Um jornal vive […] sem consciência, sem filosofia, sem pensamento, sem gramática, desaparece como um som inexpressivo, sem ter deixado uma ideia, a memória eloquente de uma discussão, uma crítica justa das coisas, uma definição ou um dito» (AOD: 89); um jornal defende «sem lógica, sem justiça, sem verdade» (AOD: 90) tudo o que salvaguarda os seus interesses; o artigo de fundo «não tem verdade, nem ideia, nem realidade» (AOD: 93), etc. 117 antecipa os d’As Farpas reside no destaque que nele assume o enfoque na linguagem da imprensa. «A retórica substitui a crítica: a declamação está no lugar da lógica e pelas páginas de cada jornal estendem-se, como uma infinidade de regatos de água tépida, insalubres e vagarosos, toda a sorte de dizeres pomposamente tolos e pretensiosamente enfáticos» (AOD: 93), escreve Eça, ensaiando com um ano de antecedência a oposição entre retórica e lógica que depois será central n’As Farpas. Noutro passo, a crítica queirosiana censura «o velho estilo constitucional» que interpreta até à exaustão «tudo quanto a velha região do lugar comum tem de mais explorado e de mais batido», e cujos adjetivos «desmaiam de fadiga» (AOD: 93). Ora As Farpas começam precisamente por se distanciar deste registo, ao recusarem juntar-se à vasta família dos jornais políticos, representados no início do primeiro número como um «vasto logradouro de ideias triviais, que desmaiam de fadiga entre as mãos dos tipógrafos» (F: 17). A imprensa é, de resto, um dos primeiros tópicos da vida nacional a ser objeto de uma incursão crítica no artigo que inaugura a publicação, e o juízo que dela aí é produzido oferece ao leitor um desenho um pouco mais detalhado das razões que levam As Farpas a assumir uma posição de rotura em relação às práticas jornalísticas vigentes em Portugal: se não o fizessem, alega Eça, limitar-se-iam a engrossar um caudal de periódicos cujas marcas identitárias são a redundância e a irrelevância. Os jornais políticos «têm todos a mesma política» e os jornais noticiosos «têm todos a mesma notícia» – a primeira banal e a segunda inútil –, distinguindo-se entre si apenas pela disposição dos dados na composição dos artigos e pelas variações estilísticas dos respetivos discursos (F: 23). A conclusão inevitável é que, não se distinguindo entre si, são redundantes e supérfluos – quer os discursos, quer os jornais. Por outro lado, a acusação de distorção da realidade em função das agendas políticas e das estratégias de assalto ao poder transita no essencial do texto d’A República para as páginas d’As Farpas: é ao nível dos interesses particulares que se desenrola o combate que os jornais protagonizam, e é em torno dessa esfera que gravitam, afinal, as verdadeiras razões da sua existência – isto é, os jornais são meramente uma extensão da decadência da vida política (F: 23-4). No final deste primeiro artigo, a crítica queirosiana volta a visar a imprensa, numa secção que viria a ser suprimida em Uma Campanha Alegre: está em causa ainda a subserviência dos jornais aos poderes que os sustentam, de que resulta eles falharem enquanto veículos de uma ideal independência de pensamento, servida por uma não menos ideal liberdade de expressão. As Farpas reclamam assim no panorama mediático português o espaço de intervenção crítica que de outra forma seria negado aos seus autores: 118 As breves páginas que tu acabas de percorrer, amigo leitor, nenhum periódico português ousaria publicá-las integralmente nas suas colunas. […] Não: os periódicos, ainda os que mais aleivosamente têm assaltado o interior das famílias, a honra inviolável dos cidadãos e a casta delicadeza das mulheres, não publicariam os nossos artigos, sem os cortarem, sem os reduzirem por mutilações sucessivas aos moldes dos seus intuitos, das suas conveniências ou dos seus programas. (F: 34-5)157 As referências de que a imprensa é objeto em artigos posteriores não se desviam de forma significativa do juízo exposto neste texto inaugural, centrando-se com especial insistência na questão do registo. No artigo em que são anunciadas as Conferências do Casino, a imprensa progressista e democrata é a primeira visada: ela ou se esgota na inconsequência sentimental e lírica da sua prosa, ou peca pelo excesso, igualmente ineficaz, do insulto e da difamação (F: 41). Globalmente considerados, os jornais portugueses «diluem» as suas opiniões numa «prosa fluida» (F: 55), por oposição ao empenho com que elas são defendidas na imprensa francesa (na edição de 1890, essa prosa perde a ambiguidade que lhe conferia o atributo original: passa, a partir daí, a ser «prosa dormente» – cf. UCA: 49). Mais tarde, Eça referir-se-á ao Comércio do Porto ora como «excelente folha lúgubre» (F: 139), ora como «excelente folha sonolenta», «Folha de tédio, folha grave e oca» (F: 472). Os vários jornais com os quais As Farpas manterão polémicas alimentam, naturalmente, o caudal das críticas: são obsoletos como a Nação (F: 90), líricos e trovadorescos como o Clamor do Povo (F: 243), sonolentos e pesados como o Bem Público (F: 320), sensaborões e desprovidos de gramática como aquele que As Farpas optam por não nomear, e que lançara uma suspeita caluniosa sobre a integridade dos seus redatores (F: 352-53). A ficção queirosiana não cessará de explorar as diversas declinações desta visão crítica sobre as práticas da imprensa. Elogiado por personagens medíocres, como o conde de Abranhos ou o conselheiro Acácio158, e hostilizado pelas mais esclarecidas, como João da Ega – o mais empenhado duplo de Eça nos ataques à imprensa159 –, o jornalismo que é 157 Na terceira peça da polémica que António Enes mantém com As Farpas a partir do «Folhetim» da Gazeta do Povo, Enes acusa Eça de plagiar neste passo Les Guêpes, de Alphonse Karr – de resto uma influência assumida por Eça desde a génese do projeto («São as Guêpes de Karr, tratadas ao modo peninsular», escreve Eça na carta, presumivelmente datada de junho de 1871, em que põe João Penha ao corrente da nova publicação. Cf. Cor, I: 49). É inquestionável que Eça deve aqui algumas linhas a Karr, que escreve: «Il n’y a pas en France un seul journal qui oserait imprimer en entier dans ses colonnes le présent petit livre» (Karr, 1853: 9). Eça, no número de agosto de 1871, alegará – de forma pouco convincente, aliás – que essas linhas não configuram um caso de plágio, sendo apenas a expressão coincidente de uma coincidência de circunstâncias (F: 155-56). 158 Para Alípio Abranhos, a imprensa é «porta-voz do progresso» (CA: 12). Acácio, enquanto atrapalha os planos de Luísa, celebra as virtudes dos jornais: «– Porque em Portugal, creia isto, minha senhora, a imprensa é uma força» (PB: 236). 159 «– Estas bestas! Estas bestas destes jornalistas! Leste? “Lágrimas em todos os olhos da numerosa e estimável colónia hebraica!” Faz cair a coisa em ridículo… E depois a fluência de estilo. Que burros! Que 119 representado nos romances queirosianos segue de perto o mapa dos vícios apontados n’A República e depois revisitados n’As Farpas: a imprensa surge associada à obtenção de dividendos pessoais e ao exercício do pequeno poder160, é vista como veículo de expressão para ataques dirigidos161, como instrumento para ajustes de contas162, gera espécimes vocacionados especialmente para a calúnia e a difamação163 – e o jornalista é frequentemente a glosa daquele «patife com ortografia, sem escrúpulos», como Agostinho é descrito em O Crime do Padre Amaro (CPA: 403). Daqui resulta uma cadeia de distorções que atinge no âmago a matriz ideal do jornalismo enunciada n’O Distrito: a distorção da ideia de serviço público, da ética jornalística, a distorção quer da realidade comunicada, quer da realidade percebida – em última instância, a distorção da realidade ela própria, na medida em que a intervenção da imprensa acaba, afinal, por contribuir para a desregulação da vida coletiva. É disso mesmo que se dá conta o inevitável João da Ega: «Nós somos incompetentes. Nós estamos bestializados pela notícia do senhor conselheiro que chegou ou do senhor conselheiro que partiu, pelos idiotas!» (M: 134); «Mas em geral o silêncio dos jornais para com os livros provém sobretudo de eles terem abdicado todas as funções elevadas de estudo e de crítica, de se terem tornado folhas rasteiras de informação caseira, e de sentirem por isso a sua incompetência…» (M: 576). Mas igualmente Carlos da Maia e Afonso da Maia pertencem ao grupo restrito dos críticos da imprensa – e ainda, porventura até mais do que este último, também a figura que constitui o primeiro esboço de Afonso, Timóteo, em A Tragédia da Rua das Flores: «E revirando o periódico, sacudindo-o: – Se isto é um jornal! Aqui estão os artigos, as informações, as críticas: Foi aprovada a tarifa especial n.º 1 não sei de quê… Foi despachado aluno pensionista do instituto, o sr. não sei quem… […] Isto é extraordinário… Tudo do princípio ao fim… E duas colunas de “partir e chegar”, faleceu, por amor… Burros!… E há três dias que não recebo o Times… E é um país isto!» (TRF: 28). Os fragmentos de notícias que Timóteo lê em tom crítico reaparecem, com poucas variações, em A Capital!. Neste caso trata- se da antecipação da edição do jornal do dia seguinte feita por Melchior, jornalista, que no fim conclui: «Não vem mau o número de amanhã…» (Cap: 195). 160 Em A Capital!, perante a possibilidade de se associar à fundação de um jornal, Artur vê-se « imediatamente da banca da redação, dominando Oliveira, sendo uma força no distrito, lido na Assembleia, em Lisboa» (Cap: 161). Em O Primo Basílio Saavedra e Julião trocam impressões sobre a imprensa: «O redator do “Século” gabava a profissão de jornalista – quando a gente, já se sabe, tem alguma coisa de seu; mais tarde ou mais cedo apanha-se um nicho, não é verdade? Depois as entradas nos teatros, a influência nas cantoras. Sempre se é um bocado temido…» (PB: 338). 161 Artur e Vilela, em A Capital!, fazem planos para o futuro jornal A Nova Era: «Artur queria publicar os Esmaltes e Joias em folhetins, e defender os princípios da Revolução Francesa: Vilela queria deitar abaixo o administrador do Concelho» (Cap: 161). 162 Em O Conde de Abranhos, Alípio «conhecia bem os Nacionais, os seus podres, e se lhe “passassem o pé”, fundaria, com o dote da Virgininha, um jornal onde esmagaria o partido com a revelação indignada dos seus escândalos e da sua corrupção» (CA: 178). Em O Crime do Padre Amaro, João Eduardo congemina ações de represália em relação aos clérigos que frequentam a S. Joaneira: «Mas o que o satisfaria mais seriam artigos tremendos num jornal, que revelassem as intrigas da Rua da Misericórdia, amotinassem a opinião, caíssem sobre o padre como catástrofes, o forçassem a ele, ao cônego e aos outros a desaparecerem corridos da casa da S. Joaneira!» (CPA: 575). 163 É o caso da Corneta do Diabo, o «jornal sórdido» (M: 531) que publica a carta através da qual Dâmaso atenta contra a reputação de Carlos, em Os Maias. A Corneta do Diabo foi criada originalmente para A Tragédia da Rua das Flores, esboço de romance onde se descrevem de forma mais linear os seus procedimentos jornalísticos e empresariais: «O meio de obter este rendimento era simples: era extorquir com usura ou simples ameaça de uma publicação infamante, ou receber dinheiro do covarde, pela impressão de alguma calúnia; o difamado trazia a calúnia e a espórtula; o redator virgulava a calúnia e guardava a espórtula» (TRF: 302). 120 High Lifes, […] pelo artigo de fundo em descompostura e calão, por toda esta prosa chula em que nos atolamos…» (M: 577). Aquilo que mais inquieta Eça de Queirós, nesta questão como em muitas outras, é a diferença entre o valor nominal e o valor efetivo de um instrumento fundamental do processo de mediação entre mundo e o indivíduo. A questão coloca-se com especial relevo no que diz respeito à linguagem, à retórica jornalística, dado que ela constitui o primeiro revestimento equívoco dos factos e é, em última instância, o ponto-chave em que assentam as práticas de distorção da realidade levadas a cabo pela imprensa. Como referi acima, As Farpas distanciam- se desde o primeiro número das várias modulações do registo da imprensa portuguesa, independentemente da sua orientação ideológica – atitude que transitará para lá do período de colaboração entre Ramalho e Eça. Este, ao traçar o perfil do companheiro na carta a Joaquim de Araújo, enaltece, entre outros aspetos, a postura antirretórica que Ramalho manteve ao dar continuidade a solo à publicação, a partir de novembro de 1872, destacando nomeadamente a sua luta contra todas as modalidades de retórica, não só a conservadora mas também a democrática (cf. supra: 75). Vaga, enfática, idealista, sentimental, esta retórica instalara-se no espaço público discursivo como um pseudovalor: não obstante ser de fácil adesão, tratava-se na verdade de um recurso contraproducente, visto que o culto de que era objeto colocava num plano afastado, tido como complexo e desmobilizador, a abordagem objetiva e racional das questões relevantes. «Não é neste estilo que escrevem os nossos jornalistas democratas? os nossos operários?» (CP: 116), pergunta Eça no mesmo texto. É, de facto, nesse estilo que escrevem muitos dos jornalistas da sua ficção. Desde a invocação enfática do Gólgota em questões sociais e políticas, quase um leitmotiv que pontua a caricatura de uma retórica progressista164, até ao culto mais genérico do período coleante, 164 «[…] o jornal de Leiria, A Voz do Distrito, que estava na oposição, falou com amargura, citando o Gólgota, no favoritismo da corte e na reação clerical» (CPA: 101); «Depois de algumas considerações, cheias de flores, sobre Jesus e o Gólgota, o artigo de João Eduardo era, sob alusões tão diáfanas como teias de aranha, um vingativo ataque ao cónego Dias, ao padre Brito, ao padre Amaro e ao padre Natário!…» (CPA: 411). O operariado a que Eça se refere apropria-se do mesmo estilo, que tem um acolhimento caloroso na imprensa: «Esteves abrira o comunicado e parecia surpreendido. Melchior então, curioso, foi olhar por cima do ombro dele, e leu alto: / “IRMÃOS DO TRABALHO! Quando do alto do Gólgota, o Redentor do género humano, já exangue, soltou o grito supremo, foi para proclamar uma aurora de paz e de esperança e arrancar a cadeia da escravidão dos pulsos dos filhos da democracia…” / E continuava assim, em duas laudas, falando da “gargalheira de ferro dos tiranos”, do “credo da liberdade”, da “arca da aliança”. Explicava a greve da Pampulha, como sendo a “aurora que raia para as vítimas do despotismo”; aconselhava os operários “a que refrigerassem as frontes fatigadas no puro seio das filhas do povo”; e depois de novas amplificações sobre o Cristo, terminava: “a vossa comissão grita-vos do alto da colina: coragem, heróis do trabalho, coragem!” / – Hem! – fez o Melchior, atónito. – Para ser de um operário! Está esplêndido!» (Cap: 196). O próprio Alencar, na sua deriva pontual pelos ideais republicanos, visita este mesmo tópico: «A Democracia e o Cristianismo, como um lírio que se 121 ostentoso, esdrúxulo, como o interpreta Alípio Abranhos e o celebra Z. Zagalo165 – do período repleto de «dizeres pomposamente tolos e pretensiosamente enfáticos», para citar de novo o artigo d’A República –, a imprensa é representada sobretudo enquanto foco de difusão de informações que oscilam entre o inútil e o danoso, vertidas numa linguagem moldada pela sensibilidade vigente, e reproduzindo essa mesma tendência, confirmando o seu estatuto de modelo166. Na mesma carta a Joaquim de Araújo a que fiz referência acima, Eça, quando explica que a missão que As Farpas se propuseram desde o início foi a de «obrigar a multidão a ver verdadeiro», chama a atenção para a prodigiosa capacidade que a imprensa detém de distorcer a realidade: Pela aceitação passiva das opiniões impostas, pelo apagamento das faculdades críticas, por preguiça de exame, – o público vê como lhe dizem que é. Que amanhã o Diário de Notícias, ou outro órgão estimado, declare que o Hotel Aliança ao Chiado é uma maravilhosa catedral gótica, que insista nisto no local e no folhetim, – e numa semana o Público virá fazer no Largo do Loreto semicírculos estáticos e verá, as ogivas, as rosáceas, as torres, as maravilhosas esculturas do hotel Aliança. (CP: 109) Uma importante dimensão do mundo que As Farpas, tal como a posterior obra queirosiana, pretendem que o seu público apenda a ver verdadeiro é a própria deformação da realidade que a imprensa promove – isto é, pretendem reabilitar as faculdades críticas e de exame para cujo adormecimento essa mesma imprensa concorre, ao reduzir toda uma existência coletiva ao high life, à notícia de que o «assinante, colaborador e amigo X partiu para as Caldas da Rainha» (F: 23), ao transformar a política numa matéria inerte declamada em «frases poéticas e retumbantes» (CPA: 595) ou vertida «em estilo mazorro ou em estilo abraça a uma espiga, completavam-se, estreitando os seios! A rocha do Gólgota tornava-se a tribuna da Convenção! E para tão doce ideal não se necessitavam cardeais, nem missais, nem novenas, nem igrejas. A República, feita só de pureza e de fé, reza nos campos; a Lua cheia é hóstia; os rouxinóis entoam o Tantum Ergo nos ramos dos loureirais» (M: 610-11). 165 Escreve Zagalo, depois de citar uma xaropada retórica da autoria de Alípio: «Mostrem-me, se a conhecem, em todo o jornalismo contemporâneo, uma página igual! Como o período se desenrola em curvas lustrosas e fluentes, seguindo na cadência melódica – e quando o leitor, extático, imagina que ele vai findar, ei-lo que se reergue e se arqueia, mais límpido e mais fácil, para fechar num remate sonoro e magistral» (CA: 60). 166 Daí que os jornais plagiem reiteradamente o artigo de Alípio a que se refere a nota anterior, que este se institucionalize como referência – e que o efeito por ele gerado não cesse de se produzir: «Não me admira por isso, que, sempre que em Portugal se anuncia uma reforma administrativa, este sublime artigo reapareça textualmente, palavra por palavra, nos periódicos que por dever de partido combatem a centralização, causando sempre a mesma impressão profunda. / Somente, com respeito o digo aos meus colegas da imprensa, é lamentável que o reproduzam como obra original – tanto mais que todos os letrados lhe conhecem o autor, e até a Seleta para o curso de Português do segundo ano dos liceus o colecionou, como um modelo de estilo oratório e jornalístico» (CA: 60-1). 122 fadista» (M: 575), ao fomentar o culto de um estilo viciado, que se torna referência de gosto e modelo de imitação. Eça manifesta uma convicção muito firme de que a imprensa produz uma mediação distorcida entre a realidade e o seu público. O jornal, que deveria fornecer «um resumo límpido» da vida moderna, enquadra nas suas páginas uma versão truncada e deformada do mundo. Os contornos imprecisos desse simulacro de realidade que a imprensa oferece ao leitor são ainda objeto de uma distorção suplementar por via da linguagem, que se distancia da sua função referencial e tende a dobrar-se sobre si mesma, a constituir-se estereótipo, eufemismo ou ornamento. A imprensa é assim a fábrica que produz uma opinião pública medíocre, sem ideias, sem crítica, sem instrumentos para compreender o que a rodeia. No primeiro artigo d’As Farpas, Eça propõe-nos uma visão da vida portuguesa como farsa – isto é, não enquanto realidade, mas enquanto encenação, enquanto mise-en-scène de uma realidade que é sistematicamente objeto de representações distorcidas, o que coloca os cidadãos a mover-se num espaço que não é o real. Essa mise-en-scène é resultado da ação concertada de uma série de dispositivos de mediação, entre os quais a imprensa ocupa inquestionavelmente um dos lugares centrais. É sobretudo por uma questão de arrumação temática que estes quatro focos da crítica queirosiana – literatura, religião, política e imprensa – são aqui abordados separadamente. O desenho das fronteiras que os delimitam é, na perspetiva que deles nos oferece Eça de Queirós, muitas vezes impreciso e permeável a sobreposições: todos eles enfermam de sérios vícios éticos, todos partilham graves responsabilidades no fenómeno de incompreensão da realidade em que se encontra mergulhada a população portuguesa e todos têm em comum a retórica que os reveste, assente em grande medida na deturpação da linguagem como instrumento de distorção da realidade. As afinidades existentes entre estes campos sociais manifestam-se também em aspetos que vão desde a provocação queirosiana subjacente às suas propostas de intercâmbio dos registos discursivos característicos de cada um deles167 até à coincidência dos ataques de que estes são objeto168. 167 Veja-se nomeadamente a forma como o registo político, o registo literário e o registo jornalístico se cruzam no artigo do número de julho de 1871 dedicado ao discurso da coroa (F: 94-7). 168 Confronte-se, por exemplo, o modo como As Farpas abordam os discursos poético e político nos números de maio e de julho de 1871. Neste último, o discurso da coroa é objeto do seguinte comentário: «Por consequência, dilema implacável: – Ou o discurso da coroa exprime rigorosamente a opinião e a consciência 123 O diagnóstico da decadência nacional que Eça propõe n’As Farpas assenta em grande medida na degradação daquilo a que Habermas chama a esfera pública burguesa (Habermas, 2012), uma categoria que na sua origem se associa a um conjunto de conquistas da classe burguesa, nomeadamente o primado da racionalidade, o exercício de uma opinião esclarecida e expressa livremente, o escrutínio crítico das decisões do poder, etc. Neste processo, instituições como a literatura ou a imprensa desempenham um papel crucial e estão na génese da constituição de uma esfera pública política, ao fomentarem a cultura de pensamento crítico que está no seu epicentro. A análise habermasiana do declínio da esfera pública passa pela interseção de dois movimentos: por um lado, verifica-se a passagem do exercício de uma receção crítica dos diversos discursos produzidos no espaço público a uma atitude de consumo passivo, nomeadamente na sequência da consolidação de uma indústria cultural vocacionada não para o debate, mas para a mercadorização dos seus produtos; por outro lado, as transformações retóricas operadas sobre a linguagem pelas instituições da órbita do poder tornam o discurso por elas produzido progressivamente opaco e eufemístico, recusando expor a verdadeira natureza da ação que aparenta traduzir. Assim, «[a] esfera pública, desvirtuada da sua função original, assume-se enquanto mero instrumento de propaganda e de legitimação do poder instituído» (Silva, 2002: 38). Ao mesmo tempo que apontam a mira dos seus artigos aos agentes responsáveis pela degradação do espaço público, As Farpas procuram através da sua ação e do seu exemplo contribuir para a revitalização desse mesmo espaço: promovendo a consciência crítica do seu público, alertando-o para os perigos de uma adesão precipitada à manifestação epidérmica de determinados discursos ou determinados comportamentos oriundos da esfera dos poderes jurídicos e simbólicos, instaurando uma prática de discussão que interpõe uma distância reflexiva entre o modo como a realidade se dá a perceber e a interpretação que os sujeitos dela fazem. Daí a insistência com que Eça, nos seus artigos, sublinha a vinculação d’As do chefe do poder executivo – e então que confiança nos pode inspirar este magistrado, se ele ignora inteiramente o estado do seu país? Ou não exprime opinião alguma, e são apenas alguns períodos de convenção – e então que seriedade tem o chefe do poder executivo, vindo diante do país, quando eram necessárias palavras decisivas, recitar velhas frases retóricas?» (F: 96). No primeiro número, é o registo lírico que está em causa. As semelhanças são particularmente evidentes na edição de 1890: «Das seguintes coisas, uma: / Ou o Sr. X pinta a verdade quando escreve estes seus versos, e então é um devasso que dá um exemplo detestável a seus filhos, e desconsidera sua esposa… Como havemos de acreditar em tal caso na seriedade do seu carácter? / Ou o Sr. X não diz a verdade, e todos aqueles seus êxtases são rimados muito aconchegadamente à mesa do chá, entre um dicionário e uma poética, com um barrete de algodão na cabeça… Neste caso como havemos de acreditar na seriedade da sua arte?» (UCA: 22). 124 Farpas ao princípio de uma racionalidade argumentativa fundada na lógica, nos factos, na razão, bem como o repúdio da cedência ao efeito de estilo, à ênfase retórica. No próximo capítulo, proponho-me indagar se este posicionamento crítico e doutrinário se traduz numa produção textual consequente, isto é, se não existe contradição entre o discurso antirretórico d’As Farpas e as suas próprias construções discursivas. Trata-se de saber até que ponto são As Farpas, de facto, o império da racionalidade, da lógica e do bom senso – isto é, até que ponto elas são asseticamente isentas de vestígios daquela retórica da comoção e da sensibilidade, do ruído e do aparato, tantas vezes visada nas suas páginas. 3. Lógica, bom senso e sensibilidade: trânsitos retóricos 127 3.1. Uma questão de lógica e bom senso As Farpas apresentam-se ao leitor, no número inaugural, investidas de um propósito singelo: elas «[d]esejam simplesmente ser a lógica e ser o bom senso», lê-se no artigo que Eça escreve a propósito da recente abertura das Conferências Democráticas do Casino. Talvez valha a pena expandir um pouco esta afirmação, devolvendo-lhe as duas curtas frases que a precedem: Sejamos lógicos. As Farpas não são o legitimismo, nem a república, nem o constitucionalismo, nem o sebastianismo. Desejam simplesmente ser a lógica e ser o bom senso. (F: 43) É bem conhecida a particular vinculação d’As Farpas à ideia de bom senso, herdada da questão coimbrã (cf. Medina, 2000: 45, 47; Rita, 1998: 187). Nos oito primeiros números – aqueles que são dados à estampa no ano de 1871 –, o bom senso será insistentemente objeto de referência nas crónicas queirosianas (no total são mais de duas dezenas as ocorrências da expressão), e a invocação regular deste valor, que a publicação reclama como principal tutela, obedece fundamentalmente a dois propósitos. O primeiro prende-se com uma estratégia através da qual se pretende desde o início promover um acolhimento favorável, por parte dos leitores, das posições defendidas: estamos, por conseguinte, instalados no domínio da captatio benevolentiae. Sublinho – desde o início, porque o primeiro número abre precisamente com uma apóstrofe ao leitor de bom senso: Leitor de bom senso – que abres curiosamente a primeira página deste livrinho, sabe, leitor – celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil – que foi para ti que ele foi escrito – se tens bom senso! (F: 16) 128 Há um curioso paralelo entre este excerto e o anteriormente citado, já que em ambos se verifica a invocação insistente daquilo que num e noutro passo são os valores que se pretende evidenciar: a lógica, o bom senso. No primeiro caso, a insistência serve fundamentalmente para propor uma hierarquia implícita nas formas de abordagem do (complexo) momento histórico que o país vive: Eça argumenta logicamente (ou quase logicamente, segundo a terminologia perelmaniana: preenche, através de um argumento de divisão, todo o espaço opinativo com a mesma cor severamente crítica em relação ao funcionamento do país169, e daí extrai, em nome da coerência – em nome do princípio da não contradição –, como uma consequência necessária, o apoio generalizado à iniciativa de Antero) e aproveita o ensejo para recordar ao seu leitor que a sua argumentação é isso mesmo – lógica. Mais do que isso: que a essa argumentação subjaz um modo lógico de compreender os fenómenos, por oposição aos modos ideológicos, suscetíveis de distorcerem a perceção que se tem desses fenómenos. Não se trata, portanto, rigorosamente de uma redundância, mas do apelo à mobilização de uma faculdade, seguido da manifestação de um tributo a essa mesma faculdade, de que implicitamente se defende a superioridade em relação a disposições alternativas. Já no que diz respeito à frase inaugural d’As Farpas, é de um registo aparentemente redundante que se trata. Se dessa frase retirássemos os elementos acessórios (a oração relativa e o segundo extenso vocativo), ficaríamos com a seguinte formulação: «Leitor de bom senso […], sabe […] que foi para ti que [este livrinho] foi escrito – se tens bom senso!» A redundância, à primeira vista, desafia a própria lógica: não pode, naturalmente, o leitor de bom senso deixar de ter bom senso. Mas se há algo que aqui se torna imediatamente notório é a importância que o «bom senso» assumirá na retórica d’As Farpas. Esta dimensão central é ainda sublinhada nos dois excertos pelo facto de Eça não se limitar a afirmar positivamente a filiação d’As Farpas neste «bom senso»: no primeiro excerto recusa expressamente filiações de natureza política; na apóstrofe ao leitor, por seu lado, declara não existir qualquer critério na seleção do perfil do destinatário d’As Farpas que esteja 169 «Temos ainda, que atualmente o grande carácter das conferências, é, segundo nos parece, a oportunidade. Há muito tempo que a opinião pública as pedia. O quê! há aí alguém que o negue? / Não o nega decerto o parlamento, onde todos os dias ministros, maiorias e oposições – diziam que o país estava desorganizado e perdido. / Não o nega decerto a imprensa que todos os dias diz que o sistema constitucional está desautorizado! (Diário Popular, Jornal do Comércio, Gazeta, etc., passim.) / Não o nega a opinião, que todos os dias diz, com uma certa convicção desleixada, nos cafés, nas ruas, nos passeios, nos estancos: – Ora! Isto está podre! / Quando a opinião, tão geral, diz que um país está perdido dentro de um sistema, coloca-se por essa mesma confissão fora do sistema e deseja, por uma propaganda nova, uma restauração social» (F: 43). 129 relacionado com aspetos como o seu estado civil, a sua situação socioeconómica ou o seu posicionamento político-ideológico170. Não se trata, por conseguinte, de dizer apenas o que As Farpas são, mas também de dizer o que elas não são: o desenho exato do que elas são recorta-se portanto com particular exatidão neste pano de fundo constituído pelo que elas não são – destaca-se dele, ganhando-se assim uma dimensão de contraste, de perspetiva, que de outro modo não se teria. As virtudes retóricas desta apóstrofe ao «leitor de bom senso» são manifestas. Não restará ao leitor senão optar entre concordar com Eça, que invocará repetidamente esta qualidade171, ou, em caso de discordância, ver-se destituído dela: como observa Annabela Rita, estamos perante uma estratégia que promove a cumplicidade ou a exclusão (a atração ou a rejeição, nas suas palavras), a partir de um «mecanismo de dupla funcionalidade» (1988: 104- 5), sem aparente lugar para um meio-termo. Temos então definido o primeiro propósito das reiteradas referências ao bom senso: trata-se de seduzir o leitor, de condicionar favoravelmente a sua leitura, de o levar a reconhecer que no desenho que As Farpas lhe apresentam do país este se deixa efetivamente perceber nos seus traços essenciais, e de promover a sua adesão aos juízos que sobre esse país elas lhe propõem – tudo isto sob a aparência de uma operação de seleção que deixa do lado de fora da comunidade de leitores habilitados qualquer espírito resistente às teses apresentadas. O segundo propósito, que reforça o primeiro (aliás, o primeiro estaria longe de fazer sentido sem o segundo), é o de denunciar a falta de racionalidade que se manifesta em vários aspetos da vida portuguesa – política, social, moral, cultural, económica, etc. Esta é, de resto, a intenção primordial d’As Farpas: mostrar (revelar; por vezes demonstrar, ou pelo menos afetar fazê-lo, quando a via por que se opta procede de uma matriz lógica) o funcionamento caótico das instituições portuguesas172, sendo o bom senso o lugar a partir do qual se lança 170 É claro que o estado civil não poderia razoavelmente constituir critério de seleção – mas a sua presença ao pé dos outros elementos da série serve um propósito: o de sublinhar que a indiferença de que se trata é a mesma. 171 É muito frequente a palavra «leitor» surgir associada à expressão «bom senso», ou a «sensato», por exemplo: «Não é verdade, leitor de bom senso, que humoristicamente o deveríamos fazer?» (F: 17); «Deves querer que te falemos do teatro, leitor simpático, leitor de bom senso e de justiça» (F: 27); «Apelamos para ti, leitor de bom senso» (F: 43); «Tu, leitor de bom senso e de boa-fé, que não és deputado, que vais sentar-te na galeria, ou lês as sessões no jornal, responde tu, nosso amigo e nosso confidente!» (F: 48); «Queres ver, leitor de bom senso um modelo de discurso?» (F: 49); «Conheces já decerto, leitor sensato e honrado, o protesto dos conferentes, a adesão de outros cidadãos, a opinião da imprensa…» (F: 76), etc. 172 Eça referir-se-á expressamente a Portugal como um «país caótico» num dos últimos artigos do número de dezembro de 1871 – num passo em que a edição de Maria Filomena Mónica, que serve de base a este trabalho, 130 este processo crítico transversal sobre a sociedade portuguesa. Deste modo, o bom senso, à partida a mais comum das qualidades (aquela que é, segundo Descartes, «a cousa do mundo mais bem distribuída» – 2008: 27), ganha n’As Farpas progressivamente um carácter de excecionalidade, pelo que aquela proposição inicial segundo a qual a condição necessária para ler As Farpas é ser dotado do traço singular do bom senso vai pouco a pouco adquirindo uma renovada pertinência. O «leitor de bom senso» verá reforçada esta convicção ao longo da existência d’As Farpas, ainda que baste o primeiro número – bastará, aliás, a primeira farpa – para ficar com uma ideia muito clara da voracidade crítica de Eça e Ramalho. Assim, à medida que vão progressivamente diminuindo as invocações ao leitor de bom senso, vai aumentando o número de referências ao bom senso quer como atitude que se pretende mobilizar para abordar um problema que esteja a ser encarado de forma equívoca ou enviesada, quer como marca de escandalosa ausência nos desempenhos sociais de diversos agentes individuais e coletivos.173 Ora, se é em nome do bom senso que As Farpas falam, elas falam então, em princípio, em nome daquele corpo de valores, de crenças, de convicções sobre as quais se espera que repouse um consenso alargado. Ou seja, o objeto de denúncia e de argumentação d’As Farpas, sob este ponto de vista, parece ser aquilo sobre o qual não deveria ser necessário argumentar, porque se esperaria que fosse da ordem da evidência, impondo-se ao bom senso por com ele chocar. As Farpas propõem-se apontar as manifestações de desconcerto nacional, os múltiplos casos em que o país, as suas instituições, os agentes que nele têm voz, poder e responsabilidades transgridem os mandamentos do bom senso, e dirigem-se a contém um lapso de transcrição. A passagem onde aí se lê «quando se quer falar de um país católico e que pela sua decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa da Europa – citam-se, a par, a Grécia e Portugal» (F: 312) tem, na primeira edição, a lição «quando se quer falar de um país caótico […]» (Queirós & Ortigão, 1871, dez.: 74-5). Em Uma Campanha Alegre, é também «caótico» o termo que ocorre neste contexto (UCA: 235). 173 Alguns exemplos avulsos: «Vós [os dramaturgos] com a vossa severidade não tendes feito um único serviço ao bom senso, à justiça, à moral» (F: 29); «Tenhamos bom senso: escutemos a revolução, e reservemo-nos a liberdade de a esmagar – depois de a ouvir. / […] O simples bom senso indica que se deixe falar o proletário» (F: 42); «Homens que não têm família, nem trabalho, de propósito para mais livremente poderem manter a tranquilidade, que não têm outros deveres que não sejam esses – que são pagos para isso – deitam-se às 8 horas da noite, depois de terem passeado desde as 8 horas da manhã. Oh bom senso!» (F: 109); «Onde estão as nossas praças fortes? A nossa artilharia? Os nossos arsenais? […] – Nada temos, a não ser o bom senso fechado, a fronteira aberta e umas peças de artilharia a que deu fogo Camões – o que é poético – mas frágil!» (F: 110); «eles [os deputados] se votaram contra a reforma da Carta – é porque entendem que a Carta deve ser reformada! / Somente entendem mais que a reforma é inoportuna. Um homem é agarrado por dois ladrões, amarrado a uma árvore: de madrugada chegam a passar dois cavaleiros e veem ao longe vagamente na neblina o vulto: compreende-se que discutam no primeiro momento, se é ou não um homem que ali está em agonia: mas desde que verificaram que é um homem – o que se dirá do seu bom senso se eles começarem a discutir – a oportunidade de o salvar?» (F: 132). 131 leitores que, precisamente, são dotados de bom senso. Seria por isso quase desnecessária a argumentação: a simples enunciação de um facto, de um episódio, deveria bastar para que houvesse um reconhecimento das suas implicações174. Não é esta, porém, a atitude de Eça e Ramalho, para quem ter bom senso é condição necessária para ler As Farpas, mas não é manifestamente condição suficiente para ler o mundo. A forma como Eça e Ramalho se relacionam com o seu leitor de bom senso não se pauta pelo reconhecimento de uma equiparação de estatutos e de competências. As Farpas acreditam desempenhar uma missão de revelação e, em conformidade com ela, os seus autores assumem a vigência de uma hierarquia que os coloca num patamar de ascendência em relação àqueles que os leem175. Assim, aquilo que é proposto ao leitor desde o primeiro texto é que este esteja disponível para receber uma verdade, um esclarecimento sobre o mundo, que se apresentará, pela primeira vez, decifrado perante a sua compreensão, e já não na sua face aparente e enganadora: E a ideia de te dar assim todos os meses, enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres, mordentes, justas, nasceu no dia em que pudemos descobrir através da penumbra confusa dos factos, alguns contornos do perfil do nosso tempo. Aproxima-te um pouco de nós, e vê. (F: 16) Deste modo, embora todos os episódios de que As Farpas se vão nutrir configurem um desvio relativamente àquilo que seria uma ação humana sensata, a verdade é que existe neste passo inaugural o postulado de que essa avaliação não é imediata, ou automática, ou universal. Há, por isso, uma competência de leitura do mundo – uma competência hermenêutica – que é exclusiva dos autores d’As Farpas, capazes de perscrutar as sombras do mundo e de filtrar na sua matéria cinzenta e confusa aquilo que apresentam como «alguns contornos do perfil» do seu tempo, e que depois, na edição de 1890, irá adquirir o estatuto 174 Aristóteles, nos Tópicos, alerta precisamente para o facto de haver questões sobre as quais é ocioso argumentar: «Quem proponha a questão de saber, por exemplo, se é preciso ou não louvar os deuses e amar os pais, não pede mais que uma boa correção, e quem pergunta se a neve é branca ou não, só tem que abrir os olhos» (I, 11 – 105a). No Tratado de Argumentação, Perelman e Olbrechts-Tyteca observam igualmente que «[u]m facto estabelecido, uma verdade evidente, uma regra absoluta, trazem consigo a afirmação do seu carácter indiscutível, excluindo a possibilidade de defender os prós e os contras» (2006: 66). 175 Annabela Rita, no mesmo artigo, constata igualmente esta relação desigual: «O pacto de leitura é, assim, firmado entre o cronista e o seu leitor: o primeiro, reivindicando o estatuto de superioridade que lhe é conferido pelos seu saber (da realidade para além das aparências) e saber-fazer (decifrar), induz o outro a ler, convencendo-o de que ele não percebe de facto o que vê […]» (1988: 48). 132 reforçado de «algumas realidades» desse tempo (UCA: 9)176. O próprio apelo «aproxima-te um pouco de nós, e vê» é revelador desse movimento de espírito que é necessário fazer: mudar o ponto de vista sobre as questões, ganhar uma nova perspetiva sobre o país – aquela que se tem no lugar a partir do qual As Farpas o olham177. A necessidade deste despertar de uma nova compreensão das coisas justifica então o recurso a uma rede de procedimentos argumentativos que se colocam ao serviço de uma retórica da revelação. Por isso o bom senso não é o único valor d’As Farpas: «As Farpas […] [d]esejam […] ser a lógica e ser o bom senso». Aquilo que Eça assume como desígnio desta publicação é, portanto, a sua vinculação a um bom senso alicerçado na lógica, ou à lógica como instrumento do bom senso. 3.2. Retórica, argumentação, lógica Nos seus Principia Rhetorica, Michel Meyer alerta-nos para a importância de não incorrer numa confusão comum, a indistinção entre retórica e argumentação – salvaguardando Meyer que a distinção que se impõe fazer é entre a retórica enquanto processo e a argumentação, visto que a retórica enquanto disciplina engloba a argumentação. Na sua proposta de distinção, Michel Meyer retoma uma definição de retórica que antes avançara na mesma obra178, enquadrando-a de modo a abrir duas vias para a negociação das diferenças por parte das instâncias envolvidas: Quant à la rhétorique, elle est la négociation de la différence entre individus sur un sujet donnée. Il y a une question qui les oppose et des réponses qui les lient par ailleurs. Si ce lien l’emporte sur les autres considérations, on est dans la rhétorique stricto sensu, la rhétorique comme procédé. Si l’opposition, au contraire, est ce qui apparaît comme plus essentielle, alors la question qui divise est ce qui compte le plus, et on est dans l’argumentation […]. (Meyer, 2008: 51-2) Meyer sublinha, na sequência desta distinção, o carácter conflitual da argumentação, 176 Também o passo «Nós porém – que costumamos, sob a aparência exterior dos factos, procurar-lhes a psicologia secreta […]» (F: 106) é, em 1890, objeto de uma reescrita semelhante: «Nós, porém, que costumamos, sob a aparência exterior dos factos, procurar-lhes a realidade secreta […]» (UCA: 94). 177 Esta consciência da importância da perspetiva é manifesta, por exemplo, num passo como o seguinte, extraído do primeiro artigo do número de março de 1872: «Do ponto em que As Farpas se colocaram o lado que a sociedade lhes patenteia é quase sempre o lado que ri» (F: 399). 178 «La rhétorique est la négociation de la distance entre des individus à propos d’une question donnée» (Meyer, 2008: 21). 133 que se opõe à natureza tendencialmente consensual da retórica. O género epidíctico representaria, deste modo, o exemplo definitivo do domínio da retórica; nele o único problema que se coloca é precisamente evitar qualquer problema179: trata-se de agradar, nunca de problematizar, porque a problematização implica necessariamente um desconforto, mesmo que ele venha a ser superado. Do outro lado do espectro de possibilidades, o género judicial encarnaria o domínio por excelência da argumentação, sendo neste caso a questão sobre a qual se discute submetida à dialética do debate contraditório180. Assim, defende Meyer, a retórica seduzirá certamente, poderá mesmo persuadir, mas opera sempre através de uma ilusão criada, visto que a estratégia que lhe é inerente passa por contornar os aspetos espinhosos do seu objeto – e daqui adviria «l’image de la rhétorique comme art du faux- semblant, comme manipulation des esprits» (Meyer, 2008: 52). Privilegiando as respostas em relação às questões, a retórica empenha-se sobretudo em ocultar o problema, ou em apresentar o quadro em que ele se coloca como se a solução que o corrige fosse incontestável e a viabilidade da sua implementação fosse igualmente pacífica. Eça parece ter presente esta distinção teórica proposta por Michel Meyer: nos artigos que escreve para As Farpas, nunca rejeitará a importância da argumentação; rejeitará sistematicamente que nelas tenha lugar a retórica. Esta atitude entronca no espírito positivista do século: Eça mostra-se convicto de que os juízos que estabelece sobre a forma como o país se lhe apresenta se fundam na razão, até porque apenas procedimentos expositivos ou argumentativos fundados na razão seriam formas legítimas de os apresentar e defender. O modelo de argumentação virtuosa que aqui está em causa é informado pelo arquétipo da demonstração rigorosa, da certeza científica – tal depreende-se, por exemplo, dos termos através dos quais Eça se refere à forma como a Revolução é apresentada nas Conferências do Casino: «Ora as conferências pela sua natureza científica, experimental, – exigem justamente o contrário dos aparatos retóricos. São a demonstração, não são a apóstrofe; são a ciência, não são a eloquência» (F: 41). Quando, no número seguinte, reagindo precisamente ao encerramento das conferências, Eça exclama «Argumentemos!» (F: 80) na introdução de um argumento (quase lógico, na tipologia de Perelman) de inclusão, 179 Cf. «A própria conceção desse género oratório, que lembra mais, para falar como Tarde, uma procissão do que uma luta, fará com que seja preferentemente praticado por aqueles que, numa sociedade, defendem os valores tradicionais, os valores aceites, e não os valores revolucionários, os valores novos que suscitam polémicas e controvérsias» (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 60). 180 Nesta linha, defende Rui Alexandre Grácio (2010: 79) que só é legítimo falar de argumentação se os intervenientes no processo detiverem idêntico estatuto de argumentador, produzindo discurso e contradiscurso, mas não quando a relação que entre eles se estabelece é estaticamente a de emissor-recetor. 134 esta apóstrofe não é mais do que a variação daquela outra que usara alguns parágrafos antes para lançar um argumento (também quase lógico) fundado na regra da justiça: «Sejamos lógicos» (F: 79). Ou seja, precisamente a expressão que, no número anterior, fora invocada para vincular As Farpas a uma racionalidade fundada na lógica e no bom senso (cf. supra: 127). A argumentação, tal como Eça a concebe idealmente (e convém destacar o idealmente), é, portanto, produto de um raciocínio exato e rigoroso e não um exercício de manipulação emocional: retomando uma distinção clássica, dir-se-ia que as suas razões serão da ordem da convicção e não da ordem da persuasão181. Os fundamentos desta distinção entre convencer e persuadir remontam a Aristóteles e à sua doutrina que opõe a racionalidade argumentativa, centrada no logos, ao condicionamento afetivo do auditório, que opera através do pathos. Perelman e Olbrechts-Tyteca retomam-na nos seguintes termos: «Propomo-nos chamar persuasiva uma argumentação que só pretende ser válida para um auditório particular e chamar convincente aquela de que se espera que obtenha a adesão de todo o ser dotado de razão» (2006: 36). Ser convencido traduz-se, então, na submissão da inteligência à força racional de uma argumentação, independentemente de qualquer enquadramento ideológico ou afetivo específico. A superioridade que Eça atribui a esta modalidade da argumentação tem de ser perspetivada no contexto da missão de esclarecimento que As Farpas reclamam para si: se o seu objetivo é reconduzir os seus leitores no caminho da verdade, subtraindo-os ao domínio das aparências confusas, do erro, e levando-os a «ver verdadeiro» (CP: 109), a via para atingir esse objetivo não poderia ser, no seu entender, a mesma retórica desqualificada que, interpretada pelos diversos agentes da vida nacional detentores de uma voz pública, vinha induzindo em erro os cidadãos. Ainda que a persuasão seja comummente vista como mais facilmente capaz de despertar um ímpeto orientado para a ação182, um princípio inspirado numa espécie de 181 «Exprimem estas duas palavras [‘convicção’ e ‘persuasão’] o ato pelo qual a nossa alma aquiesce àquilo que se lhe propõe como verdade, com a ideia acessória de uma coisa que a determinou a este ato. A convicção é uma aquiescência fundada em provas de uma evidência irresistível e vitoriosa. A persuasão é uma aquiescência fundada em provas menos evidentes, posto que verosímeis; porém mais próprias a interessar o coração que a ilustrar o espírito. Aquela é filha da razão, e do domínio da inteligência; esta obra mais sobre o coração, e depende da sensibilidade. A convicção, sendo o efeito da evidência, não pode enganar; assim que, não pode ser falso aquilo de que estamos legitimamente convencidos. A persuasão é o efeito de provas morais, que podem enganar; e assim podemos estar muitas vezes persuadidos dum erro mui real, que tenhamos por verdade mui segura./ «Um raciocínio exato e rigoroso produz a convicção nos ânimos retos; a eloquência e a arte oratória podem produzir a persuasão nas almas sensíveis. "As almas sensíveis, diz Duclos, têm uma grande vantagem para a sociedade, a de estarem persuadidas de verdades de que não está convencido o ânimo: a convicção é muitas vezes somente passiva; a persuasão é ativa, dá impulso e faz obrar» (Roquete & Fonseca, 1854: 191). 182 Cf. nota anterior. 135 otimismo iluminista sustentará a ideia de que a razão esclarecida sabe tirar as lições práticas da aquisição do conhecimento: «Acredita-se que um indivíduo devidamente convencido há de se comportar conforme a adoção das razões, porque é inconcebível conhecer a realidade e permitir ser conduzido pelas artimanhas dos jogos persuasivos» (Oliveira, 2007: 141)183. Assim, a crença numa racionalidade argumentativa de matriz lógica sobrepõe-se em Eça, como princípio (que a prática discursiva não raramente transgredirá, porém), às armadilhas retóricas montadas com o propósito de que nelas fique presa a sensibilidade do leitor. A única força coerciva legítima é, por conseguinte, a que é ditada pelas regras da própria razão. Perelman e Olbrechts-Tyteca observam que «[o] uso da argumentação implica que se renunciou a recorrer unicamente à força, que se dá valor à adesão do interlocutor, obtida com a ajuda de uma persuasão ponderada, que não se trata o outro como um objeto mas se apela à sua liberdade de julgar», e que, por isso mesmo, «[o] recurso à argumentação […] exclui o uso da violência» (2006: 64-5). No mesmo artigo em que apresenta as Conferências como modelo de comunicação da Revolução, Eça sublinha a importância de salvaguardar a liberdade de expressão num contexto crítico como é aquele em que elas surgem, contrariando o ímpeto de as silenciar («Tenhamos bom senso: escutemos a revolução, e reservemo-nos a liberdade de a esmagar – depois de a ouvir» – F: 42), e mostra sobretudo compreender o lugar da argumentação num espaço social tenso, onde a alternativa à discussão racional é, precisamente, a instauração de um regime pautado pela violência: Deixemos falar o proletário. […] Desdigamo-lo depois quando ele mentir, refutemo- lo quando errar. É muito mais cómodo encontrarmo-nos com quem represente o proletário, sossegadamente, na sala do Casino, do que encontrarmos o próprio proletário mudo, taciturno, pálido de ambição ou de fome, armado de um chuço à embocadura de uma rua. Fazer conferências – se bem atentamos neste ato – reconhece-se que é uma coisa diferente de fazer barricadas. É por lhe não permitirem fazer conferências que o proletário parisiense faz fogo. O proletário inglês não espingardeia os seus governos, pela razão de que fala nos meetings. (F: 42) A proposta de que se esmague a Revolução depois de a ouvir é prontamente reformulada para termos que repõem a questão no plano da argumentação racional: desdizer um interlocutor quando este mente e refutá-lo quando erra é um procedimento que enquadra o cenário descrito no âmbito dos processos dialéticos de exame crítico dos argumentos em 183 Cf. «A criação, por meios intelectuais, de uma convicção também intelectual de que é justa a opinião partidária defendida, junto do árbitro da situação, pelo orador, parte do princípio de que a convicção intelectual é um impulso (que leva à ação) importante e talvez já suficiente para que se dê a alteração da situação […]» (Lausberg, 1982: 104). 136 disputa, com vista à verdade e não à derrota do adversário. As Farpas propõem-se, portanto, argumentar logicamente, aduzir «provas duma evidência irresistível e vitoriosa»; o seu objetivo consiste em intervir pela via da razão e da inteligência. A alegada rejeição dos «aparatos retóricos» significa fundamentalmente que Eça desvincula a sua argumentação dos recursos característicos do pathos – a mobilização dos afetos, a comoção, a estimulação do juízo visceral. O seu leitor deverá ter bom senso mas, em contrapartida, poderá aparentemente prescindir da sensibilidade; o bom senso é, afinal, a razão – é o logos. Como observam Philippe Breton e Gilles Gauthier, «uma característica fundamental do argumento – que, a propósito, o distingue radicalmente do raciocínio lógico – é o facto de se desenvolver numa situação de inter-relação» (2001: 12). A validade de um raciocínio lógico é uma propriedade formal; ela não depende de uma interpretação que a confirme184. A eficácia de um argumento, por seu lado, depende do efeito que ele produzir no destinatário – o que pressupõe, antes de mais, um determinado destinatário, com determinadas características, em função das quais se define uma determinada estratégia argumentativa. Ora, se é verdade que Eça dirige frequentes apóstrofes aos leitores d’As Farpas, estas constituem sobretudo manifestações de uma estratégia de cumplicidade, sem que a tal corresponda uma efetiva configuração de um destinatário particular. Na verdade, como vimos, Eça recusa expressamente qualquer demarcação do seu auditório, negando que o pudesse caracterizar alguma eventual identidade de interesses, de convicções político-ideológicas – isto é, qualquer feição particularizante suscetível de servir de base para a definição de uma abordagem argumentativa convenientemente adaptada às características de um auditório específico. Ao eleger o bom senso como a única característica que unifica a comunidade de leitores a quem se dirige, Eça assume um propósito ambicioso: que o limite do acordo que procura obter não conheça as restrições decorrentes da vinculação do auditório a valores e a convicções particulares. Pretendendo ser a expressão do bom senso, As Farpas reivindicam afinal o estatuto de voz emergente da própria razão – atitude que mereceu, de resto, uma censura expressa por parte de uma das várias personalidades que saíram ao caminho de Eça e Ramalho a pedir-lhes contas, pouco convencidas de que fosse de facto uma questão de bom 184 «Numa demonstração matemática, os axiomas não estão em discissão; sejam eles considerados como evidentes, como verdadeiros ou como simples hipóteses, não há qualquer preocupação em saber se eles são, ou não, aceites pelo auditório» (Perelman, 1993: 29). 137 senso concordar com eles. Samuel, presumível pseudónimo de Vieira de Castro (Medina, 2000: 23-26; Matos, 2009: 183), aponta à nova publicação, entre muitas outras coisas (contradições na argumentação, cumplicidades insuspeitas, injúrias e blasfémias185), sobretudo o pecado de se arrogar encarnar «o Bom Senso, soma de Verdade e de Justiça» (apud Medina, 2000: 26)186. Eça protesta que não – e tenta matizar o autoconceito que As Farpas projetavam, regressando de certa forma ao território da captatio benevolentiae, desta vez explorando o consagrado tópico da modéstia187. Mas a verdade é que, em janeiro de 1872, Eça não hesitará em promover de novo a indistinção entre Farpas e bom senso: «Que ele, o Ano Novo, […] faça penetrar em ti como um calor purificador e com um aroma afável – a estima das Farpas – ou pelo seu nome genérico – a estima do Bom senso…» (F: 322). Este reiterado ofício ao altar do bom senso188 traduz-se, então, em dois atos nos quais se investe o essencial do programa argumentativo d’As Farpas: a recusa da seleção de um auditório particular e a reivindicação dessa faculdade, o bom senso, como princípio tutelar dos artigos publicados. O cenário que assim se concebe é o mais ambicioso de todos – é a razão dirigindo-se à razão; uma conceção ideal de auditório que se combina com uma conceção ideal de argumentário. No que diz respeito a essa comunidade de leitores – que podem ser conservadores ou revolucionários, proprietários ou produtores, contanto que tenham bom senso –, ela encarna de forma muito aproximada o conceito de auditório universal de Chaïm Perelman: depurados das marcas particulares que lhe conferem um dado perfil, os leitores são encarados essencialmente, como já referi, enquanto entidades dotadas de razão. Concebendo um auditório isento de impurezas mundanas, As Farpas pretendem furtar-se à «fraqueza relativa dos argumentos que apenas são aceites por auditórios particulares» e, pelo contrário, 185 Cf. «Ao demónio destas bandarilhas», artigo publicado n’O Primeiro de Janeiro a 9 de julho (apud Reis, 1986: 216-224). 186 Também António Enes se referiria em tom crítico ao facto de Eça e Ramalho reclamarem ser «os dois sapadores únicos do senso comum» (apud Reis, 1987, II: 24). 187 «Mas, injusto Samuel, atende – as Farpas não disseram que eram o bom senso absoluto, com a plenitude da razão, a impecabilidade da consciência, a posse perene da verdade, nenhum temperamento e muita roupa branca! […] [As Farpas] são sobretudo e antes de tudo 96 páginas impressas na tipografia Universal, sem grandes erros de gramática e sem grandes verdades de filosofia, estalando de riso por todas as entrelinhas, mesmo quando franzem a testa – e contentando-se com serem alegremente recebidas, pel[a] manhã, à hora do correio e do almoço, por alguns espíritos simpáticos e por algumas brancas mãos. Diógenes decerto não apagaria a sua lanterna!» (F: 122-23). 188 Que é até anterior ao lançamento do primeiro número. Tendo As Farpas sido instantaneamente associadas ao movimento republicano, Eça e Ramalho publicaram a 5 de maio uma carta no Diário Popular na qual asseguravam que a futura publicação teria «por único partido político o bom senso» (apud Medina, 2000: 45). 138 beneficiar do «valor concedido às opiniões que gozam de uma aprovação unânime, em especial da parte de pessoas ou grupos que estão de acordo sobre muito poucas coisas» (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 39). Ora, como explicam Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, «[u]ma argumentação que se dirige a um auditório universal deve convencer o leitor do carácter compulsivo das razões fornecidas, da evidência delas, da sua validade intemporal e absoluta», uma vez que o acordo que se espera obter, mediado que é pela razão, só chegará a verificar-se se o auditório reconhecer na argumentação os factos e as verdades que o sustentem: «É porque se afirma algo que está conforme com um facto objetivo, coisa que constitui uma asserção verdadeira e até necessária, que se conta com a adesão dos que se submetem aos dados da experiência ou às luzes da razão» (2006: 40). Na «Advertência» à primeira edição de Uma Campanha Alegre, Eça recordaria o otimismo que o inspirara, vinte anos antes, à data do início da publicação d’As Farpas: Quem era eu, que força ou razão superior recebera dos deuses, para assim me estabelecer na minha terra em justiceiro destruidor de monstros?… A mocidade tem destas esplêndidas confianças; só por amar a Verdade imagina que a possui; e, magnificamente certa da sua infalibilidade, anseia por investir contra tudo o que diverge do seu ideal, e que ela portanto considera Erro, irremissível Erro, fadado à exterminação. (UCA: 5) Esta convicção de que as matérias sobre as quais se escreve são enquadráveis nas categorias da Verdade e do Erro é fundamental para informar a decisão de que a forma mais indicada de agir sobre um auditório consiste em operar, através de uma argumentação racional, sobre um leitor racional (ou sobre as instâncias racionais desse leitor). Assim, qualquer resistência da parte deste à argumentação terá como consequência, como referi no início deste capítulo, a sua destituição do estatuto de leitor de bom senso, isto é, do estatuto de leitor racional: como referem Perelman e Olbrechts-Tyteca, «[s]e a argumentação dirigida ao auditório universal e que deveria convencer não convence toda a gente, há sempre o recurso de desqualificar o recalcitrante considerando-o como estúpido ou anormal» (2006: 42). É sob esta perspetiva que podemos reler a afirmação essencial do primeiro parágrafo do prólogo d’As Farpas («Leitor de bom senso […], sabe […] que foi para ti que [este livrinho] foi escrito – se tens bom senso!»), não, afinal, como uma redundância, mas como a aposição de um traço de vulnerabilidade ao estatuto que primeiro é atribuído ao destinatário destas palavras. A segunda ocorrência da expressão ‘bom senso’ questiona subjacentemente a validade da sua inscrição inicial no perfil do leitor, constituindo-se o bom senso, afinal, não como um atributo presumido, mas como uma condição que o leitor terá de, a cada nova 139 leitura, dar provas de preencher – sob pena de ser destituído da qualidade de leitor competente. Dado que se dirige a um leitor de bom senso na medida em que este é dotado de bom senso – isto é, dado que se dirige a uma razão –, Eça tenderá a revestir os seus textos de um certo aparato lógico. «No limite, a retórica eficaz para um auditório universal seria a que apenas maneja a prova lógica», escrevem Perelman e Olbrechts-Tyteca (2006: 41). Ora Eça procurará fazer passar a ideia de que a sua abordagem argumentativa se enquadra neste princípio. Não porque de facto abdique de outras vias argumentativas que não a lógica, mas porque se empenhará frequentemente em destacar a matriz lógica da sua argumentação, esforçando-se, artigo após artigo, por projetar a ideia de que se serve de processos demonstrativos isentos de retórica – ou, pelo menos, de um certo modelo de retórica. Se as referências ao bom senso nas farpas queirosianas ultrapassam as duas dezenas, a ocorrência do termo ‘lógica’ e respetivos cognatos assinala-se em cerca de meia centena de passos. Eça pretende expressamente superar uma abordagem argumentativa informada por um perspetivismo de qualquer âmbito, que lhe restringiria o alcance. Pelo contrário, interessa-lhe projetar uma imagem de competência na construção e na exposição dos seus argumentos que os associe a uma ideia de rigor lógico, visto que não é concebível rejeitar um argumento lógico bem construído. Há, naturalmente, um movimento retórico a sustentar esta estratégia: ao aproximar o perfil mais saliente da sua argumentação do modelo da demonstração lógica, Eça transfere aquilo que devia ser do domínio da adesão para o domínio do constrangimento. Adere-se a um argumento mas não se adere a um raciocínio lógico: a lógica retira ao espírito a liberdade de julgamento. Num passo do Tratado de Argumentação anteriormente citado, Perelman e Olbrechts-Tyteca observam que a argumentação consiste numa superação da violência, e que essa superação devolve ao indivíduo a posse da liberdade para exercer juízos sobre a razoabilidade das opiniões que são submetidas à sua consideração189. Não é assim que procede a lógica, cujas inferências não são suscetíveis de objeção fora do âmbito das suas próprias regras de validação. A argumentação situa-se, portanto, entre a coercividade da violência e a coercividade da lógica, definindo-se como espaço de afirmação do exercício crítico. O que Eça pretende é, em grande medida, condicionar a disposição do leitor para receber criticamente os seus argumentos, insistindo 189 «O uso da argumentação implica que se renunciou a recorrer unicamente à força, que se dá valor à adesão do interlocutor, […] que não se trata o outro como um objeto mas se apela à sua liberdade de julgar» (2006: 64-5). 140 na ideia de que se trata de um corpo de razões forjado na oficina da lógica e que, portanto, resistir à sua força não é muito diferente de resistir à razão ela própria. Nas próximas secções deste capítulo, proponho-me abordar a forma como se manifesta nos textos queirosianos a projeção desta competência argumentativa que se reclama subsidiária de uma matriz lógica. Um dos mais recorrentes alvos da crítica produzida pel’As Farpas (como também depois da subsequente ficção de Eça) é, sem dúvida, a densa rede de focos de contradição que se instalou na vida nacional; a denúncia e a desmontagem desses nódulos sintomáticos de um princípio de incoerência assenta frequentemente na mobilização de recursos suscetíveis de ser enquadrados na categoria perelmaniana dos argumentos quase lógicos. Veremos, no entanto, não só que esta matriz argumentativa não exclui o investimento em vias de persuasão marcadas por um cunho afetivo, como também que, em certos casos, estas duas modalidades chegam mesmo a partilhar expedientes, funcionando a primeira como indutora da segunda. 3.3. Sob o signo da contradição Há muito que a generalidade da crítica aponta a denúncia das contradições da sociedade do seu tempo como um dos traços temáticos e ideológicos mais relevantes da obra de Eça de Queirós. Ao revelar as incoerências em que incorrem os agentes e as instituições nas quais se alicerça a ordem social existente, Eça procura atentar contra a sua credibilidade, expô-los ao ridículo e, fomentando deste modo o desrespeito por eles, preparar, como escreveria numa carta a Rodrigues de Freitas datada de 1878, a sua ruína (Cor, I: 188). Em 1945, Mário Sacramento, no ensaio Eça de Queirós – Uma Estética da Ironia, refere- se já ao modo como Eça desenvolve na sua ficção um programa que consiste em […] fazer incidir a contradição sobre o social, mostrando a disjunção existente entre o que há de mesquinho no indivíduo e a gravidade das funções sociais que exerce, entre o prestígio que o aureola e a interior vacuidade, entre a gravidade e a banalidade do que diz, entre a austeridade do porte social e o desregramento da vida íntima. (2002: 111) 141 Os lugares específicos em que se observam na obra de Eça de Queirós as disjunções apontadas por Mário Sacramento são numerosos e o arco da sua abrangência tem amplitudes diversas, com um enfoque especial nas instituições de referência, desde logo a Igreja ou o próprio Estado. A contradição em que incorre cada uma das personagens portadoras deste sintoma é em regra índice de algo que transcende a sua individualidade: um modelo de educação, uma sensibilidade moldada pela exposição à música, ao teatro ou à literatura, um corpo de valores cunhado por diversas dinâmicas sociais, etc. Não é frequente uma personagem revelar consciência dos planos em que os seus atos, as suas palavras, as suas aspirações ou os seus valores entram em conflito. Um caso singular ocorre em O Crime do Padre Amaro, num serão em que Amaro, incomodado com a presença de João Eduardo, noivo de Amélia, e convencido de que esta nunca abdicará do legítimo estatuto social que só o casamento lhe poderá dar, decide recolher mais cedo ao seu quarto. A pacatez do quadro doméstico de que se retirara agastara-o. Amaro dá por si, primeiro, a lamentar a conduta honesta da rapariga e a desenhar uma outra Amélia, liberta de pudores e convenções; depois toma consciência de que essa Amélia libertina não era, de facto, projeção de um desejo seu, antes emergindo como consequência perversa das imposições da sua religião: – Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada! – pensou, recaindo em si um pouco envergonhado. Está claro: não podemos pensar em mulheres decentes, temos que reclamar prostitutas! Bonito dogma! (CPA: 297) Amaro dá-se assim conta de que o conflito entre as pulsões da natureza humana e as imposições do celibato sacerdotal não se pode resolver dentro da esfera do aceitável por nenhuma das ordens em causa, a social e a religiosa – e, se a ordem social tem no casamento a solução para enquadrar as pulsões da natureza, o catolicismo condena os seus ministros à inevitável transgressão das suas obrigações religiosas e sociais. Esta consciência crítica de que no sistema que se representa se inscrevem contradições graves não é, como referi, muito comum nas personagens queirosianas – pelo menos, isso não é vulgar naquelas personagens que encarnam, precisamente, os vícios desse sistema. Na mesma obra, o cónego Dias não só é tranquilamente amante da S. Joaneira, sem que isso pareça perturbar a sua paz interior, como é capaz de outras conciliações improváveis – por exemplo, de conciliar o preceito cristão de oferecer a outra face com o impulso pouco 142 contemplativo de desancar o agressor190. Quando a contradição é demasiado gritante para ser ignorada, a tendência, numa personagem típica, será para tentar a sua neutralização pela via de um distinguo, mesmo que inábil e forçado, como faz Alípio Abranhos: defensor dos valores familiares e hostil aos «assaltos à honra conjugal» (CA: 76), mas mantendo uma relação extraconjugal, Alípio alega que o seu caso particular, na verdade, não se enquadra no conjunto de manifestações condenáveis do adultério191. Frequentemente, são as personagens mais esclarecidas aquelas que revelam as contradições em vigor na sociedade, dado serem elas, muitas vezes, as vozes através das quais se enunciam as teses do romance. Assim, em O Crime do Padre Amaro, é o doutor Gouveia que expõe o desacordo entre a moral ética e a moral religiosa, entre as práticas de conduta social do indivíduo e o juízo de matriz religiosa que a sociedade faz desse indivíduo192. João da Ega, em Os Maias, é uma voz que parece emanar diretamente do espírito d’As Farpas, e por isso o diagnóstico das contradições da vida política, social, cultural, religiosa do país é muitas vezes feito a partir das suas intervenções193. Mas o que me interessa sobretudo salientar é a frequência com que as personagens queirosianas são, de um modo geral, surpreendidas em situações que conflituam com princípios que deveriam observar, seja porque a eles estejam formalmente sujeitos, seja 190 «– Eu lhe digo. Eu, se me atirarem um bofetão à face direita… Enfim, são ordens de Nosso Senhor Jesus Cristo, ofereço a face esquerda. São ordens de cima!… Mas depois de ter cumprido esse dever de sacerdotes, oh, senhoras, desanco o patife!» (CPA: 643). 191 «Para ele nada existia mais sagrado que a Família, e esses assaltos à honra conjugal, que a sociedade, culpadamente, complacentemente admite e até idealiza, considerava-os, como muitas vezes mo afirmou, o cúmulo da torpeza […]. / Foi sempre fiel a este severo princípio. É certo que o acusaram de ter relações culpadas com a mulher de um tal Bento, correeiro nas Portas de Santo Antão, mas este caso é inteiramente diferente. O correeiro era tão insensível à honra do seu lar, que consentia que sua mulher fosse visitar diariamente uma tia – que ele sabia ter falecido havia meses. Além disso, pela sua posição modesta, esta ligação nunca poderia ser posta em evidência nem andar nas conversas da cidade, não correndo assim o risco de ser uma lição perniciosa para a mocidade. / Por estas considerações – que ele pesou conscienciosamente antes de se entregar a actos libidinosos com a mulher do correeiro – Alípio julgou poder, sem risco para a ordem social e sem prejuízo para a sua carreira, permitir-se este gozo oculto» (CA: 76-7). 192 «Queres tu um exemplo? Eu sou, segundo a doutrina católica, um dos grandes desavergonhados que passeiam as ruas da cidade; e o meu vizinho Peixoto, que matou a mulher com pancadas e que vai dando cabo pelo mesmo processo de uma filhita de dez anos, é entre o clero um homem excelente porque cumpre os seus deveres de devoto e toca figle nas missas cantadas» (CPA: 585). 193 Dos vários exemplos com que seria possível ilustrar a sintonia entre As Farpas e Ega, transcrevo este, que me parece elucidativo: «Essa é outra! gritou Ega atirando os braços ao ar. É extraordinário! Neste abençoado país todos os políticos têm imenso talento. A oposição confessa sempre que os ministros, que ela cobre de injúrias, têm, à parte os disparates que fazem, um talento de primeira ordem! Por outro lado a maioria admite que a oposição, a quem ela constantemente recrimina pelos disparates que fez, está cheia de robustíssimos talentos! De resto todo o mundo concorda que o país é uma choldra. E resulta portanto este facto supra- cómico: um país governado com imenso talento, que é de todos na Europa, segundo o consenso unânime, o mais estupidamente governado!» (M: 548). 143 porque os defendam perante a sociedade, ou ainda porque perante esta se apresentem como seguidores desses princípios. A galeria é extensa e seria despropositado enumerá-la exaustivamente: recordo apenas, para além dos casos já expostos, que dela fazem parte não apenas figuras centrais dos romances, mas boa parte dos caracteres secundários, como Miss Sarah, de Os Maias, com a sua vida dupla194; o tipógrafo Gustavo, de O Crime do Padre Amaro, que ora ataca, ora enaltece as instituições sociais195; Julião, de O Primo Basílio, cuja condição social precária é para ele um troféu cheio de ambiguidades196; o Videirinha, de A Capital!, que leva uma vida dissoluta, abandona mulher e filhos, mas desfila austeramente na Procissão de Cinzas197; ou, por exemplo, todas as personagens que, ao arrepio do vínculo moral com que se posicionam na sociedade, comungam de um surpreendente fascínio pela poesia erótica ou obscena: o padre Augusto, de O Conde de Abranhos198; o conselheiro Acácio, de O Primo Basílio199; ou até mesmo um remoto e obscuro mestre de cantochão do seminário evocado em O Crime do Padre Amaro200. Ora este diagnóstico de um princípio de incoerência que atravessa a sociedade portuguesa do seu tempo começa a ser feito nas páginas d’As Farpas. É nesta publicação que 194 «A boa miss Sarah não escolhera! Bem lavada, toda correta, com os seus bandós puritanos, aceitava um qualquer, rude e sujo, desde que era um macho! E assim os embaíra, meses, com aquelas suas duas existências, tão separadas, tão completas! De dia virginal, severa, corando sempre, com a Bíblia no cesto da costura: à noite a pequena adormecia, todos os seus deveres sérios acabavam, a santa transformava-se em cabra, chale aos ombros, e lá ia para a relva, com qualquer!…» (M: 462). 195 «E esquecendo os seus sarcasmos ao Casamento e à Família, trovejou de alto contra o clero, que é quem sempre destrói essa instituição social, perfeita, de origem divina!» (CPA: 607). 196 «– Eu mostrei-lhe francamente as minhas botas. Estas – disse, apontando para os botins mal engraxados – tenho muita honra nelas, são de quem trabalha…/ Porque publicamente costumava gloriar-se de uma pobreza que intimamente não cessava de o humilhar» (PB: 135). 197 «– Se V. S.ª conhece, podia-lhe ir dizer… Há três dias que não aparece em casa. Vive aqui com uma mulher… Eu não tenho um bocado de pão, nada que empenhar! Mato-me a trabalhar… Soluços sufocaram- na um momento… E vendo Artur olhar a outra, mais nova, com uma face doce e triste: – É a minha filha… Tenho mais dois pequenos, e uma menina de três anos, que está doente… Nem para um caldo tenho… Não me dá um real do que ganha no emprego! Eu não quero importunar… Queria só que ele me desse alguma coisa, pouco que fosse, eu poupava-o… Só para ter um bocado de pão, em casa…» (Cap: 378-79); «E então, a figura dum irmão, que marchava, dum modo austero e solene, ao pé do pálio, com a sua tocha erguida, atraiu- o instintivamente: e como o irmão voltou a face para a gente ajoelhada, Artur, boquiaberto, reconheceu o Videirinha!» (Cap: 381). 198 «E, complacente, o nosso Alípio recitou ao ouvido do padre Augusto estas estrofes de um ardente erotismo lírico» (CA: 89). 199 «Acácio levou-o logo ao seu quarto, e retirou-se discretamente. […] O quarto era esteirado, o leito baixo e largo. [Julião] Abriu então a gavetinha da mesa-de-cabeceira e viu, espantado, uma touca e o volume brochado das poesias obscenas de Bocage!» (PB: 329). 200 «[…] na alegria das reminiscências, recordavam as histórias de então, o catarro do reitor, e o mestre de cantochão que deixara um dia cair do bolso as poesias obscenas de Bocage» (127). Parece haver neste romance um especial fascínio dos mestres de cantochão pela obra de Bocage, visto que também a professora das primeiras letras de Amélia, que fora cozinheira das freiras de Santa Joana de Aveiro, recordando episódios passados no convento se refere a uma «mestra de cantochão, admiradora de Bocage» (CPA: 225). 144 Eça, juntamente com Ramalho, lança as bases de um inquérito panorâmico, paciente e detalhado a um país que, mantendo embora exteriormente a aparência de organismo estável, padece daquilo a que se poderia chamar uma «espinha dorsal caológica»201, cujos efeitos se ramificam até aos corpos celulares mais periféricos. A fundamentação de tal diagnóstico assenta, em grande medida, na análise de uma multiplicidade de casos particulares aos quais As Farpas apontam as inconsistências, as contradições, as falhas de lógica. Todo o processo de desmontagem destes casos faz apelo precisamente a raciocínios lógicos, alguns mais embrionários, outros mais desenvolvidos, e por isso este é um campo especialmente propício ao rastreamento de abordagens argumentativas devedoras de uma matriz lógica. Nos próximos pontos, a minha atenção incidirá sobre alguns movimentos argumentativos enquadráveis na categoria perelmaniana dos dispositivos quase lógicos, através dos quais é possível entrever o modo como a invocação da lógica e do bom senso nos textos queirosianos se projeta no tecido argumentativo d’As Farpas. 3.3.1. Contradição e incompatibilidade No número de dezembro de 1871, As Farpas publicam um extenso artigo no qual são abordadas as causas da crise do teatro em Portugal. A certo ponto, Eça assinala a inconsistência dos critérios de atribuição de subsídios às companhias teatrais por parte do Estado: Ora pergunta-se: qual é a situação do governo respetivamente aos teatros? Esta: O governo não dá nada aos teatros nacionais! E dá 25 contos a S. Carlos! Portanto que o governo responda: É o governo obrigado a auxiliar, a subsidiar a arte teatral? – Não! – Então para que dá subsídio a S. Carlos? – É? – Então para que deixa sem subsídio o teatro nacional? É lógico. (F: 306) 201 Tomo a expressão emprestada a Alexandre Pinheiro Torres, que a usa em O Meu Anjo Catarina para descrever o estado de Gandache – de resto também uma plausível projeção de Portugal (1998: 53). 145 Poucas linhas depois, a matriz lógica do raciocínio queirosiano, sinalizada no último parágrafo acima transcrito, é reforçada por uma reformulação deste argumento, que quase se reduz ao enunciado de proposições contraditórias: Nós não temos opinião: Compreendemos igualmente o governo protegendo o teatro com subsídios, ou o governo deixando o teatro à espontaneidade industrial e literária. O que pensamos e toda a pessoa sensata o pensaria é que é uma coisa torpemente offenbáquica que o governo diga: – Eu nada tenho com a arte teatral – e por consequência dou 25 contos ao teatro lírico. Ou diga: – Eu sou o protetor da arte teatral – e por consequência vou fazer que os teatros de Lisboa se fechem de penúria. (F: 307) Eça adota aqui, no final deste passo, uma formulação entimemática para dois silogismos nos quais a conclusão contraria a premissa expressa. No entanto, o efeito que subjaz a este emparelhamento não é apenas aquele que, numa leitura sintagmática, resulta da inconsequência das conclusões; ele é também gerado pela sugestão que o texto promove de que se faça uma leitura paradigmática – isto é, vertical – do enunciado. Desta leitura resulta claro que a política de subsídios do Estado assenta na atualização simultânea das proposições contraditórias que dão início a cada um dos entimemas: «Eu sou o protetor da arte teatral» e «Eu nada tenho com a arte teatral», ou seja, A ∧ ¬A. À semelhança deste caso, As Farpas procurarão demonstrar que existe um princípio de contradição alojado nas mais variadas instâncias da vida nacional. Eça demonstra um sentido especialmente apurado para a sinalização daquilo que é inconciliável e que, ainda assim, coexiste instalado no sistema social, sendo por isso um indício da sua instabilidade. Este tipo de intervenção argumentativa fixa-se na contradição enquanto sintoma crítico de uma sociedade que está em diagnóstico, e pretende ser uma decorrência natural do programa queirosiano de vinculação dos seus artigos à lógica e ao bom senso – assumindo-se como postulado de partida que o bom senso, por definição, prefere a coerência à incoerência, quer no indivíduo, onde ela é marca de um carácter confiável, quer nas formas de organização coletiva, já que a previsibilidade dos sistemas é uma condição da sua estabilidade e aquilo que permite o seu funcionamento são. Artigo após artigo, As Farpas irão desenhando o cenário de um país em que se sucedem as representações sistemáticas, transversais, dos mais variados conflitos, conflitos esses que inexplicavelmente se neutralizaram: cabem aqui os poetas que se fazem passar por 146 idealistas mas cujo comportamento é sobretudo pragmático202; os jornais que alteram o juízo sobre as mesmas políticas consoante estas são definidas por este ou por aquele ministro (F: 23-4); os que desprezam a religião mas lhe preservam a vertente formal203; os que lhe estão vinculados mas que não a defendem204; os partidos que combatem na oposição as medidas que depois aprovam quando se instalam no poder e vice-versa (F: 36-7); as inconsistências doutrinárias de republicanos e monárquicos205; os deputados que reconhecem a necessidade de reformas no Estado e que rejeitam essas mesmas reformas (F: 131-32); o próprio parlamento, globalmente considerado, que delibera ao arrepio dos princípios constitucionais a que está adstrito206, etc. Como se vê, preenchem este elenco acima de tudo os conflitos que se manifestam entre o que uma determinada entidade diz e o que ela faz, entre um discurso – um discurso, de resto, quase sempre instalado no espaço público – e uma prática. O ataque lançado sobre poetas, jornais, políticos e partidos, ao expor as respetivas contradições, visa por isso também, senão sobretudo, desmontar e desacreditar a sua retórica, mostrando que ela promove princípios incompatíveis com aqueles que orientam as práticas dessas mesmas entidades. O ataque sistemático d’As Farpas a este regime de contradições instaladas permite que se pondere a aproximação deste procedimento argumentativo à classe dos argumentos de incompatibilidade, proposta por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca no seu Tratado de Argumentação. A incompatibilidade é, no campo da argumentação, o correspondente daquilo que num sistema formal consubstancia uma contradição, e, na tipologia perelmaniana, integra a categoria dos argumentos quase lógicos, cuja força advém precisamente do paralelo que estabelecem com os raciocínios formais (Perelman, 1993: 73; Perelman & Olbrechts- Tyteca, 2006: 213). Como os procedimentos da argumentação não estão sujeitos aos mesmos 202 «E [a literatura] diz-se pura, ideal, etérea. Mas é questão de retórica: porque os poetas líricos e os cismadores idealistas tratam de se empregar nas secretarias, cultivam o bife da Áurea, são dum centro político, e usam flanela» (F: 25). 203 «A burguesia […] [t]em ainda um resto de respeito maquinal pelo Todo-Poderoso, mas criva de epigramas as pretensões divinas de Jesus, e diz coisas desagradáveis ao Papa. […] Desprezam-se os padres e despreza-se o culto, o que não impede que a propósito de qualquer coisa se exija o juramento!» (F: 19). 204 «E aqui temos, num país católico, os ilustres srs. deputados, em pleno parlamento, fazendo profissão de ateísmo!» (F: 46). 205 «De modo que todos estes monárquicos, bem no íntimo, votariam por uma república. Todos estes republicanos terminam por concordar que é indispensável a monarquia!» (F: 20). 206 «A Câmara não tem princípios. É monárquica, e corta a lista civil, dando toda a latitude ao rei na política, mas reduzindo-lhe o orçamento. É católica, e mostra-se hostil à defesa do poder temporal, o que, por uma dedução lógica que todos compreendem, é mostrar-se simpática à condenação do catolicismo» (F: 48). 147 constrangimentos dos raciocínios lógicos, Perelman propõe a noção de incompatibilidade, que em O Império Retórico é formulada nos seguintes termos: Por isso, na argumentação, nunca nos encontramos, por assim dizer, perante uma contradição, mas sim perante uma incompatibilidade, quando uma regra afirmada, uma tese sustentada, uma atitude adotada acarreta, num determinado caso, sem que se queira, um conflito, seja com uma regra afirmada anteriormente, seja com uma tese geralmente admitida e à qual, como qualquer membro do grupo, é suposto aderirmos. (1993: 74) Uma interpretação mais restritiva do conceito perelmaniano de incompatibilidade associa-o necessariamente a um erro de argumentação, isto é, a uma dimensão proposicional207. A incompatibilidade consistiria, nesse caso, num vício que se evita (nomeadamente através da dissociação de noções), ou num erro que se aponta à argumentação do adversário. Perelman, no entanto, no passo antes transcrito, afirma que na argumentação nos encontramos perante uma incompatibilidade também quando uma atitude adotada acarreta um conflito com uma regra ou uma tese à qual se deveria estar submetido – pelo que a incompatibilidade na qual uma dada estratégia argumentativa se esforce por demonstrar que o adversário incorre poderá não residir forçosamente nas contradições do seu discurso, mas envolver uma atitude, uma prática ou um comportamento. É, aliás, o caso do ataque que Eça move à atitude inconsistente do governo em relação ao teatro: a incompatibilidade aí denunciada radica nas práticas do Estado, não no seu discurso – mas as práticas correspondem a políticas, e estas a princípios; se as práticas se revelam erráticas ou contraditórias, elas resultarão de princípios eles próprios erráticos ou contraditórios, em todo o caso suscetíveis de ser enunciados. É inegável que confrontar um adversário com as contradições patentes no seu discurso, ou entre o seu discurso e os seus atos, acarreta um efeito de descredibilização que o fragiliza enquanto sujeito e desqualifica enquanto interlocutor. O efeito de desgaste e de desqualificação resultante deste procedimento serve na perfeição o propósito queirosiano de expor ao escárnio os agentes e as instituições em que se encontra alicerçada a ordem social existente. Escreve Perelman: «É ridículo aquele que, sem disso se dar conta, é levado à incompatibilidade. O riso sanciona a sua cegueira» (1993: 75). Mas, nesse caso, encontramo- nos ainda no domínio de uma argumentação racional, centrada numa matéria substantiva, ou este desvio de enfoque, que passa a incidir sobre o adversário, resulta na necessidade de 207 «Uma contradição é uma falha na demonstração e uma incompatibilidade é uma falha na argumentação» (Alves, 2005: 43). 148 classificar estes procedimentos argumentativos como ataques ao carácter? Creio que a resposta a esta questão é que estamos perante recursos pertencentes a um quadro de racionalidade argumentativa, como procurarei demonstrar no próximo ponto. 3.3.1.1. Ad hominem e racionalidade «Toda a argumentação é uma argumentação ad hominem», afirmam Perelman e Olbrechts-Tyteca no Tratado de Argumentação (2006: 123). Ao postular este princípio, os autores do Tratado não têm em mente, como eles próprios terão o cuidado de esclarecer, aquela inflexão da argumentação para o campo da injúria e do insulto, que comummente se compreende sob esta classificação de ad hominem208, mas que acolheria melhor o rótulo de argumentação ad personam209. Schopenhauer, na sua Dialéctica Erística, diferencia com rigor os dois conceitos, observando que a opção pelo ad personam consiste num movimento de desespero a que recorrem aqueles que dão por perdida a disputa, e faz deste o último dos seus 38 «estratagemas» para se ter sempre razão210. Já o conceito de ad hominem adquire, para o filósofo alemão, duas acepções distintas, sendo possível falar de uma argumentação ad hominem, em sentido lato, e de um argumento ad hominem, em sentido restrito. Assim, latu sensu, a argumentação ad hominem opõe-se à argumentação ad rem: esta última incide unicamente sobre a matéria em disputa e respetiva relação com a verdade objetiva, ao passo que a primeira toma como objeto a relação da matéria em causa com as opiniões proferidas ou admitidas pela entidade perante a qual se argumenta211. É neste 208 Cf., e.g.: «[…] um “tópico”, por exemplo, “consiste em agarrar nas palavras pronunciadas contra nós e volta-las contra aquele que as pronunciou”: ora o que é este tópico senão o clássico argumento ad hominem, isto é, quando o adversário recorre ao insulto contra o orador, este retribui-lhe também com insultos?» (Campos, 2007: 153). 209 «Não se deve confundir o argumento ad hominem com o argumento ad personam, quer dizer com um ataque à pessoa do adversário […]» (2006: 124). 210 «Quando se apercebe que o adversário é superior e se teme a derrota, procede-se ofensiva, grosseira e ultrajosamente; quer dizer, abandona-se o objeto da discussão (já que aí se perdeu a disputa) e ataca-se, de qualquer maneira, a pessoa do adversário. Pode denominar-se este procedimento argumentum ad persona, distinguindo-o assim do argumentum ad hominem […]» (2001: 84). 211 «Para refutá-la [uma tese] existem dois modos e duas vias possíveis. / 1) Modos: a) ad rem, b) ad hominem ou ex concessis, quer dizer, demonstramos que a tese não concorda com a natureza das coisas, com a verdade absoluta objetiva; ou que não concorda com outras afirmações do adversário, ou com os princípios ou 149 sentido que Perelman afirma que toda a argumentação é uma argumentação ad hominem, visto que a verdade, no âmbito da argumentação, tem de ser forçosamente admitida pelo auditório. O argumento ad hominem em sentido restrito, por seu lado, tem para Shopenhauer um âmbito muito específico. O ad hominem não desvincula inteiramente a incidência da argumentação da matéria de facto para a concentrar apenas na pessoa do antagonista, como faz o ad personam; o que se passa é que, através deste argumento, se procura colocar o adversário numa posição vulnerável em relação às teses que defende, explorando as contradições existentes no seu discurso, ou entre o seu discurso e os seus atos e/ou valores professados212: Argumenta ad hominem ou ex concessis. No que diz respeito a alguma afirmação do adversário, temos que procurar se ele não cai em contradição – nem que seja só aparentemente – com alguma outra coisa que tenha anteriormente dito ou admitido, ou com os princípios de uma escola ou seita que tenha elogiado ou aprovado; também com factos de quem pertence a essa seita, ou com membros falsos ou supostos, ou com o seu próprio procedimento. (Schopenhauer, 2001: 65) Schopenhauer e os autores do Tratado de Argumentação não fazem o mesmo juízo sobre o lugar que um argumento deste tipo pode ocupar no âmbito dos procedimentos característicos de uma argumentação racional. Para Schopenhauer, trata-se, inegavelmente, de uma falácia de relevância; de resto, na sua opinião, a dialética é, de uma forma geral, um instrumento perverso que a inteligência põe ao serviço da vaidade e da desonestidade213, e por isso os argumentos de que fala na sua Dialéctica Erística são por ele classificados como concessões por ele admitidos, seja com uma verdade subjetiva e relativa. Neste último caso trata-se de urna prova relativa que não tem nada a ver com a verdade absoluta» (Schopenhauer, 2001: 47). 212 Trata-se da oposição entre ad hominem abusivo e ad hominem circunstancial na tipologia de Douglas Walton (cf. 2008: 170-184). 213 «“Organe” de la perversité humaine naturelle, instrument indispensable pour affronter les discussions avec succès et pouvoir ainsi satisfaire l’arrogance humaine naturelle, bref, volonté de l’emporter, indépendamment du fait d’avoir raison ou non: voilà ce qu’est la dialectique pour Schopenhauer, et rien de plus» (Volpi, 2008, 79). A justificação schopenhauriana para que o domínio das técnicas de argumentação dialética não seja posto de parte («Não obstante, quem está com a razão recorre à dialética para proteger o seu ponto de vista, e é imprescindível conhecer os estratagemas desonestos para saber enfrentá-los ou até aplicá-los para vencer o adversário» – 2001: 45) tem pontos de contacto com a defesa aristotélica da dialética e da retórica («Além disso, é preciso ser capaz de argumentar persuasivamente sobre coisas contrárias, como também acontece nos silogismos; não para fazer uma e outra coisa – pois não se deve persuadir o que é imoral – mas para que nos não escape o real estado da questão e para que, sempre que alguém argumentar contra a justiça, nós próprios estejamos habilitados a refutar seus argumentos» – Retórica: 1355a). 150 «estratagemas» ou «artifícios»214, colocados ao serviço desses baixos instintos. Perelman e Olbrechts-Tyteca referem-se a essa classificação nos seguintes termos: Schopenhauer qualificará de artifício (Kunstgriff) o uso de argumentos ad hominem consistindo em pôr o interlocutor em contradição com as suas próprias afirmações, com os ensinamentos de um partido que ele aprova ou com os seus próprios atos. Mas nada há de ilegítimo nesta maneira de proceder. Poderíamos mesmo qualificar tal argumentação de racional […]. (2006: 124) A possibilidade de conceber a contradição ilustrada por Schopenhauer como um argumento legítimo num quadro de racionalidade argumentativa parece-me decorrer da própria tipologia proposta pelos autores do Tratado. Com efeito, incorrer numa contradição significa procurar atualizar dois princípios que se excluem reciprocamente – independentemente de esses princípios se manifestarem sob a forma de asserções ou sob a forma de atitudes. Douglas Walton, ao abordar, em Informal Logic, o argumento ad hominem circunstancial215, que coincide na sua essência com a definição de Schopenhauer, coloca a tónica na questão da inconsistência entre as circunstâncias pessoais da entidade visada e aquilo que ela num dado momento defende – por exemplo, a inconsistência entre os seus atos e as suas palavras216 –, sendo que a noção de inconsistência é indissociável da ideia de contradição lógica217. Como observa Walton, trata-se de saber se aquilo que consubstancia essa inconsistência (essa contradição) se pode conceber como pertencendo ao mesmo plano argumentativo; ou seja, se palavras e ações se podem equiparar («do actions speak as loud as words?» – 2008: 154). Walton defende que, em dados casos, a resposta a esta pergunta é afirmativa218, demonstrando que um dado comportamento pode ser traduzido através de um 214 Perelman e Olbrechts-Tyteca traduzem «Kunstgriff» por «artifice» (2000: 149). «Estratagema» é, porém, a tradução mais comum. 215 Walton considera fundamentalmente três tipos de argumento ad hominem: o abusivo (o ataque direto ao carácter do adversário), o circunstancial (cf. n. 216) e aquele a que por vezes se chama envenenamento do poço («poisoning the well»): a alegação de que o adversário tem interesses ocultos que afetam a sua imparcialidade (2008: 170-189). 216 «The circumstantial ad hominem argument is the questioning or criticizing of the personal circumstances of an arguer, allegedly revealed, for example, in his actions, affiliations, or previous commitments, by citing an alleged inconsistency between his argument and these circumstances. The charge, “You don’t practice what you preach!” characteristically expresses the thrust of the circumstantial ad hominem argument against a person» (2008: 170). 217 «The notion of inconsistency is a very important concept in logic and the analysis of arguments. If an arguer is found to be inconsistent, then that is a very strong form of criticism or condemnation of his position. An inconsistent set of propositions is one where a contradiction can be deduced by valid arguments. A contradiction is a proposition that is the opposite, or negation of itself» (Walton, 2008: 152). 218 «Sometimes they do, and the message conveyed by an action needs to be taken account of in the careful analysis of an argument» (2008: 154). 151 subjacente enunciado proposicional219. Desta forma, a denúncia de uma contradição no adversário pode ser encarada não apenas como um ataque ao seu carácter ou à sua inteligência – isto é, como um ataque pessoal –, mas como a identificação de um ponto crítico num sistema cuja coerência interna é legítimo escrutinar. Assim, a descredibilização do opositor que resulta da exposição das suas contradições não dita por si só a desconsideração deste procedimento argumentativo e a sua classificação como falácia. De resto, é necessário ter em consideração que a desqualificação de um adversário é uma decorrência natural da sua refutação, independentemente dos meios usados para alcançar esse objetivo. Como observam Perelman e Olbrechts-Tyteca, qualquer que seja a técnica investida na refutação de uma tese, essa refutação acarreta inevitavelmente uma diminuição daquele que a havia sustentado220. Ainda assim, é necessário ter em consideração que As Farpas não visam, em regra, indivíduos; a não pessoalização dos ataques é mesmo um princípio editorial assumido: Eça refere-o na já muitas vezes citada carta a Joaquim de Araújo em que traça o perfil de Ramalho221, e logo no primeiro número, recuando ante a iminência de identificar um deputado cujo discurso elege como exemplo da falta de eloquência parlamentar, enuncia esse mesmo princípio: «A nossa questão não é de nomes, é de factos»222. 219 «What about the case where the father who smokes says to his son, “You must not smoke. It’s very bad for your health.” Is the son justified in feeling that his father’s argument is inconsistent? […] If the father is really arguing as represented in example 5.23, then he is inconsistent. / Example 5.23 / 1. Nobody should smoke, because smoking is bad for health. I smoke. / 2. If I smoke, my act is justified. In other words, my action of smoking may be interpreted as meaning that I advocate smoking. / 3. Therefore, I should smoke. / 4. But, if nobody should smoke, I should not smoke. / If the above is a fair representation of the father’s argument, then the argument is inconsistent. For (1) and (4) imply ‘I should not smoke,’ but (2) and (3) imply ‘I should smoke.’» (2008: 154-155). Quando Eça coloca na boca do governo uma sequência de asserções contraditórias («– Eu nada tenho com a arte teatral – e por consequência dou 25 contos ao teatro lírico»; «– Eu sou o protetor da arte teatral – e por consequência vou fazer que os teatros de Lisboa se fechem de penúria»), faz justamente aquilo a que se refere Douglas Walton: de um comportamento contraditório extrai um enunciado proposicional contraditório. 220 «Aquele cuja tese foi refutada graças a uma argumentação ad hominem vê diminuído o seu prestígio, mas não esqueçamos que essa é uma consequência de toda a refutação, qualquer que seja a técnica empregue» (2006: 124). 221 «[…] ele [Ramalho] e eu tínhamos horror ao nome próprio: nas provas, antes de pentearmos os períodos, catávamos-lhes os nomes próprios […]» (CP: 111). 222 «A Câmara não tem eloquência. […] Queres ver, leitor de bom senso um modelo de discurso? Foi o sr. deputado… Para quê dizer o nome? A nossa questão não é de nomes, é de factos» (F: 49). Esta salvaguarda do indivíduo, ao mesmo tempo que a instituição que o enquadra é visada, é notória noutros passos, de que é exemplo o seguinte: «A câmara (tomemos a atual, para exemplo) não tem princípios, nem ideias, nem consciência, nem independência, nem interesse pelo país, nem ciência, nem eloquência, nem seriedade. Isto não quer dizer que isoladamente, indivíduo por indivíduo, não se encontrem aquelas qualidades com um relevo poderoso; seria ridículo negar a erudição do Sr. Latino, a ciência do sr. Jaime Moniz, a honestidade do Sr. Rodrigues de Freitas, a eloquência do sr. Barjona, etc., etc., etc. O que se quer dizer, é que como corpo constituído, sentada nas suas cadeiras, com o seu presidente, a sua campainha, o seu copo de água com açúcar, 152 Um dos principais focos de incidência dos ataques queirosianos situa-se na fratura existente entre determinadas manifestações discursivas – determinadas retóricas – e certas práticas sociais inconsequentes com essas asserções. Eça empenhar-se-á, desta forma, em expor as contradições em que incorrem atores sociais e instituições, nomeadamente o desencontro entre valores afirmados e práticas efetivas, de modo a polarizar a atenção dos seus leitores para a inconsistência das regras que no seu momento histórico presidem ao funcionamento da vida coletiva. Mais do que os ataques dirigidos a figuras específicas, são sobretudo frequentes aqueles passos em que a contradição é assinalada enquanto fenómeno instalado no sistema, sem que esteja encarnada numa figura particular. Quando tal acontece, de resto, é a repercussão social, sistemática, do conflito apontado que está em causa, e não tanto a entidade em que ele se manifesta, individualmente considerada. A incompatibilidade que As Farpas tipicamente denunciam não é tanto a transgressão que desqualifica no plano ético ou no plano intelectual o indivíduo perante o juízo dos seus semelhantes, mas a transgressão que desqualifica toda uma sociedade quando escrutinada por um juízo que olha para ela do lado de fora e se apoia numa racionalidade ética a partir da qual constrói os seus raciocínios. Na verdade, mesmo quando a entidade visada é uma figura individual, Eça não deixa de enquadrar a transgressão identificada no contexto da sua representação social. Num artigo do terceiro número, de julho de 1871, As Farpas abordam um episódio que a imprensa tinha noticiado e comentado recentemente: um alto dignitário forçara a passagem por uma rua vedada à circulação, desrespeitando as indicações da polícia. Escreve Eça: Alguns jornais […] [q]uiseram dizer – que s. ex.ª pretendeu colocar-se ridícula e presunçosamente como excepção, superior às determinações da polícia; que s. ex.ª, militar, deu o exemplo do desacato à disciplina militar; que s. ex.ª, chefe de polícia, tornou irrisórias as disposições policiais; que S. Ex.ª, legislador, ensinou o desdém das leis; que s. ex.ª, homem de bem que deve cumprir o seu dever, repreendeu dois homens pelo facto de eles cumprirem o seu dever; que s. ex.ª, plebeu, se quis dar a atitude aristocrática de personagem excepcional; que s. ex.ª obriga as pessoas de senso a lembrarem-lhe – que ele não é o tirano Nabucodonosor – mas o comandante obscuro de uma milícia civil […]. (F: 106) A personagem em causa, nunca nomeada no artigo de Eça – e creio que nunca até agora identificada –, é o Barão do Rio Zêzere, Joaquim Bento Pereira, comandante-geral da e os seus contínuos – a câmara tem a falta absoluta daquelas qualidades, e a abundância dos defeitos opostos» (F: 48). 153 Guarda Municipal. Não seria difícil o leitor da época percebê-lo: tê-lo-ia sabido pela restante imprensa223, ou leria os indícios que o texto d’As Farpas oferece. O artigo, muito duro, ensaia, a partir deste episódio, uma interpretação do perfil psicológico de Joaquim Bento Pereira, explorando sempre, em várias etapas, um forte contraste entre um conceito elevado de coragem e de valentia e a forma deturpada como esse conceito é interpretado pela figura que protagoniza a situação inicial. Dir-se-ia que, não obstante a reserva de identidade que As Farpas salvaguardam, é efetivamente um homem que elas atacam. O excerto citado, porém, diz-nos outra coisa: as múltiplas declinações que Eça extrai do comportamento transgressivo da personagem visada traduzem, na verdade, as várias faces da repercussão social de um erro aparentemente localizado e relativamente inconsequente, e é isso que torna este caso merecedor de atenção. Os desdobramentos que Eça opera de uma ocorrência única em sucessivas vertentes de significado apresentam-se à primeira vista como exibição (aliás recorrente) da sua competência analítica, mas são também marca (não menos frequente) da sofisticada elaboração retórica dos seus argumentos. Assim, os sucessivos epítetos («militar», «chefe de polícia», «legislador», etc.) são escolhas retóricas («uma qualidade que se escolhe para pôr em evidência» – Perelman, 1993: 65) que atualizam, tornando-as presentes no espírito do leitor224, aquelas diferentes dimensões do perfil social da personagem visada que lhe deveriam impor uma conduta distinta da assumida, desdobrando (e, portanto, amplificando) as consequências do seu ato. Entretanto, a opção pela forma contiguizada através da qual se opõem os pares antitéticos «militar»/ «deu o exemplo do desacato à disciplina militar», «legislador»/ «ensinou o desdém das leis», etc., em que o segundo elemento predica o primeiro, aproxima-se incontestavelmente da formulação da contradição lógica A ∧ ¬A. Quando As Farpas se envolvem em polémicas, o ataque dirigido à persona da entidade adversária pode atingi-la com maior violência. Um dos casos mais ilustrativos deste princípio encontra-se na disputa em que As Farpas se envolvem, entre outubro e dezembro de 1871, com o jornal católico Bem Público. No número 6 (outubro), Eça censurara ao Encomendado de Santos-o-Velho o facto de este ter repreendido as mães que levavam as crianças à missa; o Bem Público interviera em defesa do pároco, e Eça, no número 8 (dezembro), aponta o grosso da sua artilharia a um argumento inesperado do jornal católico: «estão em primeiro lugar os deveres 223 Veja-se, por exemplo, o artigo «Um escândalo», com a data de 26 de julho, publicado em A Lanterna (Lobo, 1871). 224 Sobre a noção de presença, ver infra: 3.6. 154 da lactação, que os desejos da devoção» (F: 319). Eça mobiliza um sofisticado aparato retórico (enumerações, gradações, hipérboles, antíteses), pontuado por uma aparente solidez geométrica, necessária, dos raciocínios («isto é», «repara bem», P → Q, «estás pois», «és então»), para demonstrar ao seu adversário que semelhante proposição colide frontalmente com o corpo de valores por ele professado e socialmente representado: que tal afirmação assentaria antes na perfeição a Proudhon ou a Michelet; que ela contém em germe uma profunda revolução nos fundamentos da religião; que, em última instância, ela coloca o homem antes de Deus; que proferi-la é «racha[r] de alto a baixo o catolicismo» (F: 319), etc. Neste caso, o adversário de Eça, o Bem Público, tem o estatuto de interlocutor; é um sujeito argumentativo e, desta forma, existe uma reciprocidade dialógica que interrompe aquilo que é mais habitual acontecer n’As Farpas: um discurso crítico sobre uma entidade que, em regra, não se manifesta. É precisamente esse estatuto de interlocutor que Eça destrói («Ah! Bem Público, excêntrico maganão, conserva-te quieto, no teu canto! Reza, jejua, disciplina-te, – mas deixa-nos em paz!» – F: 320), depois de o expor não apenas à humilhação da incompatibilidade em que incorrera, mas ainda àquela que advém do facto de ser levado a uma situação de autofagia argumentativa. Eça acaba por prescindir da utilização de um argumentário proveniente do seu quadro de ideias e convicções e opta por provocar um curto-circuito na argumentação do Bem Público: ao construir a sua argumentação de ataque a partir do quadro conceptual do adversário, demonstra que o Bem Público será, em virtude das suas afirmações, vítima do seu próprio sistema de verdades e de valores225. Mas esta violenta humilhação intelectual de um interlocutor não é, nem sequer neste caso, o limite derradeiro da intervenção queirosiana. O Bem Público é mais do que um interlocutor: na perspetiva d’As Farpas, é um ator social relevante, é um jornal que representa determinadas práticas que contribuem para o declínio da qualidade do discurso na esfera pública, é um tentáculo da reação ultramontana, comprometido com uma ordem que procura a todo o transe garantir a perpetuação de um mundo velho. Se As Farpas pretendem precipitar o fim dessa ordem e preparar o advento de um mundo novo, o ataque ao Bem 225 «Ó Bem Público, estás pois assim naturalista e ateu! És então um falso devoto! Um tartufo! Meu Deus, que suposição, serias tu que mataste, em Paris, mr. Darboy? Serás tu o anti-Cristo? Cruzes! Por cima da tua sotaina de sacristão, pões uma faixa escarlate de membro da comuna? Ó Bem! Será a tua água benta petróleo? – Celerado! incendiário! apóstata! Vai-te! Estás maldito: enquanto a Nação tua irmã, enquanto o Diário Nacional, enquanto a Crença, estarão muito contentes no paraíso, tu, Bem Público, excluído da bem-aventurança, por ter renegado a fé, tu errarás, como uma sombra aflita, na vastidão do céu negro, mordido dos implacáveis ventos, na interminável dor, aos encontrões com as sombras condenadas de Sardanapalo, o pagão e do cavalheiro Pilatos!» (F: 319-20). 155 Público não deixa também de ser – se não é acima de tudo – o ataque àquilo que este jornal representa. 3.3.2. A justiça como princípio e como regra Quando As Farpas apontam a contradição em que incorre o governo ao subsidiar o teatro italiano – isto é, o teatro lírico – mas não o teatro nacional, não deixam igualmente de assinalar a injustiça inscrita nessa decisão aparentemente arbitrária. Segundo Eça, o Estado contradiz-se ao atualizar simultaneamente dois princípios conflituantes, dado que a um tempo protege e não protege o teatro. Nesse ponto da sua argumentação, Eça contorna a dissociação de noções que subjaz, neste caso, ao conceito de teatro aí entendido: é, nas suas palavras, «a arte teatral» globalmente considerada que está em apreço. Por outro lado, quando considera que estão em causa duas modalidades teatrais que o Estado trata de forma desigual, a contradição torna-se injustiça. As Farpas identificam vários casos de parcialidade na abordagem a situações consideradas essencialmente afins, sejam os intérpretes desta ação parcial as autoridades do país, o próprio corpo jurídico do Estado, ou esteja ela dispersa num sentir coletivo para cuja inconsistência Eça e Ramalho procuram despertar as consciências. Se o governo subsidia a modalidade lírica do teatro, não poderá então deixar de subsidiar a modalidade regular; da mesma forma, se se permite a circulação de um livro que veicula determinadas ideias, não é lícito impedir que essas ideias sejam discutidas (F: 80); se as leis proíbem que se profiram certas desonestidades na via pública, devem igualmente impedir que um jornal imprima e faça circular desonestidades semelhantes (F: 75). Casos como estes enquadram-se igualmente no âmbito dos procedimentos argumentativos quase lógicos, segundo Perelman: está em causa a regra da justiça, uma modalidade subsidiária do princípio da identidade que permite aproximar dois ou mais casos para salientar aquilo que entre eles é semelhante e, a partir do estabelecimento dessa semelhança, promover um juízo análogo. A regra da justiça ocupa, aliás, um lugar simultaneamente fundador e central na investigação perelmaniana no domínio da teoria da argumentação e da filosofia do direito. O seu primeiro ensaio de definição deste 156 conceito data de 1945, quando, em De la Justice, escreve: «Portanto, pode-se definir a justiça formal como um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma» (1996: 19; cf. tb. 1993: 84; Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 240). Mas, como acrescenta depois, a aplicação deste princípio exige «a determinação prévia das categorias consideradas essenciais», sendo que «não se pode dizer quais são as características essenciais […] sem admitir certa escala de valores, uma determinação do que é importante e do que o não é, do que é essencial e do que é secundário» (1996: 30-1). Isto é, o princípio é inquestionável; as condições da sua aplicação são fundamentalmente argumentativas, como mais tarde virá a concluir. A singularidade da interpretação que Eça faz do procedimento argumentativo assente na regra da justiça reside no facto de, baseando-se esta embora num princípio de inércia226, ela ser posta n’As Farpas ao serviço de uma estratégia de reconfiguração das relações que entre si estabelecem diversas manifestações de uma certa ordem social. Num artigo do segundo número, por exemplo, Eça de Queirós insurge-se contra a publicação no Diário Popular de um poema que, segundo sustenta, promove a licenciosidade, quando o seu teor erótico, transposto em prosa, não seria decerto publicado (F: 74-5). Eça denuncia aquilo que considera ser uma inconsistência manifesta no facto de conteúdos de índole semelhante obterem socialmente um acolhimento distinto consoante são vertidos em prosa ou em verso, visto entender ser este traço formal negligenciável para fundamentar uma apreciação sobre os objetos em causa. Isto é, o aspeto julgado pertinente para considerar a natureza publicável ou não dos dois textos em causa (um efetivo e outro hipotético: de um lado um poema, do outro «teorias em prosa») deixa de ser a sua diferente tipologia (que implicaria distintos estatutos estético-ontológicos, distintos protocolos de leitura, formas diferenciadas de se relacionarem com o mundo, etc.) e passa a ser apenas o desenho que ambos propõem do mundo enquanto palco de ações humanas. Esta vinculação a uma categoria comum é delineada, de resto, logo no início do artigo, quando Eça se refere ao poema do Diário Popular em primeiro lugar como tratando-se de «notáveis considerações de ordem moral», e só 226 «[…] a regra da justiça resulta de uma tendência, natural à nossa mente, de considerar normal e racional, portanto não exigindo nenhuma justificação suplementar, um comportamento conforme aos precedentes. Em qualquer ordem social, o que é tradicional se apresentará, pois, como óbvio; pelo contrário, qualquer desvio, qualquer mudança, deverão ser justificados. Essa situação, que resulta da aplicação do princípio de inércia na vida do espírito, explica o papel que nela desempenha a tradição […]» (Perelman, 1996: 92). 157 depois acrescentando «São em verso», como se este aspeto formal fosse um mero traço acessório, acidental e irrelevante para a consideração do objeto em causa227. No artigo do mesmo número em que reage ao encerramento das Conferências Democráticas – um artigo em que a veia argumentativa é particularmente saliente, e onde a lógica, o bom senso e a legalidade são frequentemente invocados –, as primeiras ocorrências do argumento da regra da justiça desenham-se com uma notável nitidez, nomeadamente no passo em que Eça alega que as ideias expostas nas Conferências, que determinaram o seu fecho por se considerar colidirem com o código fundamental da monarquia, se encontravam igualmente expressas com idêntica clareza numa abundante literatura cuja circulação se permitia sem quaisquer reservas. Se no caso do poema do Diário Popular o traço formal prosa/verso não era considerado por Eça pertinente para legitimar uma consideração diferenciada de objetos essencialmente semelhantes, neste caso é o modo oral ou escrito da veiculação de uma ideia que não é visto como podendo fundamentar essa distinção: Que foi o que se quis fazer calar nas conferências? Foi a crítica política? Para que se deixam então circular no país os livros de Proudhon, de Girardin, de Luís Blanc, de Vacherot? Foi a crítica religiosa? Para que deixam então, atravessar a fronteira ou a alfândega os livros de Renan, de Strauss, de Salvador, de Michelet? Sejamos lógicos: fechemos as conferências do Casino onde se ouvem doutrinas livres, mas expulsemos os livros onde se leem doutrinas livres. Ouvir ou ler dá os mesmos resultados para a inteligência, para a memória, e para a ação, é a mesma entrada para a consciência por duas portas paralelas. (F: 79) Mas em qualquer dos passos abordados a exigência de que se aplique um tratamento equânime a situações que deveriam ser consideradas afins tem invariavelmente um desenvolvimento posterior singular. No artigo em que censura a publicação do poema licencioso no Diário Popular, Eça propõe que a multa que a Câmara aplica a quem pronuncia palavras desonestas, como é o caso de um ébrio, incida igualmente sobre quem publica ideias desonestas, como é o caso de um poeta lírico; a partir deste ponto, procura demonstrar que a equiparação que propõe entre estes dois casos é ainda uma concessão a uma certa dose de iniquidade, visto que todas as circunstâncias atenuantes estão do lado do ébrio e todas as agravantes do lado do poeta – em termos da responsabilidade social que cada um encarna, da extensão do que diz, do auditório que tem, da natureza do medium de que se serve228. Da 227 Este tópico é recuperado num episódio de O Conde de Abranhos (CA: 80-9). 228 «Pedimos pois: / Ou que seja permitido livremente dizer na rua, ou no jornal, pragas e desonestidades; / Ou que a multa da câmara municipal seja aplicada a todos – tanto ao pobre ébrio que não sabe o que diz à esquina de uma rua, – como ao poeta lírico que escreve, com reflexão e rascunho de uma semana, ao canto de um jornal!» (F: 75). 158 mesma forma, As Farpas alegarão que o teatro regular, que não é subsidiado, é na verdade mais merecedor de apoios do que o teatro lírico229, tal como defenderão não apenas que as Conferências são tão legítimas como outras formas de expressão permitidas pelas autoridades, mas que elas são, de facto, mais legítimas do que certas formas de expressão indevidamente toleradas230. Eça serve-se, por conseguinte, da regra da justiça para questionar duplamente a ordem das coisas: por um lado, para assinalar uma interpretação equívoca de uma lei ou de um princípio, a partir da qual se gera uma situação de injustiça no tratamento de casos que deveriam estar cobertos pelo âmbito da sua aplicação (isto é, aproxima aquilo que estava separado, reunindo numa categoria comum situações que na organização do espaço conceptual do leitor provavelmente ocupariam lugares afastados); por outro lado, como extensão deste primeiro uso, utiliza-a para questionar o próprio âmbito dessa lei ou desse princípio, o qual, em alternativa a acolher a totalidade dos casos evocados, deveria, na verdade, deslocar o seu foco de incidência e manter uma discriminação invertida em relação à situação inicial: o primeiro movimento poder-se-ia talvez chamar reformador; o segundo é manifestamente revolucionário. 3.3.3. A lógica do absurdo O recurso a uma argumentação especialmente vocacionada para apontar manifestações de incoerência a agentes e instituições responsáveis por aquilo que se considera ser «o progresso da decadência» justifica boa parte dos passos em que As Farpas afirmam o seu (muito reiterado) tributo à lógica. Em cada contradição apontada há pelo menos um embrião de raciocínio lógico – ou quase lógico, como propõe Perelman –, que depois pode ser objeto de um desenvolvimento diferenciado. Um dos raciocínios recorrentes 229 «Ora a verdade é que: / O governo despreza o teatro nacional, / E subsidia o teatro italiano. / E outra verdade é que: / O teatro nacional é uma necessidade inteligente e moral – e o teatro italiano é uma inutilidade luxuosa e sentimental» (F: 307). 230 «Antes de haver conferências no Casino havia ali cançonetas. […] E aí está! aquilo que era a obscenidade, a desmoralização, a infâmia, a crápula, não atacava a moral do estado!/ As conferências, que eram o estudo, o pensamento, a crítica, a história, a literatura, eram incompatíveis com essa moral!» (F: 80). 159 nas páginas queirosianas d’As Farpas, e que acaba por se constituir como uma das marcas identitárias do perfil argumentativo que Eça deixa impresso nos seus textos, verte-se numa forma lógico-dedutiva bastante elaborada. Refiro-me à redução ao absurdo, ou raciocínio apagógico, cujo mecanismo silogístico é frequentemente utilizado por Eça como meio de refutação dos princípios subjacentes às posições que ele se propõe contestar. No subcapítulo que consagram ao papel do ridículo na argumentação, Chaïm Perelman & Lucie Olbrechts-Tyteca (2006: 226-231) observam que um dos procedimentos mais característicos de uma estratégia que vise desacreditar uma tese adversária explorando as consequências absurdas da sua aplicação assenta no modelo do raciocínio pelo absurdo utilizado nas demonstrações geométricas. Se entendermos o argumento de redução ao absurdo não numa perspetiva estritamente vinculada aos princípios lógicos da não- contradição e do terceiro excluído – isto é, como uma prova demonstrativa que radica no facto de, considerando uma premissa P, se concluir Q ∧ ¬Q, e, por conseguinte, ¬P – mas como «a process of refutation on grounds that absurd – and patently untenable [–] consequences would ensue from accepting the item at issue» (Rescher, 2005), reconheceremos inevitavelmente na argumentação queirosiana uma especial predileção por esta forma argumentativa. Trata-se, no fundo, de substituir o critério estrito da consequência contraditória por um critério mais lato, o da consequência absurda231 – critério este que é, de resto, genericamente acolhido em estudos sobre a argumentação provenientes de áreas de investigação que vão da filosofia ao direito232. O apreço de Eça por este instrumento argumentativo, que se traduz numa considerável frequência de utilização, advém seguramente do facto de a redução ao absurdo lhe permitir explorar duas das características 231 Segundo Gustavo Arroyo, «Normalmente, llamamos “absurda” a cualquier afirmación que contradice una proposición obvia», sendo esta última, segundo a definição de Bruce Russel, «“aquella que inmediatamente parece verdadera para cualquiera que la entiende adecuadamente”» (2010: 88-9). Arroyo distingue também as proposições óbvias auto-evidentes, independentes da experiência (verdades a priori), das proposições óbvias evidentes, fundadas na experiência empírica (verdades a posteriori). Normalmente, quando Eça refuta uma tese recorrendo ao raciocínio apagógico, é porque dela decorre uma consequência que contraria esta última categoria de verdades. 232 Cf., e. g., «Para responder los interrogantes de su disciplina, los filósofos proponen a menudo soluciones que resultan a primera vista plausibles. Pero cuando los otros filósofos se toman el trabajo de evaluar la solución propuesta, no suele pasar mucho tiempo hasta que alguno de ellos descubre que, pese a la plausibilidad aparente, aceptar la teoria implicaría comprometernos con la verdad de alguna afirmación absurda. Esta estrategia argumentativa es característica de los debates filosóficos y es conocida como Reductio ad Absurdum […]. Argumentar por Reductio ad Absurdum equivale a suponer verdadera una tesis para mostrar luego que la misma implica una consecuencia absurda.» (Arroyo, 2010: 81); «O argumento ad absurdum é outro típico do discurso jurídico. Também denominado argumento apagógico, é aquele que procura demonstrar a falsidade de uma proposição estendendo-se seu sentido e aplicando-lhe regras lógicas do Direito, até alcançar um resultado que o interlocutor entenda como impossível. A impossibilidade do resultado faz com que o interlocutor rechace sua gênese, o que é o principal objetivo do discursante» (Rodríguez, 2005: 176). 160 que as As Farpas invocam como constitutivas do seu mais genuíno código genético: a matriz lógica do seu argumentário, neste caso já muitas vezes moldada pela forma silogística, e as incidências cáusticas do humor, que aqui resulta da submissão das posições que se pretende ridicularizar à lógica das teses que lhe subjazem. Como se sabe, à luz da lógica formal, num argumento válido, sempre que as premissas são verdadeiras obtém-se uma conclusão necessariamente verdadeira; pelo contrário, se a conclusão que se extrai de um argumento é falsa, então pelo menos uma das premissas terá de ser falsa. Assim, uma forma eficaz de demonstrar a falsidade de uma premissa é testá-la na construção de um argumento, admitindo-a como uma suposição verdadeira: se quaisquer outras premissas usadas forem indiscutivelmente verdadeiras e a conclusão for falsa, segue-se que a suposição testada é, efetivamente, falsa (trata-se, portanto, de uma modalidade do modus tollens: P → Q; ¬Q,╞ ¬P. Cf. Weston, 1996: 78; Arroyo, 2010: 84). Embora a redução ao absurdo também seja usada para demonstrar positivamente uma tese, em especial no âmbito da matemática e da geometria233, fora destas áreas específicas o seu uso predominante é o de instrumento de refutação. É precisamente esta a utilização típica que Eça faz dela nos textos d’As Farpas, onde comparece com o propósito de desqualificar uma entidade visada. Trata-se quase sempre, na sua modalidade mais típica, de pôr em xeque as razões que um ‘adversário’ invoca para justificar determinada posição assumida ou determinado comportamento adotado: o movimento argumentativo consiste, então, em associar à situação que está inicialmente em causa outras situações que cabem debaixo do princípio invocado para a enquadrar; essas novas situações terão, em nome da coerência, de ser objeto de igual tratamento. Ora, se as consequências da aplicação desse princípio às novas situações propostas desafiam as regras do funcionamento do mundo, conclui-se pela inadequação do princípio invocado: A câmara não tem ideias. […] A câmara discute durante um mês se o sr. Soares Franco deve ter o comando da armada, ou se não deve ter. O ministro declara que sim – porque o comando da armada, é de tradição de três séculos. Este princípio do governo, logicamente entendido, obriga o ministro a levantar a forca, reconstruir os conventos, ressuscitar Afonso Henriques e ir, imediatamente, já, já, descobrir outra vez o caminho da Índia – e ficar sempre a descobri-lo! (F: 48) 233 Mas também sob a forma de silogismo dialético. Cf., e. g., Aristóteles, 2007: 491, n. 72: «Trata-se do argumento conhecido por “redução ao absurdo”, ou seja, a demonstração da verdade de uma tese pela falsidade (ou impossibilidade) decorrente da sua aceitação». 161 Diz o Clamor do Povo que não devíamos acusar a sr.ª D. Eugénia porque nunca recebemos ofensas de Napoleão III. Mais pasmado ficará o excelente jornal quando lhe dissermos que Pilatos foi um celerado, e que todavia, pela nossa honra o juramos, nunca, nunca recebemos de Pilatos – a mais ligeira descortesia! (F: 242). «Porque o comando da Armada é de tradição de três séculos» e «porque nunca recebemos ofensas de Napoleão III» são causais que enquadram e justificam as situações concretas em causa (deve o Sr. Soares Franco deter o comando da Armada?; é legítimo As Farpas censurarem a Sr.ª D. Eugénia de Montijo?), postulando implicitamente princípios de carácter geral que seriam as premissas maiores de um silogismo reconstituível (no primeiro caso: tudo o que é de tradição [de três séculos] deve ser preservado; o comando da Armada é de tradição de três séculos, logo o Sr. Soares Franco deve ter o comando da Armada; no segundo: não é legítimo censurar alguém de quem não se receberam ofensas pessoais; As Farpas não receberam ofensas de Napoleão III, logo não deveriam acusar a Sr.ª D. Eugénia). Este rigor apodítico que emana da estrutura da redução ao absurdo convém duplamente ao propósito queirosiano de construir um perfil autoral em que se destaca a competência argumentativa: por um lado, pelo desenho geométrico do raciocínio; por outro, pela demonstração da capacidade de desconstrução da lógica (ou da ilógica) dos argumentos adversários. Ao discurso de Eça n’As Farpas, como já se referiu anteriormente, subjaz uma hierarquização do valor de qualquer estratégia argumentativa em função do tipo de argumentos por que se opta: um discurso que se construa sobre uma matriz lógica é preferível àquele que se propõe atuar através da comoção. Daí a tendência muito clara que Eça revela para sublinhar expressamente a filiação lógica dos seus movimentos argumentativos, como uma forma de tirar partido do «prestígio do raciocínio rigoroso», que se sobrepõe enquanto modelo ao «discurso passional» (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 214). As manifestações desta tendência não se circunscrevem – longe disso – aos casos de argumentação por redução ao absurdo, mas os múltiplos pontos de articulação que este argumento pode apresentar quando objeto de maior investimento ao nível da construção tornam-no especialmente apto a receber este tipo de sinalização. No primeiro dos dois exemplos acima transcritos, o passo «Este princípio do governo, logicamente entendido» desempenha a função sinalizadora do estatuto lógico do argumento usado, mas é nos raciocínios mais longos e articulados que a exibição desta matriz chega a assumir um carácter verdadeiramente ostensivo. Os argumentos por redução ao absurdo atingem n’As Farpas, por vezes, dimensões textuais consideráveis (que podem 162 corresponder à quase totalidade de um artigo, como acontece num dos artigos do número de outubro de 1871), desdobrando Eça nesses casos, muitas vezes com um sentido gradativo, toda uma série de consequências extraídas da aplicação do princípio que subjaz à posição ou ao comportamento que pretende descredibilizar. Quando a amplitude textual da redução ao absurdo se expande, é frequente que a natureza lógica, necessária, da passagem de uma proposição a outra seja insistentemente reforçada – por um lado, Eça, reiterando assim o seu tributo à lógica, reivindica o estatuto que ela confere à sua argumentação; por outro, coloca o argumentário dos seus adversários num quadro que revela a fragilidade da sua sustentação. O seguinte exemplo ilustra convenientemente este fenómeno: O clero começa a reconhecer entre a igreja e a vida incompatibilidades inesperadas. Ainda há pouco Mgr. Dupanloup, bispo de Orleans e antigo académico, pedia à academia a sua demissão por incompatibilidade com Littré, positivista e académico recente. Isto, bem entendido, obrigaria Mgr. Dupanloup – se nos não transvia uma errónea lógica – a pedir a sua demissão de deputado à assembleia, porque onde está a fé-dupanloup não pode estar a impiedadelittré – e o positivista Littré é deputado à assembleia. Mas sendo Littré cidadão francês – sob a lógica da incompatibilidade, deve Mgr. Dupanloup demitir-se de cidadão francês. Mas resta alguma coisa: Littré é homem, e o princípio de Mgr. Dupanloup obriga-o desde já, se é consequente, a demitir-se da sua qualidade de homem. E não é tudo ainda: Littré é matéria organizada (carne, organismo, osso, etc.) e portanto o lógico e incompatível Mgr. Dupanloup deve correr perante a autoridade competente e demitir-se nobremente de matéria organizada. Resta ainda: Littré é ser – (vitalidade, substância, parte do universo etc.) e Mgr. Dupanloup, que é incompatível com tudo o que é Littré, segundo as suas palavras, deve trabalhar até conseguir – a sua demissão de ser. E enfim demitido de académico, de deputado, de francês, de homem, de matéria e de ser, o que fica deste bispo de Orleans, sábio latinista e panfletário ilustre? (F: 340-41) Não está, naturalmente, em causa a natureza abusiva (poder-se-ia dizer sofística) dos sucessivos alargamentos que Eça opera no âmbito de vigência da incompatibilidade manifestada pelo bispo de Orleães234. A própria equiparação entre a academia e a assembleia está longe de ser pacífica: ao contrário do que se passa no caso da academia, faz parte da identidade essencial da assembleia que ela comporte fações que se opõem – e Eça deplorará frequentemente nos seus textos que essa oposição, no caso português, se esgote em manifestações acessórias, quando não desce ao domínio puro do insulto. Mais do que tudo, porém, interessa-lhe na sequência citada explorar as possibilidades que um esquema lógico 234 Uma eventual refutação, neste caso, consistiria, como observa Perelman, «numa crítica do ponto de vista, das preliminares, nas quais se fundamenta a objeção. Pois a objeção apresentada é sempre apresentada em nome de um facto que parece ter sido desprezado, em nome de uma regra que foi violada, em nome de um valor que foi violado. Que irá responder o filósofo? Tal facto interpreto-o desse modo, e então minha tese não se opõe a ele. Tal regra não é obrigatória em todos os casos; seu respeito só se impõe em tais circunstâncias que estavam ausentes» (1996: 275). 163 desta natureza lhe oferece de expor ao ridículo uma personagem e os valores que ela representa e invoca – e, paralelamente, não perde a oportunidade para focar a atenção do seu leitor na própria construção lógica do raciocínio. Assim, como se vê, cada ponto de articulação desta sequência tem impressa a sinalização dessa matriz lógica, quer através da reiteração do próprio termo que a assinala («se nos não transvia uma errónea lógica», «sob a lógica da incompatibilidade», «e portanto o lógico e incompatível Mgr. Dupanloup»), quer através do emprego de mecanismos lexicais e sintáticos que a atualizam, fazendo depender uma nova consequência estritamente da coerência da personagem visada («se é consequente»), ou justificando-a, noutro ponto, através de uma relativa de valor causal («que é incompatível com tudo o que é Littré, segundo as suas palavras»). Mas a reductio é, nestes textos, mais do que um instrumento a que Eça recorre para destruir argumentos provenientes de uma fação a que se opõe. Ela não é apenas um mecanismo lógico – é também um importante dispositivo retórico. Ao extrair de uma proposição aparentemente defensável (e quase sempre efetivamente defendida por alguém) um leque virtualmente infindável de imagens que reconfiguram de forma provocatória a ordem natural das coisas e do mundo, Eça não procede apenas à desconstrução lógica de um argumentário: para além de explorar as potencialidades humorísticas que resultam do desenho desse mundo alternativo, não deixa de alertar para os perigos que a progressiva instalação de uma lógica distorcida em diversos sectores da vida nacional representa para o sistema coletivo. Estes aspetos serão, porém, abordados de forma mais detalhada no capítulo 4. 3.4. Racionalidade efetiva ou aparente? Tenho vindo a tentar demonstrar que Eça constrói n’As Farpas uma imagem autoral a que está associado um signo de racionalidade. Esta estratégia assenta num programa de leitura da realidade – e também num programa que configura a expressão preferencial dessa leitura – vinculado à lógica e ao bom senso, e contém um importante investimento na sinalização da presença dessa matriz argumentativa. Isto é, a incursão do discurso por uma 164 via de argumentação de cariz lógico é muitas vezes pontuada pela referência expressa – e estratégica – ao facto de se estar sob o domínio constringente característico dos raciocínios analíticos. Eça procura notoriamente vincular-se, não apenas a uma racionalidade efetiva, mas também, senão principalmente, a uma ideologia da racionalidade, que se constitui como modelo privilegiado de compreensão da realidade e de organização expositiva das relações de vária ordem que entre si estabelecem os diferentes aspetos que a constituem. A verdade, porém, é que apesar da coloração lógica de que os textos d’As Farpas se procuram revestir Eça mobiliza recursos muito diversos para a construção dos seus argumentos. Consideremos, a título de exemplo, o passo abaixo transcrito, que contém um argumento quase lógico de transitividade – isto é, como explicam Perelman e Olbrechts- Tyteca, explora uma relação entre vários termos que apresenta a propriedade de permitir passar da afirmação de que essa relação existe entre um primeiro termo e um segundo (aRb) e entre este segundo e um terceiro (bRc) para a afirmação de que ela existe entre o primeiro e o terceiro (aRc): De modo que a opinião liberal que no parlamento protestou que era católica apostólica romana – censura a defesa do poder temporal, isto é: censura a defesa do catolicismo e a defesa da unidade. E com protestos ortodoxos mostra-se inimiga do catolicismo – por consequência inimiga do cristianismo, porque o catolicismo é a expressão mais lógica e mais profunda do cristianismo – por consequência inimiga da religião, porque o cristianismo é a expressão mais lógica do conceito religioso. (F: 46) Este passo específico da argumentação queirosiana suscitará uma severa reação crítica por parte de Vieira de Castro (sob o já referido pseudónimo de Samuel), que contestará a pertinência dos nexos de causalidade que aqui fazem avançar o raciocínio: «Deus me livre de asseverar como tu: que o catolicismo é a expressão mais lógica e mais profunda do cristianismo!», objeta num artigo publicado n’O Primeiro de Janeiro235. Isto é, segundo Vieira de Castro, todo este raciocínio assenta numa petição de princípio alojada sob a sua aparência austeramente lógica. Ao reivindicar para As Farpas um auditório universal, Eça como que vincula todo o seu argumentário ao domínio do logos, e, portanto, compromete-se a estabelecer os respetivos alicerces em verdades ou valores sobre os quais exista um acordo extensivo a todos os indivíduos dotados de razão. No entanto, se este ideal de racionalidade apodítica vingou historicamente, desde os primórdios da sua fundação, no campo da matemática ou da lógica, sempre se revelou incapaz de produzir resultados satisfatórios quando aplicado fora do 235 «Ao demónio destas bandarilhas», O Primeiro de Janeiro, 9 de julho de 1871 (cf. Reis, 1987, I: 222). 165 âmbito destes domínios específicos236. Assim, não deixa de ser previsível que por vezes a construção de argumentos com fortes afinidades com os esquemas característicos dos raciocínios demonstrativos, nomeadamente quando se assume o estatuto evidente das premissas de partida, exponha o movimento argumentativo empreendido a objeções como aquela que Vieira de Castro aponta. Como observam Perelman e Olbrechts-Tyteca, em rigor a petição de princípio não é uma falácia lógica, dado que no âmbito da demonstração lógica não se pode concluir nada que não esteja já contido nas premissas; ela é, sim, uma falácia argumentativa237. A acusação de petitio principii é, assim, a demonstração de que Eça está longe de conseguir afinar o registo da sua estratégia argumentativa pelo diapasão daquele ideal de razão universal que, no seu programa inicial, assume perseguir. De uma forma geral, creio que mais relevante do que a solidez efetiva da vertente lógica do argumentário queirosiano é por vezes uma certa exibição da roupagem que reveste os seus argumentos, recortada a partir de modelos que provêm, de facto, frequentemente desse domínio da demonstração apodítica, mas sem reproduzir o seu rigor essencial. Na secção 3.3.3. deste trabalho, referi-me à existência de pelo menos um embrião de raciocínio lógico nas contradições apontadas por Eça (cf. supra: 158); impõe-se, no entanto, o reconhecimento de que com alguma frequência esse embrião não vai muito além da afirmação de que essa contradição tem – ou teve – lugar. Deste modo, a argumentação queirosiana de matriz lógica não só é normalmente secundada por argumentos de outra natureza, como tende a ser, em certos casos, usada não tanto com o objetivo principal de aduzir razões sob a forma de argumentos válidos, mas principalmente com o de conferir ao discurso a credibilidade que advém das suas fórmulas consagradas. Igualmente incontornável enquanto recurso característico da argumentação queirosiana é a forma como mesmo aqueles passos em que a racionalidade lógica parece 236 «Assim como apreende intuitivamente as entidades e as operações matemáticas, a razão deveria ser capaz de apreender, pela intuição, os valores nos quais os homens poderiam fundamentar sua ação e que se manifestariam com uma evidência irrecusável a toda mente suficientemente exercitada. Conhecemos a gloriosa e dececionante história dessa tentativa racionalista, que desenvolveu no Ocidente a paixão pelo saber objetivo e pela verdade universalmente válida, o gosto do rigor e da precisão, mas que não deixou de tornar proverbial, ao mesmo tempo, a incerteza da filosofia» (Perelman, 1996: 97). 237 «Constatemos imediatamente que, no plano da lógica formal, a acusação de petição de princípio é destituída de sentido. Com efeito, seria possível pretender que toda a dedução formalmente correta consiste numa petição de princípio, e o princípio de identidade, que afirma que toda a proposição se implica a si mesma, seria até a petição de princípio formalizada. / De facto, a petição de princípio, que não diz respeito à verdade mas à adesão dos interlocutores às premissas que se pressupõem, não é um erro de lógica mas sim de retórica; ela compreende-se, não no interior de uma teoria da demonstração, mas por referência à técnica argumentativa» (2006: 125). 166 imperar tendem a ancorar-se, numa espécie de segundo plano argumentativo, numa linguagem de cunho emotivo. Nas sequências que transcrevo abaixo, para cujas semelhanças é desnecessário chamar a atenção, Eça transfere para o plano da argumentação um postulado a que subjaz uma relação de natureza lógica, que Aristóteles descreve nos seguintes termos: «se de facto uma afirmação não se aplica ao que seria mais aplicável, é óbvio que também não se aplicaria ao que seria menos» (Retórica: 1397b). Pois quê! Podem ler-se no grémio jornais republicanos, e jornais da Comuna, estão nas bibliotecas toda a sorte de livros materialistas, racionalistas e socialistas – e não há de ser permitido falar do que há de mais abstrato na ação política, de mais imparcial, de mais acima das agitações humanas e das violências partidárias – a história? Pois é permitido à Nação, publicar em prosa impressa e permanente ataques rancorosos à liberdade constitucional e à realeza constitucional – e não pode ser permitido ao sr. Antero condenar as monarquias absolutas, e ao sr. Soromenho condenar os romances eróticos? Pois o marquês de Pombal expulsa os jesuítas e a política deles, e não é permitido a um conferente do Casino fazer a crítica da política dos jesuítas? (F: 79-80) Pois a própria França não impede que se escrevam livros louvando a comuna, e o governo português impede-o? Pois o governo não proíbe que os jornais legitimistas exaltem o absolutismo que prendeu, matou, cortou a machado nossos avós, nossos pais, as mulheres das nossas famílias, que sequestrou as nossas casas, queimou as nossas searas, e proíbe que se discuta uma política, cujos excessos se passaram a 100 léguas de nós, sem relação connosco, sem ação na nossa ação?! (F: 125) Estruturalmente, ambos os argumentos são enquadráveis na categoria dos quase lógicos. No primeiro, a relação de inclusão que nele se explora é mesmo objeto de uma sinalização tipográfica: na última sequência, os itálicos destacam os termos que é necessário colocar lado a lado, para que o leitor não deixe de, confrontando as duas formas, observar que criticar é uma forma fraca de expulsar. Mas, se esta última frase retira o seu poder argumentativo de dados factuais e de conceitos sobre cujo consenso parece não poder haver grandes dúvidas, a verdade é que nenhum dos excertos descarta o recurso a uma estratégia de reforço do envolvimento afetivo do leitor. Desde logo, essa estratégia deteta-se no traço anafórico de indignação que atravessa ambos os passos: o «pois» expletivo que investe de uma marca de perplexidade cada emparelhamento de situações incompatíveis entre si. Para além disso, são claros os sintomas de valoração238 na forma como os casos em confronto são enunciados: «ataques rancorosos» é o mais evidente no primeiro excerto; no segundo, a 238 A utilização de uma linguagem fortemente valorativa é vista não como suporte de um argumento mas como um argumento em si mesma por Fabrizio Macagno e Douglas Walton quando «the use of emotive language or amplification is used to disguise the need to prove the claim» (2010: 16). 167 opção pela enumeração de atos concretos de barbárie cometidos pelo absolutismo ou o envolvimento do leitor através do emprego do possessivo («nossos pais», «nossas casas», «nossas searas», etc.), em detrimento de uma síntese semelhante à que é usada para descrever os acontecimentos de Paris («excessos»), visam criar um efeito de presença através da convocação de uma dimensão de pathos que, à partida, pareceria pouco conciliável com estratégias argumentativas de natureza lógica. Se por um momento revisitarmos dois argumentos atrás abordados em que o princípio subjacente à regra da justiça é invocado, num caso para exigir que um ébrio e um poeta lírico que ofendem a moral pública sejam tratados de modo semelhante, no outro para protestar contra o encerramento das Conferências num espaço onde se permitiam divertimentos obscenos (cf. supra: 156-57), verificaremos que qualquer deles explora igualmente de forma manifesta a via emotiva. No primeiro caso o ébrio é desde logo «um pobre homem» – surge, portanto, não como portador de uma culpa, mas de uma ferida; como vítima de uma sociedade que lhe subtrai aquilo que seria seu dever proporcionar-lhe: a educação, a leitura, o trabalho. Não se trata de um indolente: é ébrio em consequência do abandono social a que foi votado239. Este investimento numa vertente patética é ainda mais acentuado nos últimos parágrafos do artigo em que Eça aborda o caso do encerramento das Conferências. A mobilização das instâncias afetivas do leitor começa aqui pela descrição dos espetáculos que antes tinham lugar no Casino, onde se destacam as figuras de amplificação, nomeadamente a gradação, que opera quer pela extensão, quer pela intensidade crescente («cantigas impuras, obscenas, imundas!»; «o pudor, a família, o trabalho, a virgindade, a dignidade, a honra, Deus!»). É, porém, na forma ‘esquematizada’ como se organiza a sequência final deste passo que assenta o seu impacto muito particular, a um tempo lógico e patético: E aí está! aquilo que era a obscenidade, a desmoralização, a infâmia, a crápula, não atacava a moral do estado! As conferências, que eram o estudo, o pensamento, a crítica, a história, a literatura, eram incompatíveis com essa moral! 239 «Um ébrio, um pobre homem a quem se não deu educação, a quem se não pode dar leitura, a quem quase se não dá trabalho, diz uma praga numa rua, ouvida apenas de três ou quatro pessoas, e vai para a cadeia ou paga uma multa de 3$000 réis: um poeta lírico, esclarecido, aprovado nos seus exames, empregado nas secretarias, publica num jornal de cinquenta mil leitores, em letra impressa, permanente e indelével, uma série de desonestidades, e é apreciado, cumprimentado no Martinho, e começam a indigitá-lo a uma candidatura!» (F: 75). 168 Homens refastelados, bebendo conhaque, rindo, gritando, apupando desgraçadas criaturas que se deslocam em atitudes obscenas para fazer rir – isso era permitido por todas as leis! Homens que escutam gravemente uma voz que fala de justiça, de moral, de arte, de civilização – isso é proibido com tanta violência que até se salta por cima da Carta para o proibir! (F: 80) Nos quatro parágrafos sucedem-se duas antíteses, que, opondo a licenciosidade dos espetáculos à seriedade das Conferências, exprimem reiteradamente a inconsistência manifesta entre a ação das autoridades e os imperativos morais e legais que enquadram essa mesma ação. O reforço do estímulo afetivo assenta aqui sobretudo no poder das imagens: num movimento que lhe é peculiar, Eça opera a transformação de conceitos (obscenidade e infâmia vs. estudo e pensamento) em retratos (homens refastelados, bebendo conhaque vs. homens que escutam gravemente). Aquilo a que assistimos em ambos os artigos é, portanto, a uma argumentação ‘em crescendo’, o que reflete um particular investimento ao nível da dispositio: não se trata apenas de terminar os textos com um argumento ‘forte’, segundo os preceitos da retórica antiga, mas de ser possível num e noutro caso perceber uma particular concentração de recursos da ordem do pathos no argumento final, que se impõe assim a qualquer atitude lógica. 3.5. Dividir, enumerar: do logos ao pathos No número de junho/julho de 1872, As Farpas publicam um artigo no qual são abordados certos discursos atípicos proferidos em homilias religiosas. Estão em causa, mais concretamente, duas modalidades de sermão que o clero vinha recentemente interpretando, modalidades essas que, a despeito da circunstância em que ocorriam, derivavam para temas alheios ao domínio da religião. O primeiro alvo da crítica queirosiana neste texto é aquilo a que Eça chama «o sermão obsceno»: O sermão obsceno é uma particularidade minhota dos senhores missionários. Uma de suas senhorias sobe devotamente ao púlpito, e depois das ave-marias murmuradas, olha pausadamente a multidão feminina, apertada e contrita, e com gestos sumptuosos, anuncia que vai tratar da castidade. Tratar da castidade significa contar a que 169 se arriscam nos futuros infernos de além-vida – os que cometem os ternos pecados de amor. E então o senhor padre, revolvendo o assunto com a sofreguidão com que um avaro revolve o dinheiro, dilata-se, explica, diz as palavras próprias cruamente, descreve, conta anedotas, especializa atitudes, faz certas proibições, marca dias, prescreve abstenções, divide as espécies, aprofunda, exalta-se, clama, – e as mulheres coram. (F: 485) Interessa-me, antes de mais, sublinhar algumas das operações que, segundo Eça, cada um dos missionários visados no artigo leva a cabo no seu sermão: «dilata-se», «explica», «descreve», «especializa atitudes», «divide as espécies», «aprofunda». O que incomoda Eça, aparentemente, não é tanto o assunto da homilia, mas sobretudo o pormenor da abordagem, a multiplicação das incidências, a atitude equívoca de quem desenha tão demoradamente os detalhes do vício que se propõe condenar. Ou, por outras palavras, o que o incomoda é a retórica perversa dos missionários, uma retórica que recorre essencialmente a dispositivos do domínio da amplificatio, com o propósito de excitar de forma dúbia os afetos da assistência feminina. A verdade, porém, é que nenhum destes procedimentos é alheio às técnicas argumentativas que os próprios textos queirosianos d’As Farpas exibem, de resto com uma assinalável frequência. E, por conseguinte, quando nos seus artigos Eça ‘se dilata’, quando ‘divide espécies’, quando procede à declinação dos casos particulares que preenchem uma ideia geral, enfim, quando amplifica a incidência de determinado objeto no seu discurso, intensificando o efeito de presença que ele produz no espírito do leitor, não é sem uma aguda consciência do valor retórico destas técnicas que ele as usa. Observe-se entretanto que, neste passo, mesmo uma operação como «divide as espécies», enquadrável no âmbito de uma racionalidade epistemológica, é arrolada por Eça na categoria dos instrumentos que atuam sobre as instâncias afetivas do auditório. E há nesta aproximação que aqui se insinua do logos ao pathos uma consonância com aquilo que Perelman afirma acerca da duplicidade subjacente ao argumento (quase lógico) da divisão. Ao conceber o todo como a soma das suas partes (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 256), a divisão «[reduz] a realidade a um esquema de tipo lógico ou matemático sobre o qual se raciocina» (Perelman, 1993: 69); por outro lado, porém, ela «pode servir não só como meio de prova, mas como meio para criar presença pela enumeração das partes» (Perelman, 1993: 90). A proposta de divisão de uma entidade nos vários aspetos que a constituem aproximar-se-á de uma matriz lógica na medida em que a enumeração das partes esgote as possibilidades de abordagem do todo. É o que acontece, por exemplo, no artigo sobre o 170 estado da educação em Portugal publicado no número de março de 1872 (F: 402-08), no qual Eça aponta as três razões que explicam o problema do número reduzido de escolas e das baixas taxas de aprovação escolar: «Esta infecundidade – tem a sua origem no aluno, no mestre e na organização da escola. Tem sobretudo a sua causa – no estado. Porque o estado inutiliza o aluno, impossibilita o mestre e despreza a escola. Vai como o general Bum por três caminhos – contra o ABC» (F: 404). Na sequência desta passagem, cada um destes três caminhos é objeto de uma análise que detalha o contributo particular das entidades visadas para o problema enunciado240, e Eça obtém desta estratégia enunciativa um efeito producente: promove a ideia de ter tratado os pontos essenciais da questão de forma abrangente e totalizante. Procedimentos semelhantes encontram-se com alguma frequência nos artigos d’As Farpas. Um exemplo particularmente ilustrativo da matriz quase lógica deste argumento observa-se na farpa XX, na qual Eça tenta compreender as razões que levaram o governo a proibir a circulação de um opúsculo acerca da Comuna. Para isso, procede previamente à identificação das vertentes expositivo-argumentativas em que o opúsculo em causa se podia dividir, analisando depois separadamente cada uma delas: «Três coisas fazia o autor anónimo daquele opúsculo: / Explicava a situação e as ideias dos partidos em França; verberava os srs. Thiers e Jules Favre; defendia alguns atos da comuna e exaltava alguns dos seus homens./ Por qual destes três factos é ele processado?» (F: 124)241. Não encontrando Eça, na abordagem subsequente, em nenhuma dessas vertentes uma justificação consistente para a referida proibição, o seu leitor é naturalmente levado a concluir que a suspensão decretada é insustentável242. No primeiro número d’As Farpas, há um passo que tem algumas afinidades com estes, mas também algumas dissemelhanças. Eça procura, em determinado artigo, fazer o diagnóstico de outro organismo que se encontra doente: não se trata aí da educação, mas do 240 O aluno: pp. 404-5; o mestre: pp. 405-7; a escola: p. 407. 241 A primeira questão é abordada na p. 124, a segunda nas pp. 124-125 e a terceira na p. 125. 242 O uso que neste texto Eça faz do argumento de divisão traduz com assinalável exatidão o exemplo paradigmático proposto por Perelman: «Tomemos o argumento por divisão, no qual se tira uma conclusão sobre o todo depois de se ter raciocinado sobre cada uma das partes. Assim se procurará mostrar que, não tendo o acusado agido, nem por ciúme, nem por ódio, nem por cupidez, não tinha nenhum motivo para matar./ Este raciocínio lembra a divisão de uma superfície em partes: o que não se encontra em nenhuma das partes também não se encontra no espaço subdividido» (Perelman, 1993: 69). Outro exemplo canónico de divisão ocorre num artigo do número de setembro/outubro de 1872: «O adultério é um facto aprovado pela opinião: querem a prova? No adultério entra – o sedutor, para que lhe dêmos este nome clássico, a mulher e o marido. Vejamos como eles mesmos se consideram a si: consciência própria e consciência pública» (F: 551). 171 parlamento. São elencados oito atributos globalmente ausentes dos trabalhos parlamentares – aqueles que, presume-se, garantiriam um funcionamento eficaz deste organismo: «A câmara (tomemos a atual para exemplo) não tem princípios, nem ideias, nem consciência, nem independência, nem interesse pelo país, nem ciência, nem eloquência, nem seriedade» (F: 48). Também neste caso Eça procederá, na sequência desta enumeração, à ilustração de cada um dos aspetos enumerados243, aduzindo razões particulares para sustentar o diagnóstico avançado inicialmente. E, tal como acontece no exemplo antes abordado, a enumeração assume aqui também o papel de índice (no sentido de tábua de matérias) do texto subsequente, isto é, funciona adicionalmente como uma espécie de partitio no plano geral da disposição do artigo – o que acaba por lhe conferir uma aparência de exaustividade. No entanto, enquanto nos exemplos anteriores as partes em que é segmentado o todo apresentam características que tornam natural a divisão proposta (o desenho das fronteiras de cada elemento é nítido e qualquer leitor que proceda à soma das partes obtém como resultado dessa adição o objeto em análise), neste caso o elenco parece decorrer fundamentalmente de uma escolha: por um lado não seria difícil acrescentar algumas competências às que são apresentadas como constitutivas da aptidão parlamentar; por outro lado, não é imediatamente claro o traçado das fronteiras entre algumas das partes propostas. Esta questão tem a sua relevância para a classificação do argumento em causa ou como quase lógico ou como dispositivo colocado ao serviço da produção de ênfase. «No argumento por divisão», observam Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, «as partes devem poder ser enumeradas de uma maneira exaustiva, mas podem ser escolhidas como se quiser, na condição de serem suscetíveis, pela sua adição, de reconstituir um todo dado» (2006: 257). Mas, como depois adiantam os autores do Tratado, nem sempre é fácil garantir que uma divisão proposta é inequivocamente exaustiva, ou que as partes que a constituem não contêm zonas fluidas ou sobrepostas244. Neste caso, enfraquece-se o estatuto quase lógico do argumento, restando essencialmente a sua eficácia enquanto meio de amplificação. Desta forma, a série de qualidades (ausentes) que Eça enumera no artigo sobre a Câmara tem sobretudo o propósito de criar um efeito de presença, obtido pela multiplicação dos itens 243 Princípios e ideias: p. 48; consciência, independência, interesse pelo país e ciência: p. 49; eloquência: pp. 49- 50; seriedade: p. 50. 244 «Se procuramos os motivos de um crime, e nos perguntamos se o assassino agiu por ciúme, por ódio ou por cupidez, não somente não estamos certos de ter esgotado todos os motivos de ação, mas nem sequer estamos certos de sermos capazes de responder sem ambiguidade a cada uma das questões particulares que esse raciocínio levanta. Este último necessita de uma estrutura unívoca e, por assim dizer, espacializada, do real, da qual estariam excluídas as sobreposições, as interações, a fluidez […]» (2006: 258). 172 enumerados. A sua extensão é, por conseguinte, estratégica: o desdobramento de valores de referência reforça a ideia de incompetência do parlamento, já que essa incompetência não tem uma manifestação única, realizando-se antes através de uma constelação de anomalias. Isto não significa que, ao recorrer a este procedimento retórico, Eça não procure promover a ideia de que através dele empreende uma abordagem analítica da realidade. O programa realista que abraça, dada a sua forte informação positivista, assenta na ideia de que qualquer aspeto crítico da orgânica social deverá ser deposto na mesa de anatomia e estudado como se de um corpo físico se tratasse; a divisão promove precisamente um efeito de dimensionação espacial do conceito, no sentido em que ela opera determinados cortes num conglomerado conceptual, separando as peças que, reunidas, o constituem (Perelman, 1993: 69). A divisão poderia, assim, apresentar-se como procedimento básico – procedimento inicial – da anatomia dos problemas do país. E é certo que, quando enumera as diversas faces em que se manifesta a incompetência da câmara dos deputados, quando lista as modalidades do desprezo a que Portugal vota as colónias245, quando elenca as deficiências do exército português246 ou quando discrimina as competências inerentes às funções diplomáticas – e que os nossos diplomatas desconhecem247 –, Eça pretenderá seguramente projetar junto dos seus leitores uma imagem de competência analítica, de conhecimento das vertentes específicas dos problemas abordados. Ora, com efeito, uma enumeração constitui em certa medida a formulação analítica do conjunto que a compreende; ela corresponde ao desdobramento de um paradigma que interrompe a sequência sintagmática do discurso. Em última instância, uma enumeração pode mesmo ser virtualmente desnecessária, no sentido em que é muitas vezes possível 245 «Que o país despreza as colónias; que elas estão abandonadas a uma frouxa iniciativa particular, sem estímulo, sem proteção, sem tranquilidade; que a iniciativa é excelente mas só pode desenvolver-se num país bem policiado; que nas colónias não há garantias de segurança, nem tranquilidade, que não há melhoramentos, nem proteção ao comércio, nem exército, nem higiene, nem instrução; que tudo ali vive na desordem, na desorganização, no desleixo, e numa antiquíssima rotina: e que o único movimento que há é o do estrangeiro que as explora de facto – apesar de nós as possuirmos de direito» (F: 117). 246 «De modo que temos o exército sem espírito militar, sem instrução, sem manobras, sem hábitos de marcha e de acampamento, sem vigor físico, sem fé patriótica, os arsenais sem armas, a artilharia sem peças, os quartéis sem condições, as escriturações sem regularidade, os quadros sem gente, os estados maiores sem talento, os coronéis sem fidelidade, os soldados sem disciplina […]» (F: 559). 247 «Como têm v. ex.as desempenhado as suas missões? Que tratados vantajosos têm alcançado para o nosso país? Que estabelecimentos portugueses têm favorecido lá? Que serviços internacionais têm regularizado? Que relações sólidas, que proteções valiosas têm obtido para a nossa pequenina nação? Que estudos têm feito sobre a organização e instituições desses países? Em que sábios relatórios as têm aconselhado para nosso progresso? Que conhecimento têm dado a esses países das nossas instituições, do nosso comércio, da nossa ciência? Etc.? Etc.? Etc.?» (F: 226). 173 exprimir uma realidade compósita de forma mais económica e com maior grau de certeza de compreender todos os elementos que a constituem. Quando, referindo-se às sistemáticas manifestações de indisciplina militar, Eça afirma que «desde a deserção do soldado até à insurreição do general – tudo se tem passado tranquilamente» (F: 558), prescinde com esta formulação da enumeração do «tudo» que está compreendido entre os dois casos-limite enunciados: a amplitude do problema é neste caso dada pela identificação dos seus polos extremos. Da mesma forma, no passo em que escreve «Diz-se por toda a parte: o país está perdido! Ninguém se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens» (F: 17), opta por desenhar implicitamente, através desta consonância entre o comentário circunstancial da estalagem e a voz dos que mandam no país, um arco que cobre todos os pontos de referência de diferente relevo social que se situam entre um extremo e o outro. Mas estes são casos relativamente raros, e sobretudo são formulações elípticas que coexistem com a enunciação analítica das mesmas realidades. O «tudo» que se vinha passando no domínio da indisciplina é, com efeito, posteriormente objeto de uma discriminação enumerativa («Corpos desorganizados, regimentos insubordinados, desordens nos quartéis, dissolução nos costumes, traições nas fileiras, roubos nos armamentos, desfalques nos ranchos» – F: 559); e também não é difícil encontrar passos em que o espaço virtual que medeia entre os conselhos de ministros e as estalagens é preenchido com instâncias intermédias que partilham uma voz crítica sobre o estado da nação (por exemplo: «O país está desorganizado, pobre, em confusão: esta certeza está na consciência de todos; está nas discussões do parlamento, nos relatórios dos ministros, nas opiniões da imprensa, nas conversações dos cidadãos» – F: 96). Isto é, a tendência de Eça é para regressar à enumeração, para explorar as suas virtudes analíticas, mas sobretudo as suas potencialidades retóricas. Poucos são os artigos queirosianos d’As Farpas em que a enumeração não comparece – e o passo em que Eça condena ao clero o recurso a uma retórica da amplificação assente na reincidência do discurso sobre o tópico em causa (cf. supra: 169) é ele próprio também um caso de enumeração amplificante, isto é, de sucessivas declinações do procedimento retórico visado. A preferência queirosiana por este recurso é notória e compreende-se melhor o seu papel na estratégia argumentativa d’As Farpas quando se observa a forma como ela invade – e chega a substituir – zonas suscetíveis de ser objeto de um tratamento discursivo de natureza analítico-explicativa. Recupere-se, a título de exemplo, a enumeração que elenca as diversas competências das missões diplomáticas a que faço referência acima (cf. n. 247). Esta é 174 precedida por duas outras sequências enumerativas – a de algumas das cidades com representação portuguesa e a dos encargos financeiros que essas missões representam: Se a esses cavalheiros que têm sido embaixadores, ministros, encarregados de negócios em Londres, em Berlim, em Paris, em Madrid, em Bruxelas, em Estocolmo, em S. Petersburgo, em Milão, em Roma, no Rio de Janeiro, em Viena de Áustria, em Washington, com os seus secretários de embaixada, os seus adidos, os seus ordenados, despesas de representação, despesas de expediente, despesas secretas, uma voz impertinente perguntasse: – Como têm v. ex.as desempenhado as suas missões? […] (F: 226) A primeira destas séries parece inicialmente não ter outra justificação senão o efeito retórico que resulta de qualquer enumeração (atualização, prolongamento da impressão, em suma – presença); ela é, no entanto, um índice de multiplicação dos encargos financeiros que preenchem a segunda: cada uma das doze cidades enumeradas implica que lhe seja associada a totalidade da série de encargos que lhe está aposta, convocando assim esta sequência toda a dimensão política e económica do problema em causa. No entanto, Eça prescinde da explicação detalhada deste aspeto através de uma abordagem expositiva, preferindo explorar o efeito que o recurso à acumulação produz sobre a sensibilidade do leitor. Casos como aqueles que abordei ilustram a forma como a enumeração, um recurso transversal nos textos d’As Farpas, participa simultaneamente de uma dimensão analítica e de uma dimensão retórica na estratégia argumentativa queirosiana. Para além de especializar os aspetos particulares de uma questão, ela promove o estabelecimento de articulações implícitas de natureza diversa com o texto envolvente; por outro lado, aquilo que perdura mais fortemente no espírito do leitor, depois de exposto ao seu contacto, é quase sempre acima de tudo a marca deixada pela convocação da presença (esse efeito que «atua de maneira direta sobre a nossa sensibilidade» – Perelman, 1993: 55) do problema abordado – nomeadamente naqueles casos em que o propósito é manifestamente criar no leitor a ideia de que a magnitude desse problema decorre diretamente da extensa declinação dos seus aspetos críticos. 3.5.1. Uma retórica da ênfase O lugar central da enumeração na estratégia argumentativa queirosiana manifesta-se desde logo no facto de uma das primeiras presenças retóricas marcantes no texto inaugural 175 d’As Farpas consistir precisamente numa longa lista dos problemas com que se debate o país. Não nos encontramos neste caso perante uma enumeração em sentido estrito, isto é, uma série cujo arco se desenvolva num período único; estamos, sim, perante uma sequência de períodos curtos, sequência essa que, não obstante, se apresenta indiscutivelmente como um inventário caótico de aspetos críticos: O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua ação fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. (F: 16-7) Eça, no breve parágrafo que antecede este passo, pede ao seu leitor «Aproxima-te um pouco de nós, e vê» – e o que lhe mostra aqui é um amontoado de imagens, ideias e juízos, sem aparente sistema, toscamente enunciados, vertidos numa série de períodos de fôlego curto, irregular, subitamente interrompidos, pautando uma respiração arrítmica. Não é este um excerto de leitura agradável, e contrasta fortemente com o apuro estilístico do parágrafo inicial, no qual pontuam figuras, da simetria ao quiasmo, que conferem sobretudo elegância ao período. Isto é, depois de um brevíssimo momento de sedução, de captatio benevolentiae, de demonstração de uma inequívoca competência no plano da elocutio, Eça propõe ao seu leitor uma experiência não particularmente aprazível, sem qualquer preocupação de fluidez formal, como se o seu propósito fosse sobretudo o de produzir uma acumulação de aspetos críticos capaz de, pela concentração e pela quantidade de exemplos, saturar o espaço discursivo – e, por consequência, saturar igualmente o leitor, subitamente exposto a essa torrente. Não havendo ordem nem sistema que organize a série, é pouco provável que no final deste passo o leitor d’As Farpas retenha o desenho preciso de todos os aspetos que lhe foram mostrados. Perdurarão talvez no seu espírito, como impressão latente, os dois princípios que cruzam o excerto: um princípio de decadência (perdeu, aumenta, abate-se progressivamente, definha, enfraquece, etc.) e um princípio de totalidade (única direção, não há princípio que, ninguém, não há 176 nenhuma, vivemos todos, toda a vida, perfeita, absoluta indiferença de cima abaixo). E, depois de atravessar esta sequência caótica de proposições sobre o estado caótico do país, é muito provável que se verifique na mente do leitor uma transferência da impressão de desconforto e desorganização suscitada pelo plano formal deste passo para a instância que nele é objeto central de atenção, isto é, Portugal. Num escritor em cuja prosa o sentido do ritmo e a exigência formal são porventura as marcas mais notoriamente sensíveis, um passo como este não deixa de ser algo atípico, mesmo que se lhe compreenda a funcionalidade. Este nódulo estilístico singular tem, contudo, uma explicação. Embora Eça explore frequentemente uma estratégia de contraste entre o declínio de Portugal e os progressos da Europa (desse progresso ficando excluídos aqui e ali apenas a Grécia e a Suécia), a ideia de decadência está longe de ser um tópico exclusivamente português248. Na verdade, estas palavras com que Eça praticamente inaugura a sua campanha de denúncia do estado do país n’As Farpas são muito diretamente inspiradas naquelas que Proudhon usa para ilustrar aquilo que ele define como o problema do ceticismo que se instalara na vida espiritual da França sua contemporânea em De la Justice dans la Révolution et dans l’Église249 – e, para além das claras semelhanças no que diz respeito às questões abordadas, à escolha dos tópicos, à sua disposição e formulação, há mesmo passos do texto queirosiano que não se distanciam significativamente da tradução: «Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos» reproduz «nulle solidarité entre les citoyens»; «Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida» retoma com escassas alterações «Pas une institution que l’on respecte, pas un principe qui ne soit nié, 248 Por exemplo, Zola, no prefácio à primeira edição de La Curée, o segundo título da série Les Rougon-Macquart, propõe-se «montrer l’épuisement prématuré d’une race qui a vécu trop vite et qui aboutit à l’homme-femme des sociétés modernes» e oferecer aos seus leitores «une peinture vraie de la débâcle d’une société» (1871: 5-6). 249 «Sous l’action desséchante du doute, et sans que le crime soit peut-être devenu plus fréquent, la vertu plus rare, la moralité française, au for intérieur, est détruite. Il n’y a plus rien qui tienne: la déroute est complète. Nulle pensée de justice, nulle estime de la liberté, nulle solidarité entre les citoyens. Pas une institution que l’on respecte, pas un principe qui ne soit nié, bafoué. Plus d’autorité ni au spirituel ni au temporel: partout les âmes refoulées dans leur moi, sans point d’appui, sans lumière. Nous n’avons plus de quoi jurer ni par quoi jurer; notre serment n’a pas de sens. La suspicion qui frappe les principes s’attachant aux hommes, on ne croit plus à l’intégrité de la justice, à l’honnêteté du pouvoir. Avec le sens moral, l’instinct de conservation lui-même paraît éteint. La direction générale livrée à l’empirisme; une aristocratie de bourse se ruant, en haine des partageux, sur la fortune publique: une classe moyenne qui se meurt de poltronnerie et de bêtise; une plèbe qui s’affaisse dans l’indigence et les mauvais conseils; la femme enfiévrée de luxe et de luxure, la jeunesse impudique, l’enfance vieillotte, le sacerdoce, enfin, déshonoré par le scandale et les vengeances, n’ayant plus foi en lui- même, et troublant à peine de ses dogmes mort-nés le silence de l’opinion: tel est le profil de notre siècle» (1858: 3-4). 177 bafoué»; «Ninguém crê na honestidade dos homens públicos» reconhece-se em «on ne croit plus […] à l’honnêteté du pouvoir», etc.250 O passo em questão, n’As Farpas, preenche o terceiro parágrafo do número inaugural; em De la Justice, ocorre na terceira página do prólogo: em qualquer dos casos, e sobretudo no da publicação portuguesa, trata-se de um lugar inicial do texto que o comporta – e, por conseguinte, de um lugar fundamental para a definição dos contornos da relação que esse texto estabelecerá com o seu leitor. Na abertura do terceiro capítulo do Tratado de Argumentação, Perelman e Olbrechts-Tyteca, retomando a noção de presença anteriormente abordada, sublinham a importância de que se reveste, numa estratégia argumentativa, a forma como se apresentam as premissas, mesmo antes de a argumentação propriamente dita ter início: «Antes mesmo de argumentar a partir de certas premissas, é essencial que o conteúdo destas se destaque sobre o fundo indiferenciado dos elementos de acordo disponíveis: essa escolha de premissas confunde-se com a sua apresentação. Uma apresentação eficaz, que impressiona a consciência dos auditores, é essencial» (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 159). Eça opta de início por impressionar a consciência dos seus leitores submetendo-a a uma prolongada descarga de imagens críticas do país e, apesar de neste caso ser mais do que provável a influência de Proudhon, o recurso à enumeração como dispositivo gerador de presença é recorrente nos textos que escreve para As Farpas. Uma longa sequência enumerativa como aquela que serve de pórtico ao retrato do país que Eça traça no prólogo do primeiro número é suscetível de desencadear uma série de impressões que agem de diversas formas sobre o espírito do leitor. Em primeiro lugar, ela promove a ideia de que os exemplos elencados se podem prolongar indefinidamente. O extremo dessa acumulação virtualmente ilimitada de exemplos lê-se no artigo em que são apontadas as deficiências da Câmara dos deputados. A certo ponto, Eça dispensa-se de ilustrar os modos como nela se manifestam as distorções da justiça: «Quem ignora os exemplos? A enumeração deles fatigaria Homero» (F: 48). Aqui, a hipérbole inscrita na impossibilidade de enumerar é o caso-limite para que remetem as mais extensas enumerações queirosianas. De resto, o princípio da acumulação como argumento subjaz à própria 250 Não me parece que haja grandes margens para dúvidas quanto ao facto de Eça escrever estas páginas iniciais do prólogo d’As Farpas com o primeiro tomo de De la Justice aberto ao lado. Já fora dos limites da enumeração transcrita, mas decorridos apenas dois parágrafos, escreve Eça: «Não é uma existência, é uma expiação» (F: 10); em Proudhon, lê-se: «Est-ce là une existence? Ne dirait-on pas plutôt une expiation?» (1958: 4). O mal-estar que Eça identifica em diversos sectores do país traduz afinal uma visão em parte importada do diagnóstico crítico daquela sociedade que a sua geração tem como modelo de sofisticação e progresso. 178 natureza da publicação, visto que As Farpas podem ser lidas em boa parte como uma longa lista de casos que ilustram um diagnóstico ele próprio formulado em primeira instância sob a forma de lista. Assim, a extensão da série de zonas críticas que encabeça o texto de abertura parece ter plausivelmente como limite o critério único da fadiga – a do texto, a do autor, a do leitor –, mas podemos encontrar em farpas posteriores diversas séries suscetíveis de ser lidas como o prolongamento da inicial, momentos em que Eça recupera a listagem de focos críticos da realidade do país, apontando os múltiplos ângulos da decadência nacional com que pretende continuar a ferir a consciência de quem o lê. Quando, no artigo que dedica ao discurso da coroa, volta a reduzir o país a um elenco de deficiências251, quando no número de outubro de 1871 propõe que não seja permitido aos políticos espanhóis ver o estado da política portuguesa, cujas fraquezas enumera252, ou quando compara depreciativamente Portugal à Grécia numa série de aspetos revisitados253, o que Eça propõe ao leitor é uma espécie de regresso ao catálogo de problemas da farpa inaugural. Há ainda uma outra consequência que me parece estar compreendida no complexo jogo de efeitos que resultam da utilização deste dispositivo. Uma enumeração como aquela que praticamente abre As Farpas dá por um lado a sensação de que o foco da crítica se espraia por um vasto elenco de aspetos da vida nacional, e, paradoxalmente, fomenta também a impressão de que essa multiplicidade se dilui na monotonia do defeito, na uniformidade do erro que caso após caso é assinalado – a enumeração promove a um tempo a variação e a repetição, e a sua eficácia enquanto instrumento estratégico capaz de criar presença assenta em boa parte nesta propriedade dúplice. Cada elemento que se adiciona a uma série enumerativa é o pretexto renovado para reiterar a ideia, o princípio, o valor, o juízo que se pretende realçar, mas superando as limitações da repetição estrita. 251 «[…] finanças em ruína; exército indisciplinado; marinha nula; colónias exploradas pelo estrangeiro; a indústria entorpecida; clero ignorante e imoral; ensino caótico; vida municipal extinta; funcionalismo progredindo; pensamento emudecido; carácter público corrompido; serviços públicos desorganizados; leis em confusão; agiotagem em triunfo; proletariado em miséria; etc., etc., etc.» (F: 97). 252 «Imaginemos que esses homens políticos, esses oradores, esses parlamentares […] veem, piedoso Deus! as nossas câmaras, a nulidade do pensamento, a baixa trivialidade da palavra, a estreiteza de interesses, as personalidades de regedores que se discutem, o abandono de todo o decoro, os gritos e os insultos e os desmentidos, a compostura plebeia e grossa, as débeis condescendências dos caracteres, o offenbáquico dos assuntos, a ciência que lá falta, a intriga que abunda, e o pundonor que abdica! […] Imaginemos que esses estadistas, conversam com esses que são entre nós os estadistas – e veem, vergonha eterna! que a sua conversação é espessa e a sua crítica romba, que ignoram a administração, a economia, a história, as questões do tempo, a geografia, toda a ideia, toda a data, todo o facto […]» (F: 234). 253 «[…] mesma pobreza, mesma indignidade política, mesmo abaixamento dos caracteres, mesma ladroagem pública, mesma agiotagem, mesma decadência de espírito, mesma administração grotesca de desleixo e de confusão» (F: 312). 179 É por isso que em diversos passos destes textos, como já referi, a enumeração corresponde a uma operação analítica de desdobramento de um paradigma: trata-se de ilustrar as inúmeras faces – e digo inúmeras porque a amplitude e a frequência destes momentos apontam tacitamente para a natureza aberta de muitas das séries – através das quais um dado aspeto crítico se manifesta. Muitas vezes, esse carácter paradigmático da enumeração é atestado através de um «tudo» ou um «todos», um «nada» ou um «ninguém», que sublinham o cunho ilustrativo da série e o seu alcance totalizante. Por exemplo, no artigo em que aponta as precárias condições oferecidas a quem viaja de comboio, Eça faz um copioso inventário das deficiências dos caminhos-de-ferro portugueses, pontuado por diversas ocorrências do indefinido «tudo», que reiteradamente estende a amplitude da enumeração254. Mas, de entre os vários passos enquadráveis neste grupo255, talvez o mais elaborado seja aquele em que Eça descreve o torpor que se abateu sobre certos círculos administrativos do interior – quer pela disposição das séries enumerativas em dois níveis encaixados (uma série primária, de leitura vertical, a partir de cujos elementos se ramificam séries secundárias), quer pelo facto de as séries secundárias terem a função de preencher o vazio que a série primária enuncia, quer ainda por no fim se projetar o alcance global daquilo que se enumerou parcialmente: Nenhumas obras: as vielas descalçam-se, velhos muros abatem, os enxurros empoçam. Nenhuma higiene: a imundície apod[renta] em sossego, os géneros deteriorados têm consumo, os maus cheiros fazem uma atmosfera, as ruas estão tapetadas de destroços, os porcos fossam às portas, a praça é uma capoeira pública. Nenhuma polícia; as tavernas ecoam de desordens, o jogo é permitido, os bêbados cantam pelas ruas. A administração está ociosa, a camara espectadora, a regedoria barbeia os fregueses. Não se cria nada, nem se conserva alguma coisa. (F: 343) Neste caso, bem como em alguns daqueles a que já me referi, os pontos críticos que constituem o corpo da enumeração manifestam-se sob a forma de uma série de faltas, de carências. Com efeito, as enumerações queirosianas d’As Farpas são muitas vezes marcadas 254 «As sleepers podres, os railways gastos e desaparafusados, os túneis mal seguros, as pontes rachadas, os aterros que tendem a desabar, os desaterros que tendem a esboroar-se, as máquinas cansadas, o serviço desleixado, as refeições envenenadas, tudo, tudo, até as demoras, as irregularidades, os atrasos, a confusão – tudo converge para o mesmo legítimo fim – comover o viajante, dar-lhe sensações, interessá-lo!» (F: 169). 255 «Depois [as mulheres portuguesas] têm medo, um medo horrível, de tudo: de ladrões, de trovoada, de fantasmas, da morte, dos corredores escuros, dos castigos de Deus, dos soldados e d[a]s máscaras.» (F: 418); «E o amor, o casamento, a virgindade, a maternidade, o pudor, o adultério, a mulher, saias e consciências, tudo foi sacudido […]» (F: 542); «[…] ninguém crê em ti, ó Carta Constitucional, cansada musa da burguesia! Ninguém crê em ti. Os ministros que te fazem cumprir, os jornalistas que te citam, os jurisconsultos que te comentam, os professores que te ensinam, as autoridades que te realizam, os padres que falam em ti à missa conventual, aqueles mesmos cuja única profissão era crer em ti, aqueles que te amaram, e os outros que te violaram, todos te renegam […]» (F: 19), etc. 180 por esse sentido recorrente da falha, da lacuna, da deficiência256. Em diversos passos enumerativos, e nomeadamente no caso das sequências mais extensas, a preocupação de Eça é vincar a ideia de que o país se tornou uma espécie de cenário de opereta257, encontrando-se as suas principais instituições destituídas de qualquer função útil e viva, reduzidas à condição de elementos cenográficos meramente decorativos. A farpa inicial é, também neste caso, o lugar onde ocorrem pela primeira vez algumas destas séries: quando fala «dos ministérios que não governam, dos oradores que não escrevem, e dos intrigantes que não alcançam» (F: 20); quando, a propósito da Câmara, refere «a sua incapacidade orgânica para discutir, para pensar, para criar, para dirigir, para resolver a questão mais rudimentar de administração», e depois prossegue dizendo que dela «[n]ão sai uma reforma, uma lei, um princípio, um período eloquente, um dito ao menos» (F: 22); quando garante que «[o] ministério, o poder executivo, […] [n]ão governa, não tem ideia, não tem sistema; nada reforma, nada estabelece» (F: 22), ou que o romance «[n]ada estuda, nada explica; não pinta caracteres, não desenha temperamentos, não analisa paixões» (F: 26), Eça ensaia sucessivas incursões por alguns aspetos da vida nacional desdobrando formas diversas através das quais neles se manifesta invariavelmente um signo de ausência. Já me referi a alguns dos passos em que este processo é posteriormente retomado (e amplificado no que concerne à extensão da lista): a enumeração das modalidades da incompetência da câmara dos deputados, o elenco dos aspetos negligenciados nas colónias pela metrópole, o inventário das lacunas do exército, a discriminação das funções que os diplomatas portugueses ignoram ser as suas – todos estes casos exploram uma retórica do não; todos eles investem na reiteração das competências e dos atributos que não se encontram nas instâncias abordadas e sem os quais estas ficam reduzidas a simulacros das instituições que representam. Outros passos poderiam juntar-se a estes: veja-se, por exemplo, a forma como Eça insere a escassez da roupa que as cadeias dão aos presos condenados ao 256 Naturalmente, as ideias de totalidade (da presença) e de ausência (total) estão relacionadas de modo estreito – e esta relação é notória na formulação queirosiana «[…] a câmara tem a falta absoluta daquelas qualidades, e a abundância dos defeitos opostos» (F: 48). Assim, o princípio de totalidade que atravessa a enumeração inaugural do primeiro texto d’As Farpas é apenas o negativo do diagnóstico das lacunas que a partir daí se empreende. Da mesma forma, no passo em que Eça escreve «Parece que, segundo ele [Pinheiro Chagas], nós temos todos os bons livros, toda a perfeição de leis, toda a abundância de riquezas, toda a virtude pública, toda a elevação de carácter, toda a beleza de formas» (F: 339), o empolamento das categorias elencadas serve apenas para amplificar a respetiva ressonância oca quando o texto revela aquilo que, segundo Pinheiro Chagas, as preenche. 257 A analogia é proposta pelo próprio texto: «Os lustres estão acesos; o país é o e[s]pectador distraído: nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e acha-os todos impuros e nulos; não se interessa pelas cenas e acha-as todas inúteis e imorais; não se interessa pela decoração e julga-a ridícula. Só às vezes, no meio do seu tédio, se lembra que para poder ver teve que pagar no bilheteiro!» (F: 22). 181 degredo num quadro genérico de faltas258, como nega sucessivos méritos à ação política e administrativa do Estado259, como enumera as infraestruturas militares inexistentes260, como descreve o Arsenal enquanto instituição destituída de tudo o que deveria caracterizar uma indústria de construção naval261, etc. Enumerar, nestes textos, é então um procedimento retórico que consiste acima de tudo na produção de sucessivos elencos de casos que ilustram um determinado juízo. Não se trata propriamente de aduzir provas, mas sobretudo de expor imagens parcelares que preenchem e confirmam uma dada proposição genérica, operando no espírito do leitor por acumulação, e porventura criando junto deste a ideia de que o texto circula de modo eficaz entre a abordagem do sistema e a das partes que o constituem. Mas, insisto, o que está em causa é sobretudo a multiplicação dos casos, dos exemplos, das vertentes de um dado problema. E isso é particularmente visível nos casos em que Eça opera a segmentação de uma entidade à partida una – como uma pessoa – em frações parciais. Ao decompor o Barão do Rio Zêzere numa série de epítetos que traduzem os seus diversos estatutos («militar», «legislador», «homem de bem», etc. – F: 106), ao proceder da mesma forma com Napoleão III, desdobrando a figura que liderou o Segundo Império numa coleção de ‘subidentidades’ representativas da sua ação política («o assassino de 2 de dezembro», «o deportador para Caiena e para Lambessa», «o destruidor da riqueza da França», «o comedor das substituições militares», «o farceur, que sacode a cinza do seu cigarro histórico sobre o peito dilacerado da história» – F: 178), Eça amplifica a presença de várias instâncias, multiplicando-as pelo número de incidências da enumeração: as modalidades do erro dos visados, os níveis da respetiva repercussão, a duração e a intensidade da sua própria abordagem crítica – e por todas estas vias aprofunda a inscrição da vituperatio na consciência do leitor que pretende persuadir. 258 «De entre tantas faltas das cadeias – a falta de espaço, a falta de ar, a falta de pessoal, a falta de segurança, a falta de asseio, a falta de alimento, a falta de moral, a falta de higiene, queremos destacar, como um diamante de um colar – a falta de roupa» (F: 497). 259 «O discurso da coroa tem de dizer alguma coisa ao país: mas o quê? factos da vida política? da ação civilizadora? do pensamento público? Como? se não se fez nada, não se civilizou nada, não se pensou nada?» (F: 95). 260 «Onde estão as nossas praças fortes? A nossa artilharia? Os nossos arsenais? Os nossos campos entrincheirados? As nossas fábricas de armamentos para um caso de perigo? Os nossos fortes? Os nossos caminhos estratégicos? – Nada temos, a não ser o bom senso fechado, a fronteira aberta, e umas peças de artilharia a que deu fogo Camões – o que é poético – mas frágil!» (F: 110). 261 «Sabia-se que o arsenal é uma instituição verdadeiramente informe: nem oficinas, nem direção, nem instrumentos, nem engenheiros, nem trabalho, nem organização» (F: 118). 182 Assim, a versatilidade da enumeração permite-lhe usufruir de uma condição até certo ponto ambígua, dadas as suas valências analíticas e as suas propriedades retóricas. Num dos extremos, ela pretende reclamar um estatuto próximo dos dispositivos quase lógicos, nomeadamente quando está relacionada com a divisão de um todo nas partes que o constituem com o propósito de demonstrar que «o que não se encontra em nenhuma das partes também não se encontra no espaço subdividido» (Perelman, 1993: 69), como é o caso do artigo em que Eça aborda o folheto sobre a Comuna; do outro lado, porém, avolumam-se as características claramente retóricas das séries amplificantes, que pretendem, pelo contrário, desdobrar até à exaustão os exemplos em que se manifesta determinado caso (mesmo que essa manifestação se traduza numa falha, é sempre a presença de tal falha que está em causa). E, dado o desequilíbrio destas proporções, é incontestável a sua vocação primordial enquanto mecanismo capaz de produzir sobretudo ênfase. 3.6. A presença perelmaniana: confluências históricas A relevância que a noção de presença assume na teoria da argumentação perelmaniana é uma das mais interessantes manifestações da rutura que as teses do Tratado estabelecem com o paradigma da racionalidade cartesiana. A presença consiste na propriedade que um dado elemento tem de preencher o campo da consciência do indivíduo perante o qual se apresenta, e Perelman e Olbrechts-Tyteca associam-na primariamente a um fenómeno do domínio da perceção: a presença de um dado elemento na esfera percetiva faz com que este se invista de uma importância superior àquela de que se revestem os elementos ausentes dessa esfera, mesmo que se se saiba da sua existência. Os autores do Tratado começam por ilustrar o efeito de presença com uma narrativa de Mêncio, que conta que um rei, depois de ter visto um boi destinado a ser sacrificado, sente piedade dele e ordena a sua troca por um carneiro, confessando depois que a única razão para proceder assim foi ter visto o boi mas não ter visto o carneiro. Isto é, a presença do boi destitui o carneiro da posse de estatuto idêntico, fazendo de dois seres afins (e sobre cujo destino se poderia racionalmente invocar a regra da justiça) duas entidades distintas. Quando 183 um objeto, uma imagem, um juízo, se torna presente à consciência, o seu grau de realidade reforça-se na mesma medida em que se reduz o grau de realidade dos objetos, das imagens, dos juízos alternativos. Assim, uma das virtudes incontornáveis de uma argumentação eficaz assenta na capacidade que o discurso demonstra de criar ou reforçar a presença dos aspetos estratégicos da sua linha argumentativa. Este lugar fundamental que a presença ocupa no âmbito de uma teoria da racionalidade argumentativa – e que o Tratado reiteradamente sublinha262 – é não obstante um lugar algo desconfortável no plano epistemológico, porque é em boa parte nela que se cruzam razão e sensibilidade. Sendo absolutamente irrelevante no domínio da demonstração lógica, que opera num sistema isolado e exato, a presença é inerente a todo o exercício argumentativo, na medida em que aquilo sobre que se argumenta se encontra necessariamente inscrito numa complexa rede de dados cujas relações são confusas e que é sempre preciso selecionar, hierarquizar e organizar. Louise Karon, num dos primeiros artigos que a crítica consagrou a esta noção perelmaniana, observa justamente que a realidade não é uma construção menos hipotética do que o conceito de auditório universal, e que é através da presença que essa construção da realidade é operada: «Presence is a means by which reality is constructed» (1976: 97). No mesmo artigo, Karon assinala igualmente o estatuto ambíguo da noção de presença, que introduz o princípio da relevância da imaginação e das emoções numa teoria eminentemente racional263. No ponto 3.5., assinalei já a abertura que o Tratado manifesta relativamente à possibilidade de um determinado recurso participar simultaneamente dos planos lógico e afetivo do discurso argumentativo. As fronteiras entre estes dois domínios apresentam, de facto, mais zonas cinzentas do que se poderia supor, e o conceito de presença perelmaniano, que procurarei sumariamente enquadrar na tradição secular da qual ele recebe um importante legado, parece-me poder ajudar a compreender os processos através dos quais a componente argumentativa dos textos d’As Farpas é muitas vezes tingida por uma dimensão afetiva. 262 «[A presença] é um fator essencial da argumentação» (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 130); «A noção de presença, de que nos servimos aqui, e que pensamos ser de importância capital para a técnica da argumentação […]» (2006: 133); «Já tivemos ocasião de assinalar […] o papel eminente que se deve atribuir, na argumentação, à presença […]» (2006: 159). 263 «Presence seems to be nothing more than a psychological concept, and one wonders why it should have a prominent place in a quite “rational” rhetoric. […] Although it differs from notions of presence appearing in eighteenth-century rhetorics, its strongest agents remain the imagination and the emotions» (1976: 97). 184 Perelman e Olbrechts-Tyteca abordam a noção de presença numa perspetiva assumidamente técnica e não «filosoficamente elaborada» (2006: 133), investindo acima de tudo na identificação das técnicas e dos dispositivos suscetíveis de a produzir. O recurso à repetição como estratégia para acentuar um dado ponto264, a escolha do termo concreto e específico em detrimento do abstrato e genérico265, a opção pelo uso do presente do indicativo266 ou o emprego de certos deíticos267 são alguns dos procedimentos técnicos abordados no Tratado, em articulação com as observações através das quais a tradição retórica contribuiu para a compreensão do efeito resultante de cada um deles. No que diz respeito às figuras propriamente ditas, aquelas que os autores associam à presença são sobretudo de dois tipos: as que promovem a presentificação do objeto representado (sermocinatio268, hipotipose, enálage de tempo) e aquelas cujo funcionamento assenta na reiteração (conduplicatio, congérie, sinonímia, metábole, etc.). Esta série poderia, no entanto, de uma forma geral, ser alargada a toda a categoria das figuras de adição (figurae per adiectionem – cf. Lausberg, 1982: 165-197), englobando esta quer as figuras de repetição (epanalepse, anadiplose, concatenação, epífora, símploce, etc.), quer as figuras de acumulação (essencialmente enumeração e distribuição). A recuperação que o Tratado faz de todo este património da retórica antiga indicia as raízes primitivas do conceito de presença: a ideia de que o discurso age mais eficazmente sobre o auditório quando nele se representam os objetos reforçando a sua presença remonta, naturalmente, à teorização retórica clássica. Aristóteles refere-se à virtude que o discurso tem de fazer «com que o objeto salte para ‘diante dos olhos’» (Retórica, 1410b), o que se produzirá recorrendo essencialmente a metáforas investidas de ação, isto é energeia. Mas o conceito que a teorização retórica guardará como uma das mais relevantes propriedades da expressão, e desdobrará em várias designações, é o de enargeia269, a representação vívida e precisa de um objeto que produz a sensação de que este se encontra presente. É o termo que Dionísio de 264 «A repetição constitui a técnica mais simples para criar essa presença» (2006: 162). 265 «O termo concreto aumenta a presença» (2006: 164). 266 «O presente tem essa outra propriedade de dar mais facilmente o que chamamos “sentimento de presença”» (2006: 178). 267 «O emprego inusitado do demonstrativo permite criar um efeito de presença muito vivo» (2006: 181). 268 Seguramente por lapso, a edição portuguesa grafa «sermotinatio» (2006: 196). 269 Sobre a distinção dos dois termos, cf. Zanker, 1981: 307, n. 40. 185 Halicarnasso, no estudo que dedica a Lísias, usa para destacar a capacidade que o seu verbo tinha de «tornar visíveis os objetos»270. Visto que a exposição à realidade exerce sobre as emoções um efeito mais poderoso do que o mero contacto com a sua representação discursiva, determina a retórica clássica que o orador deverá esforçar-se por estreitar este hiato. Quintiliano aborda a questão no livro VI da sua Intitutio Oratoria: o processo passa por aquilo a que os gregos chamam phantasia, «whereby things absent are presented to our imagination with such extreme vividness that they seem actually to be before our eyes» (6.2.29). Assim, tratando-se de lastimar o assassínio de um homem, haverá que imaginar e representar com detalhe todos os transes da sua morte271 – e, se essa representação produzir uma impressão semelhante à que produziria a própria realidade, então ela estará investida de enargeia (ou ilustratio, ou evidentia): «From such impressions arises that  [enargeia] which Cicero calls illumination [ilustratio] and actuality [evidentia], which makes us seem not so much to narrate as to exhibit the actual scene, while our emotions will be no less actively stirred than if we were present at the actual occurrence» (6.2.32). São muitas as declinações do nome desta propriedade da expressão: depois de lhe chamar enargeia, ilustratio e evidentia, Quintiliano usa também, no livro VIII, o termo repraesentatio272, e mais tarde, quando retoma a questão no livro IX, acrescenta à lista a designação sub oculos subiectio (atribuída a Cícero), e ainda hipotipose273. A Rhetorica ad 270 «De plus, la diction de Lysias est pittoresque: cette qualité du style consiste à rendre les objets visibles; elle a sa source dans le talent de saisir tout ce qui se rattache à un objet. Il n’est pas d’homme qui ait l’esprit assez mal fait, ou qui soit assez difficile ou assez inepte pour ne pas croire, en lisant Lysias, qu’il a sous les yeux les objets dont parle l’orateur, qu’il s’entretient avec tous les personnages, qu’il les voit près de lui» (1826: 32). 271 «I am complaining that a man has been murdered. Shall I not bring before my eyes all the circumstances which it is reasonable to imagine must have occurred in such a connexion? Shall I not see the assassin burst suddenly from his hiding-place, the victim tremble, cry for help, beg for mercy, or turn to run? Shall I not see the fatal blow delivered and the stricken body fall? Will not the blood, the deathly pallor, the groan of agony, the death-rattle, be indelibly impressed upon my mind?» (6.2.31). 272 «Consequently we must place among ornaments that  which I mentioned in the rules which I laid down for the statement of facts, because vivid illustration, or, as some prefer to call it, representation [repraesentatio], is something more than mere clearness, since the latter merely lets itself be seen, whereas the former thrusts itself upon our notice» (8.3.61). 273 «As for what Cicero calls “putting something before our eyes [sub oculos subiectio],” this happens when, instead of stating that an event took place, we show how it took place, and that not as a whole, but in detail. In the last book I classified this under evidentia. Celsus actually calls the Figure evidentia, but others prefer hypotyposis, that is, the expression in words of a given situation in such a way that it seems to be a matter of seeing rather than of hearing» (9.2.40; cf. tb. 4.2.63). Cícero, no De Oratore, aborda este aspeto da composição no livro III: «For a great impression is made by dwelling on a single point, and also by clear explanation and almost visual presentation of events as if practically going on […]» (3.202). 186 Herennium fala em demonstratio274, e termos como ekphrasis ou diatyposis concorrem com os anteriores para designar o mesmo fenómeno (cf. Vasaly, 1993: 90). Em causa está sempre a associação desta figura a um efeito de natureza visualista, bem como os processos de obter esse efeito, que passam em grande medida pela acumulação de pormenores. Em De Elocutione, Demétrio faz depender a enargeia deste procedimento275, mas é de novo em Quintiliano que encontramos um dos passos que melhor concentram e exemplificam a relação entre o desdobramento de pormenores e a eficácia do discurso no que diz respeito a excitar as emoções do auditório. Quando, no livro VIII da Intitutio Oratoria, trata dos meios de representar de forma vívida e impressiva uma dada situação, Quintiliano propõe como exemplo as opções que se colocam em termos de abordagem discursiva ao caso paradigmático da cidade invadida. A formulação «a cidade foi invadida» contém virtualmente todas as atrocidades, todas as desgraças, todos os episódios particulares de dor associados à tomada de uma cidade, mas só expandindo tudo o que está inscrito na palavra «invadida», só desdobrando esse conceito nas imagens concretas que o preenchem (as casas e os templos em chamas, a confusão de gritos, as pilhagens, os últimos abraços daqueles que temem não voltar a ver-se, a mãe que se debate porque a separam do filho, etc.), se poderá tocar verdadeiramente o auditório. Desta forma, conclui Quintiliano, «it is less effective to tell the whole news at once than to recount it detail by detail»276. Nas suas várias designações alternativas, esta noção de enargeia teve, tal como os procedimentos técnicos que lhe estão associados, uma repercussão persistente na teorização poética e retórica subsequente, e que pode ser rastreada a partir da Renascença em obras como as de Jacopo Mazzoni, Erasmo de Roterdão, George Puttenham, Philip Sidney ou 274 «It is Ocular Demonstration [demonstratio] when an event is so described in words that the business seems to be enacted and the subject to pass vividly before our eyes» (4.55.68). 275 «We shall treat first of vividness [enargeia], which arises from an exact narration overlooking no detail and cutting out nothing» (1902: §209). 276 «For the mere statement that the town was stormed, while no doubt it embraces all that such a calamity involves, has all the curtness of a dispatch, and fails to penetrate to the emotions of the hearer. But if we expand all that the one word “stormed” includes, we shall see the flames pouring from house and temple, and hear the crash of falling roofs and one confused clamour blent of many cries: we shall behold some in doubt whither to fly, others clinging to their nearest and dearest in one last embrace, while the wailing of women and children and the laments of old men that the cruelty of fate should have spared them to see that day will strike upon our ears. Then will come the pillage of treasure sacred and profane, the hurrying to and fro of the plunderers as they carry off their booty or return to seek for more, the prisoners driven each before his own inhuman captor, the mother struggling to keep her child, and the victors fighting over the richest of the spoil. For though, as I have already said, the sack of a city includes all these things, it is less effective to tell the whole news at once than to recount it detail by detail» (8.3.67-69). 187 Emanuele Tesauro277. O século XVIII acolhe com especial ênfase a ideia de que a eficácia do discurso passa em grande medida pela capacidade de emular a realidade (cf., e. g., Bormann, 1977). Uma das mais interessantes recuperações do legado deste princípio, e seguramente das que melhor estabelecem a ponte com a modernidade, encontra-se no trabalho do filósofo escocês George Campbell. Em The Philosophy of Rhetoric, George Campbell aborda detalhadamente as diversas vertentes genéricas do auditório que o orador deve conseguir mobilizar para ser bem- sucedido: entendimento, imaginação, memória e paixões. Nas secções que dedica à imaginação e à memória, Campbell coloca a tónica no conceito de vivacidade, fortemente ligado à ideia de semelhança (resemblance) com a realidade278. Enquanto qualidade da expressão, a vivacidade resulta de aspetos como a primazia do que é da ordem do sensível sobre o que é da ordem do inteligível, a representação das coisas inanimadas como animadas279 ou a opção pelo que é específico em detrimento do que é genérico (quer no que diz respeito à escolha de termos, quer no que concerne ao uso de tropos, que deverão, por exemplo, operar a substituição do género pela espécie, da espécie pelo indivíduo, do todo pela parte, etc.). Mas Campbell demora-se sobretudo na análise dos processos de estimular as paixões, abordando um conjunto de circunstâncias que permitem ao orador agir sobre as instâncias afetivas de quem o ouve: trata-se de destacar aspetos como a probabilidade ou a relevância dos factos em apreço; de reforçar a ideia de proximidade, quer no tempo, quer no espaço, entre o auditório e a matéria sobre que incide o discurso; de promover no auditório uma sensação de familiaridade com os atores de quem fala, bem como de o envolver diretamente nas consequências do que está em causa (1849: 104). Fortemente influenciado pelas teses de David Hume, nomeadamente pelo seu postulado de que as impressões constituem a matriz das ideias, Campbell concebe o trabalho retórico em grande parte como a atualização de um conjunto de princípios, de técnicas e de dispositivos capazes de investir as ideias de uma força equivalente à que têm as impressões sensoriais, com o objetivo de potenciar a sua capacidade de se inscreverem no espírito do auditório. Se Perelman e Olbrechts-Tyteca referem que «uma das preocupações do orador 277 Para seguir a pista desta noção, cf. Krieger, 1992 e Plett, 2012. 278 «Nothing contributes more to vivacity than striking resemblances in the imagery» (1849: 95); «there is not so great a difference between argument and illustration» (1849: 96); «By vivacity of expression, resemblance is attained, as far as language can contribute to the attainment» (1849: 307). 279 «[…] when life, perception, activity, design, passion, or any property of sentient beings, is by means of the trope attributed to things inanimate» (1849: 327). 188 será tornar presente, apenas pela magia do seu verbo, o que está efetivamente ausente, e que ele considera importante para a sua argumentação» (2006: 131), Campbell atribui à eloquência a capacidade de excitar a paixão por um objeto ausente, que se imporá à sensibilidade do auditor ou do leitor como se estivesse perante ele: Thus we have seen in what manner passion to an absent object may be excited by eloquence, which, by enlivening and invigorating the ideas of imagination, makes them resemble the impressions of sense and the traces of memory, and in this respect hath an effect on the mind similar to that produced by a telescope on the sight; things remote are brought near, things obscure rendered conspicuous. (1849: 116) Como observa Arthur E. Walzer, George Campbell parece sugerir que o papel da eloquência, mais do que aduzir razões para sustentar uma tese, consiste sobretudo em redimensionar o objeto do discurso no momento da sua apresentação. Centrando-se o orador no modo de representar a matéria de forma a que esta seja percebida pelo auditório com dimensão e proximidade reforçadas, a força persuasiva do discurso acaba por se concentrar sobretudo no efeito que este incremento da presença da matéria exerce junto daqueles que lhe estão expostos: «His comparison of eloquence to a telescope is revealing: it suggests that eloquence essentially functions by changing proportions, not by proving: it makes a situation seem more or less importante, closer or farther from us» (Walzer, 2003: 84). Em O Império Retórico, Perelman convoca precisamente essa tendência histórica da presença para, enquanto «arte da ênfase», expandir os limites da sua ação até aos restantes domínios da retórica: «A ligação que assim se estabelece entre a presença de certos elementos na consciência e a importância que se lhes confere permitiu que se visse a retórica apenas como a arte de criar esta presença graças às técnicas de apresentação» (1993: 56). No Tratado, Perelman e Olbrechts-Tyteca têm, neste aspeto, o cuidado de integrar o papel da presença num modelo de argumentação de matriz racional280, mas a presença representa inquestionavelmente nesta obra a porta de entrada de uma componente afetiva na engrenagem argumentativa: não só a generalidade dos aspetos técnicos capazes de produzir presença a que o Tratado se refere é colhida na tradição secular onde o conceito perelmaniano mergulha as suas raízes, como os próprios autores não deixam de reconhecer que «[e]moção 280 Veja-se, por exemplo, um passo como o seguinte: «Esse esforço visa, na medida do possível, fazer com que essa presença ocupe todo o campo da consciência e isolá-la, por assim dizer, do todo mental do auditor. E isso é capital. Se pudemos verificar que um silogismo bem construído, e aceite pelo auditor, não determina necessariamente este último a agir em conformidade com as conclusões, é porque as premissas explicitadas durante a demonstração puderam encontrar obstáculos uma vez entradas no circuito mental daquele a quem deveriam persuadir» (2006: 132). 189 e presença estão intimamente ligadas» (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 164, n. 13). Nas próximas secções, procurarei compreender a forma como se processa a exploração de uma vertente dirigida aos afetos nos textos queirosianos d’As Farpas, recorrendo aos contributos inscritos no arco conceptual que tem início na noção clássica de enargeia, passa pela vivacidade de Campbell e culmina na presença de Perelman. 3.7. Espaço afetivo e adesão Como assinalei anteriormente, George Campbell refere-se aos efeitos persuasivos que advêm do reforço dos laços de proximidade temporal e espacial entre o auditório e a matéria do discurso. Para Campbell, na verdade, a proximidade espacial sobreleva a temporal281, e a secção de The Philosophy of Rhetoric em que este tópico é abordado encerra com uma reflexão interessante, na qual o tratadista escocês aborda o modo distinto como as notícias dos jornais nos afetam em função da distância a que se situa o facto ocorrido: With how much indifference, at least with how slight and transient emotion, do we read in newspapers the accounts of the most deplorable accidents in countries distant and unknown? How much, on the contrary, are we alarmed and agitated on being informed that any such accident hath happened in our neighbourhood, and that even though we be totally unacquainted with the persons concerned? (1849: 111) Estas observações de Campbell não são muito diferentes daquelas que Eça registará num texto publicado a 21 de setembro de 1897 na Gazeta de Notícias, naquele que seria o último dos seus «Bilhetes de Paris». É neste texto que Eça narra o célebre episódio da notícia de imprensa sobre o pé desmanchado de Luisinha Carneiro, que tanta consternação provoca em todos os que escutam a leitura circunstancial do jornal que a publica – os mesmos que momentos antes quase não reagem282 a uma sequência de notícias sobre casos verdadeiramente dramáticos: 281 «Local connexion, the fifth in the above enumeration, hath a more powerful effect than proximity of time» (1849: 110). 282 A sequência das notícias obedece a dois movimentos gradativos: a gravidade dos acontecimentos diminui à medida que a sua localização se aproxima. Reagindo ao fator geográfico e não à magnitude da catástrofe, duas 190 Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera – era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações… Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela-Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro dando à rua sombra e perfume. (TI, IV: 655) Este episódio ilustra aquilo a que Eça chama «a abominável influência da distância sobre o nosso imperfeito coração». Como Campell, Eça atribui aos critérios da proximidade temporal e espacial um papel determinante na geração de empatia: «A distância e o tempo fazem das mais grossas tragédias ligeiras notícias – onde nenhum espírito são, bem equilibrado, encontra motivo de angústia ou pranto» (TI, IV: 652). Há algo neste postulado que perturba o equilíbrio da forma e a aparente serenidade da conclusão: a antítese «grossas tragédias» / «ligeiras notícias» torna-se oxímoro, isto é, enunciado portador de contradição, na exata medida em que está em causa um «espírito são, bem equilibrado». Isto significa que uma resposta afetiva proporcional à gravidade dos factos e que ignore as circunstâncias do tempo e do espaço não passará, pelo contrário, de uma manifestação de morbidez – e isto, à luz de uma razão cartesiana, não pode deixar de ser visto como uma falha inscrita na condição humana, uma falha do «nosso imperfeito coração». No artigo publicado na mesma Gazeta de Notícias, mas no dia anterior, a 20 de setembro, Eça assinalara já a incapacidade transversal à nossa espécie para interpretar o conceito de solidariedade humana inscrita na humanitas de Terêncio: Mas então essa confraternidade humana – pela sublime força da qual nada do que é humano deve ser alheio ao homem? Não existe? Oh, certamente – mas para todo o homem, mesmo o mais culto, a humanidade consiste essencialmente naquela porção de homens que residem no seu bairro. (TI, IV: 651) Mas aquele imperfeito coração a que Eça se refere faz ainda outra coisa: indiferente às duzentas mulheres que o jornal lhe diz que «morreram afogadas num naufrágio, longe, nos mares da Indochina», ele comove-se, no entanto, «no teatro, ou nas páginas dum romance, ou mesmo através dos sinceros versos dum poema», porque essas formas têm a capacidade de ressuscitar «com flagrante e magnífica realidade as figuras mortas da história» ou as «criaturas que só viveram no mundo aéreo da Imaginação e do Sonho». Eça de Queirós parece deparar-se aqui com aquilo a que Colin Radford chamará, quase um século mais tarde, mil mortes na ilha de Java não provocam qualquer resposta nos circunstantes, mas, depois do relato de outros desastres ocorridos na Hungria e na Bélgica, três mortes e onze feridos causados por um descarrilamento no sul de França produzem «uma curta emoção, já sentida, já sincera» nos presentes. 191 «o paradoxo da ficção» (Radford & Weston, 1975). Ora, o artigo da Gazeta de 21 de setembro começa praticamente com o postulado da existência de um circuito obrigatório que liga a visão aos afetos: «Para chorar é necessário ver». Mesmo que aquilo que se vê seja feito de linguagem. Nestes dois artigos, Eça revela ter plena consciência do desafio que representa levar alguém a ter uma perceção efetiva de um problema pelo qual não seja diretamente tocado, uma perceção que compreenda toda a dimensão humana envolvida. Mas, se tal se lhe afigura claro em 1897, é pouco provável que lhe fosse estranho no período que corresponde aos anos em que esteve ao lado de Ramalho na redação d’As Farpas, porque é notório o esforço que aqui faz para estreitar a distância entre os seus leitores e as realidades que são objeto de abordagem nos seus textos. As Farpas não se referem a terramotos na ilha de Java nem a naufrágios na Indochina, mas falam de situações e de acontecimentos que têm de ser investidos de um grau de realidade capaz de tocar o leitor para ganharem uma dimensão real, para se destacarem do plano indistinto dos conceitos, para serem mais do que a ressonância de algo remoto – de algo até, por vezes, já noticiado pela restante imprensa, e cujo impacto recorrentes registos mediáticos podem porventura ir neutralizando. Um dos passos que melhor ilustram o trabalho retórico investido na criação de um envolvimento do leitor com as matérias de que As Farpas lhe falam localiza-se no número de abril de 1872. Eça pretende censurar determinado comportamento das autoridades marítimas, que depois de auxiliarem uma embarcação em risco de naufrágio exigiram que esta pagasse a importância correspondente à despesa feita nessa operação de salvamento. Num movimento típico da argumentação queirosiana, o corpo do artigo explora, acima de tudo, a projeção no plano sistémico do princípio subjacente à atuação da autoridade neste caso concreto. Mas, quer como forma de superar a inércia afetiva do leitor, quer como forma de desencadear um atentum parare que mobilize a sua atenção, na introdução do texto Eça opta por propor ao auditório um exercício de imaginação a partir do qual irá estabelecer a analogia entre um assalto fictício e um quase-naufrágio real. O que o texto faz é representar uma hipotética situação crítica enquadrável no universo de referências do leitor, permitir que esta exposição produza nele uma resposta afetiva – e depois promover a transferência dessa resposta para a situação real. Mas, para que a situação analógica (o foro da analogia) produza no leitor uma resposta capaz de alimentar a transferência visada, é necessário antes de mais que ela se apresente perante esse leitor 192 investida de um grau superior de intensidade. Neste caso, toda a sequência correspondente ao episódio que alimenta a analogia se apresenta sob a forma de um catálogo de recursos que confluem para criar um poderoso efeito de presença: Supõe, querido concidadão, que no escuro isolamento de uma estrada, eras uma noite atacado por dois ladrões: preparas-te para lhes deixar nas mãos, amigavelmente, o teu relógio e a tua bolsa de trama de prata: mas os senhores ladrões pretendiam mais um pequenino pormenor – que é crivar-te de facadas. Estás num momento agudo. Sente-se o trote de cavalos: é uma patrulha, uma ronda de segurança; chega, dispersa à pranchada os senhores assassinos, e restitui-te à vida, aos teus negócios, aos luminosos beijos dos teus pequerruchos, ao Grémio e aos teus vícios. Certamente entras em casa ruminando uma gratidão sentida: que excelente patrulha! que boa gente! que consolação haver rondas! Que bravura, que prontidão, que decisão! Que gente! E no dia seguinte, ao teu almoço, recebes um papel dobrado onde está escrito: Deve o senhor fulano à patrulha n.º … por socorros prestados na estrada da… 27$000 réis. Que dirias tu, concidadão amado? (F: 437-38) Encontramo-nos nos limites extremos daquilo que é uma representação investida de enargeia – ou, na terminologia perelmaniana, investida de presença. Referindo-se a este conceito, Gross e Dearin chamam justamente a atenção para o facto de a presença resultar da confluência de processos, e não da manifestação de fenómenos isolados283, e este passo ilustra de forma bastante eficaz a diversidade de recursos que são mobilizados para obter o efeito de aproximação entre a realidade representada e o leitor. Na verdade, o texto transcrito supera mesmo aquele que é o desígnio fundamental da enargeia: a capacidade de representação da realidade como se ela se oferecesse presente aos olhos do auditório. O leitor não se limita neste caso a receber uma impressão visual da matéria representada. Convocado pela apóstrofe inicial, ele é imprevistamente deposto num cenário adverso – mais do que isso, ele é colocado no epicentro percetivo de toda a experiência narrada, e o trabalho retórico deste passo é posto inteiramente ao serviço da produção de efeitos que promovam o seu envolvimento. A mobilização de técnicas e recursos que transportam o leitor para o centro dos acontecimentos proporciona-lhe a ilusão de uma experiência sensorial e psíquica dos perigos relatados. O exercício hipotético («supõe que eras») dá instantaneamente lugar à deposição do leitor na ação; a enálage de tempo surpreende o leitor-concidadão (não o «querido leitor», não o «querido cidadão», mas o «querido concidadão», num apelo à consciência de partilha de um vínculo social, 283 «[…] presence is not merely an isolated phenomenon; the various instances of presence in a text can also form patterns whose effect is synergistic» (2003: 137). 193 eventualmente de uma solidariedade humana) num momento crítico («preparas-te»), de que este recuperará depois numa cadência ainda marcada pela sua perceção sensorial dos acontecimentos: a salvação chega sob a forma de uma sensação repentina – um índice –, só identificada num segundo momento («Sente-se o trote de cavalos: é uma patrulha, uma ronda de segurança») – isto é, o quadro avança respeitando escrupulosamente a perceção progressiva do que se passa de um ponto de vista imerso nos acontecimentos, implicitamente o ponto de vista do leitor-personagem. Por outro lado, o que neste quadro é posto em perigo – e o que é depois recuperado – é um universo de valores, materiais e imateriais, que, naturalmente, faz parte do horizonte de referência e de conforto do leitor- tipo d’As Farpas. Este terá inicialmente de se desfazer dos seus bens – que não são um hiperónimo generalizante, mas objetos concretos (e cuja perda é ainda acentuada pela repetição do possessivo) –, tal como três linhas abaixo a vida que recupera é a quotidiana, vivida entre os beijos dos pequerruchos e o Grémio, e como no final o papel (dobrado284) que transforma o ato heroico, singular, da ronda de segurança num procedimento de natureza administrativa vem interromper o almoço, isto é, esse quotidiano recuperado. Só depois de submetido a esta experiência saberá o leitor afinal o que aconteceu: outros homens viveram-na de facto, longe de si, no mar. Eça de Queirós opta, neste caso, por uma via extrema de aproximação do leitor às circunstâncias do incidente em causa, expondo-o a uma experiência análoga que o investe do estatuto de protagonista de uma micronarrativa. Todo este trabalho retórico posto ao serviço do envolvimento do leitor serve inquestionavelmente um desígnio argumentativo: trata-se de mobilizar o seu acordo relativamente a uma série de valores que o episódio representado inicialmente encena e que são depois retomados no artigo – o valor social da segurança do indivíduo, o papel das autoridades na sua manutenção, a relação entre o cidadão e as autoridades, etc. A verdade é que As Farpas exploram abundantemente nos seus artigos técnicas e registos orientados para a obtenção deste tipo de adesão afetiva, que depois é transportada para o plano mais densamente argumentativo – quando não representa ela própria o corpo essencial do argumento. 284 O simples facto de este papel estar dobrado reforça fortemente o seu estatuto de ‘objeto real’. Um papel é pouco mais do que uma abstração, mas um papel dobrado tem forçosamente de existir, ou não estaria dobrado: a característica adjetiva como que confirma o objeto, cuja existência ela pressupõe. Além disso, «um papel dobrado onde está escrito: Deve o senhor fulano […]» evoca uma imagem, um formato, o próprio gesto de o desdobrar para ler, logo também as mãos que o desdobram, mesmo o próprio ato da leitura. 194 Um bom exemplo deste último caso encontra-se num artigo do número de agosto de 1871 (F: 147-48), um dos vários textos em que As Farpas abordam as precárias condições de vida e de exercício da sua atividade que os pescadores enfrentam em Portugal. Eça publica quatro textos subordinados a esta temática (F: 147-48, 238-41, 277-78 e 328-29285), o que constitui um núcleo com alguma importância na economia da publicação. João Medina sugere, a propósito, a possibilidade de Eça transportar para este conjunto de textos tematicamente recorrentes as memórias de uma infância próxima da realidade dos pescadores «que se habituou a ver e a ouvir desde os juvenis anos de Verdemilho e Póvoa do Varzim» (Medina, 2000, 62). Se a hipótese de Medina estiver certa, poder-se-á dizer que esses pescadores exerceram sobre a sua sensibilidade um efeito semelhante àquele que, na narrativa de Mêncio, o boi exerce sobre a do rei, que apenas por vê-lo o decide salvar – visto que é bastante mais lateral o lugar que outras classes desfavorecidas, como operários ou camponeses, ocupam na temática dos seus textos. Em todo o caso, se esta realidade lhe é de alguma forma familiar, quando se trata de a dar a conhecer aos leitores d’As Farpas a questão coloca-se inevitavelmente: como vencer o abismo referencial que se interpõe entre um leitor burguês, urbano, letrado, placidamente instalado nas comodidades usuais da vida, e a existência precária de um pescador, cujo quotidiano é uma renovada batalha pela sobrevivência, batalha essa que o vai matando pouco a pouco, enquanto não o matam de vez um naufrágio ou uma febre súbita? No primeiro destes artigos, de agosto de 1871 (F: 147-48), Eça propõe-se denunciar o valor abusivo do imposto que recai sobre o pescado. No entanto, a primeira e única referência a este imposto ocorre no último parágrafo do texto, um curto parágrafo de três linhas: quando essa referência surge, todo o trabalho retórico que permite que a tese seja eficazmente comunicada está concluído. A tese em causa enunciá-la-á Eça meses depois, em janeiro de 1872, quando se dirige a Fontes Pereira de Melo para lhe agradecer a abolição do imposto: «Os pescadores têm, senhor ministro, um verdadeiro imposto: as grandes ondas que viram as lanchas» (F: 329). E, de facto, aquilo em que o artigo de agosto se foca não é nos 40 réis por pescada que os pescadores têm de pagar ao fisco – mas em tudo o que lhes 285 O quase-naufrágio que está na origem da analogia acima comentada ocorre com uma pequena embarcação que nunca se refere estar afeta à pesca; o mesmo acontece com a lancha que naufraga num artigo do número de junho/julho (F: 490-92). Ainda assim, no primeiro caso, Eça estende até aos pescadores o âmbito de aplicação da singular atitude das autoridades: «quereis viver, ir para vossas casas tranquilos, para os contentamentos da vida, para o bom sol do dia, tu que és novo para a tua noiva, tu que és velho para a tua pequerrucha? – dai para cá um par de moedas: se sois miseráveis, vendei a rede, o barco, as amarras, mas passai para cá a quantia» (F: 439). 195 custa chegar à praia com dez ou doze pescadas. Isto é, Eça opta por mostrar («com um relevo doloroso», como dirá em janeiro) o risco quotidiano da vida dos pescadores, como enquadramento do dado final relativo ao valor do imposto, construindo assim um argumento de estrutura elíptica: a comoção obtida permite que no final se produza no espírito do leitor um juízo (o imposto sobre o pescado é injusto) sem que este seja enunciado no texto. Há, portanto, aqui um procedimento entimemático, a truncagem de um nexo, que o leitor completará porque lhe foi dado ver uma dada realidade, e porque essa realidade o comoveu. A mais notória particularidade deste artigo, porém, é a estratégia usada por Eça para captar a atenção do leitor. Porque a promessa inicial que o texto lhe faz não é a de um relato de verdade, é a de um relato de imaginação: «Pode alguém estranhar que as Farpas não contenham nunca uma página dada ao romance, à imaginação, à paisagem» (F: 147). Degrau a degrau, contudo, o texto desloca-se do registo da imaginação para o registo da realidade. Se o início do ‘romance’ é sobretudo paisagem, pintura (o primeiro parágrafo, em especial, explora todo ele sucessivas imagens provenientes deste domínio), essa paisagem vai sendo tomada por uma cena que a preenche, primeiro sob a forma de relato dramático, mas ainda com colorações literárias («A onda, quebrando, tinha-a [a lancha à vela] tomado pela popa, ergueu-a, balouçou-a rijamente, e por um momento, viu-se apenas, na espuma, a vela oscilar, como a lenta palpitação dum pássaro que morre» – F: 148), depois como reportagem daquilo que é já o epílogo do episódio, a sua penetração por aquelas zonas da realidade laterais ao ‘romance’ («O patrão, um velho baixo, seco, de cabeça branca e um barrete de pele de lontra, atirava para fora a corda da rede. Tinham trazido 10 ou 12 pescadas!» – F: 148). No final, a emergência da realidade dita o fim do romance, do transporte imaginativo: «E assim acaba o romance!» (F: 148) – e este princípio assume implicitamente o estatuto de sentença justificativa do facto de As Farpas não conterem «nunca uma página dada ao romance, à imaginação». Este «conto, com paisagem» (como depois o classificará Eça em Uma Campanha Alegre – UCA: 128), demonstrando a sua própria inviabilidade, serve assim para amplificar a impressão de dureza da realidade – essa realidade que rasga a tela na qual Eça anuncia o propósito de a pintar com tonalidades literárias. 196 3.8. O paradoxo da objetividade Há essencialmente duas razões para que As Farpas procurem expor o leitor a uma representação da realidade capaz de emular a sua presença real, como se ela se apresentasse perante os seus olhos. Ambas as razões se revestem de uma forte componente retórica, embora ela seja mais evidente num dos casos: aquele que está compreendido na fórmula que Eça inscreve no já referido artigo da Gazeta de 21 de dezembro de 1897 – «para chorar é necessário ver». Não está aqui em causa, bem entendido, levar literalmente o auditório às lágrimas: trata-se sobretudo de vencer a inércia afetiva do leitor, que pode configurar um obstáculo à compreensão do relevo inerente à matéria em causa. Mas o olhar não constitui apenas uma via de ligação ao «imperfeito coração» do leitor: ver é também a condição inaugural do conhecimento. Este é, de resto, um dos preceitos fundadores do realismo, bem como do próprio naturalismo. É precisamente nesse exercício que consiste em ver que, pelas suas implicações epistemológicas, se funda a superioridade da nova escola, como reclamaria Eça em «Idealismo e realismo» – se assumirmos como sua a lição deste texto286 –, o pretenso prefácio que teria concebido para a segunda edição de O Crime do Padre Amaro. Para representar uma Virgínia autêntica, lê-se aí, o escritor realista «estuda-lhe a figura, os modos, a voz, examina o seu passado, indaga da sua educação, estuda o meio em que ela vive […]» – mas todos estes escopos analíticos são desdobramentos dessa «coisa extraordinária» que é começar por ir vê-la: «É toda a filosofia cartesiana: significa que só a observação dos fenómenos dá a ciência das coisas» (CIFM: 198). Em Le Roman Expérimental, recorde-se, Zola define o escritor naturalista como «simplement un observateur qui constate des faits» (1880: 110). O primado da visão está, pois, indubitavelmente ligado à fundação de uma epistemologia do realismo, de resto exemplarmente sintetizada na pergunta (retórica) que em La Peau de Chagrin, de Balzac, o velho antiquário formula perante Raphaël: «Ma seule ambition a été de voir. Voir, n’est-ce pas savoir?» (1974: 63)287. 286 Sobre a provável natureza apócrifa de «Idealismo e realismo», ver a introdução de Irene Fialho a Almanaques e Outros Dispersos, o volume da edição crítica das obras de Eça de Queirós que recolhe a produção avulsa e inédita do autor, e do qual foi excluído este texto (Fialho, 2011: 29-36). 287 Na primeira edição, o antiquário formula de modo assertivo aquilo que depois passará a ter a forma de uma interrogação retórica: «Ma seule ambition a été de voir; car voir, c’est savoir!» (1833: 98). 197 O primeiro repto que As Farpas lançam aos seus leitores, poucas linhas depois de começado o ‘prólogo’ do número inicial, traduz-se precisamente num apelo à visão: «Aproxima-te um pouco de nós, e vê» (F: 16). Ver significa aqui tomar conhecimento, assimilar a informação que resulta do contacto com determinada realidade. Aquilo que Eça mostra ao leitor na sequência deste desafio é uma realidade processada, quase um índice de tópicos depois recuperados e desenvolvidos (primeiro no próprio artigo, depois na longa série de textos subsequentes), mas a verdade é que esse índice adquire uma configuração particular por surgir como série suscetível de ser vista: esta instrução desencadeia no leitor a sensação de lhe ser proporcionada uma espécie de visão diaporâmica do país, numa altura em que a relação entre ver e saber é quase de homologia. Aliás, o leitor contemporâneo d’As Farpas, mesmo antes de chegar a abrir curiosamente o primeiro livrinho da série, e de ser convidado, logo nas linhas inaugurais, a ver o que o texto pretende mostrar-lhe, suporia já, olhando para a capa da publicação, que uma das propostas dos textos nela contidos passaria certamente por uma particular acuidade da incidência do olhar: o diabo que ri empunhando um óculo anuncia, entre outras coisas, a perceção reforçada, o enfoque no detalhe, a revelação de uma nova compreensão do objeto enquadrado. Érika Wicky lembra oportunamente que o século XIX gerou todo um aparato instrumental, científico e tecnológico, promotor da ideia de que a via do conhecimento passa sobretudo pela visão288, e é também nesse contexto que pode ser lida a inscrição permanente, identitária, da visão (instrumental e potenciada) no paratexto imagético da obra. O primeiro aspeto que me parece dever ser salientado quando tentamos compreender o lugar que a visão ocupa nas farpas queirosianas, enquanto referência do modo de comunicação e apreensão de uma realidade, diz respeito às ocorrências em que o texto a propõe como instrução de leitura – isto é, quando sinaliza um dado passo como algo que tem de ser visto. A própria linguagem natural projeta sobre o espectro semântico do conceito de visão uma marcada justaposição entre a dimensão propriamente percetiva e uma componente cognitiva, e As Farpas exploram com alguma frequência – e intencionalidade – as consequências retóricas deste fenómeno. A instrução autoral para que vejamos certos aspetos do mundo através do óculo textual, que nos mostrará realidades antes ocultas aos nossos olhos e à nossa compreensão, 288 «En vertu du lien qu’il établit entre le visible et la connaissance, le xixe siècle s’est doté de nombreux outils et dispositifs pour appréhender le monde par le regard: photographies, microscopes, stéréoscopes, panoramas, albums et atlas illustrés, expositions, géoramas, etc.» (2015: 11). 198 pontua nas farpas queirosianas um conjunto de casos que vão desde a revelação da desordem que domina as jornadas parlamentares («Vistes, amigos, a sessão de 29 de junho. Quereis assistir à de 29 de julho?»289) até à exposição das condições desumanas a que estão sujeitos os presos condenados ao degredo («Fiquemos a ver um pouco esta avareza imunda» – F: 497), passando, por exemplo, pela denúncia da inutilidade da imprensa e da esterilidade da literatura («Vejam a imprensa» – F: 17; «Olhemos agora a literatura» – UCA: 19; «Vejamos a sua poesia» – F: 26), ou ainda pela exibição das insuficiências do corpo diplomático português («Cidadãos! Vejamos um pouco a nossa diplomacia» – F: 225). Este tipo de sinalização, de resto relativamente comum em qualquer texto que contenha uma componente expositiva ou argumentativa, adquire aqui uma relevância particular – antes de mais porque ela é indissociável da ideia de revelação associada a um movimento do olhar que o texto inicial d’As Farpas explora, quase sob a forma de legenda da ilustração patente na capa da publicação. Mas essa relevância a que me refiro deve-se sobretudo ao facto de tal sinalização corresponder implicitamente à proposta de um contrato que envolve as duas partes: o leitor é instruído no sentido de ler o texto como se visse o que ele representa290, e As Farpas vinculam-se a representar verbalmente a matéria como se a mostrassem. Um dos núcleos onde é possível verificar esta passagem da instrução de leitura do texto como visão para a notação descritiva é constituído por aqueles passos em que se inscreve o esboço de uma figura (por vezes desenhada apenas através de uma função), quase sempre convocada com o propósito de representar um grupo mais abrangente: «As meninas solteiras. Vejamos o tipo geral de Lisboa» (F: 414), «Veja-se o andar de uma inglesa», «Veja-se o andar de uma menina portuguesa» (F: 417), «Veja-se a criança educada numa quinta» (F: 423), «Veja-se agora uma menina de dez anos, aqui em Lisboa» (F: 424), «Vejamos o sedutor» (F: 551), «veja-se uma beata ou um beato diante de um padre» (F: 445). Cada um destes enunciados desencadeia um pequeno nódulo descritivo que responde a uma necessidade de atualização imagética dos conceitos em discussão. Estes casos adquirem, assim, um estatuto sinedóquico: eles convocam uma classe genérica (está em causa «o tipo geral», a ilustração de 289 Na edição de 1890 (UCA: 90). Em 1871, Eça escreve «Tirando as consequências inevitáveis do princípio que aquela sessão conteve em si, aqui está o que logicamente constará do extrato das sessões daqui a meses» (F: 98). Entre outras coisas, esta reescrita ilustra a projeção para o plano da visão daquilo que em primeira instância são os nexos lógicos que presidem ao funcionamento da realidade. 290 Cf. Annabela Rita: «Exortações do tipo “vejamos” e “Volvamos ainda um olhar sobre” antecipam a prescrição de uma leitura visualizante, do recurso à imaginação para conceber a cena» (1998: 87). 199 qualquer inglesa, de qualquer portuguesa, a representação indiferente de «uma beata ou um beato») procurando conferir um relevo físico e material àquilo que é sobretudo do domínio do perfil psicológico. E fazem-no, naturalmente, porque desta forma potenciam a presença dessas características – como observa toda a teorização retórica, o que é concreto e material reúne um maior número de atributos capazes de se impor à sensibilidade do auditório, atalhando por ela caminho até à obtenção do seu assentimento. No artigo sobre o contexto formativo da mulher publicado no número de março de 1872, a transição de um modo argumentativo sobretudo conceptual para aquele em que se coloca diante do leitor um caso exemplificativo das teses em questão é assinalada no próprio texto como uma inflexão decisiva para a sua eficácia: «Isto poderá ser vago e declamatório. Um exemplo pois, fulminantemente nítido e prático» (F: 428). É claro que o relevo destas figuras está fortemente condicionado pelo alcance simbólico de cada traço: se o texto lhes desenha um breve perfil, se lhes insufla a vida necessária para que elas se destaquem um momento do plano de fundo expositivo, esses traços têm de significar algo – estão, por assim dizer, submetidos aos constrangimentos da representatividade estatística. A figura beata concebida por Eça, por exemplo, desdobra-se em gestos e atitudes que conferem uma dimensão material ao fenómeno psíquico que o texto procura identificar, mas a inflexão mais eficaz deste esboço – e que contém, segundo o próprio autor, «toda a filosofia» inerente ao sincretismo que ele pretende expor – encontra-se precisamente naquele traço mais incisivo que representa a beata maldizendo ter enxotado o gato do abade291. Já para mostrar como é a criança da quinta, é descrita uma jornada saturada de lances, e os escassos apontamentos psicológicos quase se materializam, contaminados pela acumulação paratática de dezenas de notações através das quais Eça desenha uma figura e a cansa com uma infinidade de jogos e brincadeiras292. Em muitos outros casos em que Eça esboça um perfil, ainda que não haja uma instrução de leitura que o proponha como visão na 291 «Veja-se uma beata ou um beato diante de um padre: beija-lhe a mão com temor, está com os olhos baixos, respeita-lhe a casa como um templo, se entra a porta faz mesura como diante do sacrário, não se atreve a contradizê-lo, como à mesma sabedoria; julga-o impecável, cândido e perfeito, respeita-lhe o cão e o porco, e toda a filosofia desta vil humildade e desta adoração profana, está no grito pavoroso daquela beata: “ai! maldita seja eu, que sem saber, enxotei o gato do sr. abade!”» (F: 445). 292 «Veja-se a criança educada numa quinta: solta-se pela manhã, com um bibe, largos sapatos, um velho chapéu: corre, vai ver os seus velhos amigos os bois, luta com o carneiro, abraça o pacífico e grave jumento, conhece os ninhos, sabe de cor as árvores; cai, enlameia-se, arranha os joelhos, cura-se pulando, combate as lagartixas, preside à reunião das galinhas, tem todas as sombras e os largos abraços do sol, penetra-se de ar, de vida e de paz; e inocente como um bicho, fresca como uma madressilva, o bibe sujo, as mãos cheias de terra, o rosto vermelho como uma amora, feroz de saúde, as narinas palpitando de vida, sem sensibilidade e sem tristeza, com um cheiro de fenos e prados atravessados, espírito vivo da verde natureza, entra em casa aos pulos, berrando pela sua sopa. À noite, cheia de fadiga, dorme como um bicho» (F: 423). 200 respetiva introdução, o processo de composição é semelhante, bem como o efeito obtido. O brasileiro retratado no artigo publicado em fevereiro de 1872 ou o influente do segundo número, de junho de 1871, obedecem a este princípio: são figuras genéricas, representativas de uma classe, mas construídas com apontamentos que lhes conferem o relevo necessário para se destacarem do plano dos conceitos abstratos e adquirirem uma presença sensível. Nas técnicas utilizadas na composição destas figuras há, segundo creio, ressonâncias dos textos que resultaram da viagem de Eça de Queirós ao Oriente, realizada pouco antes. Na última secção de O Egito pode ler-se um passo, interessante por vários motivos, no qual Eça afirma ser ambição última (e circunstancialmente assumida como inalcançável, porque inscrita numa incursão pelo ancestral tópico do indizível293) da sua escrita «fazer sentir, dum modo real e incisivo», a realidade desusada em que se encontra imerso294. O que aqui está em causa não é, por conseguinte, tanto a reprodução da realidade como a reprodução do efeito que a realidade provoca num sujeito – isto é, trata-se de transpor a realidade para o discurso como experiência capaz de emular o impacto original que ela suscita. E é desde as páginas de O Egito notória a mobilização dos recursos da linguagem queirosiana no sentido de comunicar uma impressão vívida das realidades representadas, nomeadamente submetendo os critérios dessa representação a dois princípios: a concisão dos quadros evocativos e a acumulação de traços, rápidos e incisivos, de que estes se compõem. As figuras, os cenários, os ambientes, investidos quase sempre de um forte visualismo, adquirem em poucas linhas um relevo saliente, pela incisão precisa do traço, pelo arrojo das associações, pela atenção ao detalhe. Quando se lê nas páginas de O Egito a descrição de certa habitação, esquemática na 293 «Seria necessário que esta dura pena de ferro com que firo o papel fosse talhada numa jóia árabe, molhada naquelas pálidas luzes das iluminações e conduzida sobre a brancura da página pela mão delicada dum poeta persa, para fazer sentir, dum modo real e incisivo, toda a beleza daquele lugar luminoso» (OE: 170-71). Sobre o tópico do indizível, cf. Curtius, 1957: 166 e ss. 294 É consensual a ideia de que a notação realista queirosiana tem uma das suas mais interessantes manifestações inaugurais nos textos de O Egito. De Gaspar Simões («Descrever tudo quanto via, como se abrisse os olhos pela primeira vez diante do mundo, eis o que importava ao moço escritor» – 1980: 207) a Maria Filomena Mónica («O rigor do pormenor, a exatidão do traço, a fidelidade da sensação vão ser, a partir de agora, notas dominantes nos seus textos» – 2009: 97), passando por Alexander Coleman, por exemplo («O Egipto is probably one of Eça’s most instinctive and subliminal works of nonfiction, with its torrential accumulation of detail and the exuberant descriptive style» – 1980: 29), os testemunhos nesse sentido são variados. Parece-me produtiva a hipótese de Gaspar Simões segundo a qual nesta viagem o exotismo real se sobrepôs à fantasia literária, ocupando o seu lugar (1980: 198-222): perante uma paisagem física e humana que não lhe é familiar, Eça concentra-se no desafio que é fixar-lhe contornos, cores, contrastes, relevos, captar os ambientes que dela emanam, retratar os tipos extravagantes a um olhar ocidental. A viagem é o exotismo vivido e não imaginado, como acontecia nos folhetins da Gazeta. 201 sua pobreza295, ou quando nelas se instala por momentos uma personagem de perfil mais acentuado296, reconhecem-se alguns dos traços com que n’As Farpas depois se desenhará a miséria de que são feitas as casas dos pescadores ou se recortará o perfil de figuras como o influente ou o brasileiro, a que já me referi. O objetivo destas imagens é conferir à matéria do discurso um grau superior de relevo e nitidez; é isso que determina a passagem do registo expositivo para o registo ilustrativo. Mas este investimento na representação da realidade como presença suscetível de acionar dispositivos de reconhecimento, para além de se destinar a produzir um efeito cognitivo, está igualmente afeto à criação de uma resposta emotiva. No artigo em que se dirige a Fontes Pereira de Melo para lhe agradecer a iniciativa de extinguir o imposto sobre o pescado (F: 328-29), Eça abre no seu texto uma das várias janelas descritivas que procuram representar os quadros da vida dos pescadores em Portugal. Ora, na abordagem a esta temática, Eça começa por recordar ao ministro um pressuposto epistemológico a que já me referi anteriormente, pressuposto esse que define a observação direta de uma realidade como a via mais eficaz para dela adquirir um conhecimento consistente: «Não sabemos se v. ex.ª já viveu algum tempo nas costas de Portugal. Devia-o ter feito. Nada mais duramente instrutivo. Um interior de cabana ensina mais que um livro de Maurício Block» (F: 328). Trata-se, na sua essência, do mesmo princípio que leva Eça, em «Idealismo e Realismo», a defender a forma superior de conhecimento da realidade que o realismo representa, assente na observação: ir ver Virgínia e ir ver um interior de cabana como forma de investigação das respetivas naturezas são manifestações do mesmo primado epistemológico que elege a perceção da realidade, e nomeadamente a perceção visual, como exercício fundador do conhecimento. Ora, se o paradigma do conhecimento da realidade assenta, em primeira instância, na perceção imediata das coisas, então as palavras atingirão o limiar da sua eficácia na medida 295 «A sua casa tem três metros: é um espaço quadrado, nu, de terra. Tem por tecto a palha de durah. Pela palha mal junta passa o ar, o fumo, a luz, o gemer das crianças, as zagaritas das mulheres. / Tem uma esteira, uma gamela e uma bilha. Comem todos na mesma gamela, dormem sobre a esteira em promiscuidade, e pela bilha bebem a água leve, fresca, transparente do Nilo» (E: 40). 296 «Bei é um renegado. É um homem grosso, pesado, forte, de fisionomia larga e oleosa, boca cavernosa e cheia de negruras, coberta por um bigode enorme e grisalho; fixa-nos com uns olhos vivos, levemente fatigados, voluntariosos e libertinos. É imundo: encontrámo-lo afogado em suor, com os sapatos desatados, o casaco preto enodoado e uma camisa cheia de vincos negros. Falámos pouco tempo. Pareceu-me um homem extremamente limitado, grosseiro, ávido para a exploração. Adivinha-se ali um dos pequenos tiranos do país, desembarcado um dia nalgum porto do Egipto, vindo da Síria ou da Índia, miserável e astuto, elevado pela força, pela intriga, pelas complacências desonestas, devorador, brutal, vaidoso, entorpecido pelo uso das escravas, mantendo-se pelo servilismo» (E: 24). 202 em que consigam emular esse contacto direto com o objeto que representam. A aplaudida extinção do imposto, recorde-se, é posterior à publicação, em agosto de 1871, de um artigo no qual Eça chamava a atenção para a injustiça desta tributação (F: 147-48; cf. supra: 194-95). Cinco meses depois, este texto é evocado nos seguintes termos: «as Farpas tinham apresentado, com um relevo doloroso, toda a cruel indignidade desse imposto» (F: 328). Esta referência ao «relevo doloroso» com que As Farpas haviam mostrado o caso sintetiza a dupla vertente de uma certa modalidade da representação da realidade que por vezes Eça procura inscrever nos seus textos, e que passa por investir de presença o objeto da representação, destacá-lo como emulação da realidade, e imprimi-lo como sensação no espírito do leitor. É precisamente isso que As Farpas pretendem fazer também no artigo de janeiro de 1872: fixar nas suas páginas o doloroso relevo que define todo o arco da vida miserável dos pescadores, desenhado «a traços largos», como refere Eça, mas cujo propósito é imprimir a sua marca na sensibilidade do leitor. A dado momento de uma sequência na qual são convocados os diversos aspetos críticos do dia a dia destes homens, o texto volta a fixar-se num interior de cabana – o mesmo cenário que ensina mais do que um livro de Maurice Block: É necessário ver como habitam. Em Espinho – e é uma das costas mais populosas e mais ricas – vivem em casebres de pau; a chuva, o vento, a névoa, entram livremente; dormem sobre farrapos de velhas jaquetas rotas e de antigas velas inúteis; comem numa grande tigela, – toda a família –, metendo a mão – a caldeirada de sardinha e côdeas de broa. – Isto no tempo feliz, rico e abundante. No inverno, internam e pedem esmola. Tal é aquela vida a traços largos. (F: 328-29) Parece-me oportuno propor neste ponto a consideração paralela de um outro passo, extraído de um artigo publicado meses depois, em julho de 1872, no qual Eça comenta o tratamento ominoso a que fora sujeito um militar carlista que se rendera às autoridades portuguesas. Em certo momento, deparamo-nos com uma sequência cujas afinidades com o excerto anterior são manifestas, nomeadamente no que diz respeito à formulação inicial, bem como a certas aspetos estratégicos do domínio da exposição da matéria: É necessário ter visto o sofrimento das algemas. Os braços inertes incham, adormecem, os pulsos arroxeiam, a respiração dificulta-se, um entorpecimento febril enerva, e os mais duros, os mais fortes, os mais concentrados, não marcham a pé duas léguas, com os pulsos encadeados, sem que a dor lhes faça correr as lágrimas em fio. (F: 493) 203 «É necessário ver como habitam»; «É necessário ter visto o sofrimento das algemas». Estamos, de certo modo, perto de uma variação do tópico do inefável, depois da invocação do paradigma da visão como modo obrigatório de apreensão destas realidades críticas em toda a sua magnitude. Mas, se por um lado estas formulações parecem postular a prevalência da realidade sobre o discurso, elas são sobretudo operadores retóricos que organizam diversos aspetos relativos às sequências que introduzem. Antes de mais, como acontece em muitas ocasiões já abordadas, elas funcionam como instrução de leitura, ativando um modo de ler suscetível de figurar imagens – e é precisamente isso que a sequência do texto proporá, ao dispor uma série de incidências descritivas dos quadros representados. Como em O Egito, como em tantos outros quadros d’As Farpas, a pincelada breve ou a acumulação de pormenores são instrumentos que Eça manobra para trazer alguma da realidade em causa aos olhos do leitor. E isso significa que a fórmula inicial dos dois passos representa também uma espécie de desafio de emulação a que o texto se vincula: trata-se de procurar fazer o leitor testemunhar a coisa representada, de promover o encontro (sob a única forma possível, a forma discursiva) entre a sua sensibilidade e o estímulo real que a deveria impressionar fortemente. Mas este movimento estratégico é entretanto reforçado por um duplo efeito hiperbólico: por sensível que seja o relevo da miséria e do sofrimento representados, o texto sugere de duas formas que a realidade supera em intensidade os quadros evocados. É, antes de mais, (também) isso que significa a garantia de que a visão direta é a única forma de perceber o que está verdadeiramente em causa nos dois quadros: ao afetar um relativo esbatimento da subsequente emulação da realidade, o texto potencia na verdade o seu alcance. Por outro lado, a representação de cada uma das situações descritas comporta ainda um importante fator de amplificação daquilo que é efetivamente descrito. Os desdobramentos que ambos os quadros operam dos aspetos críticos da miséria e do sofrimento experimentados têm o seu impacto amplificado pela introdução de atores e circunstâncias excecionalmente favoráveis: no segundo caso, só «os mais duros, os mais fortes, os mais concentrados» são submetidos ao sofrimento descrito; no primeiro, a miséria exposta refere-se a «uma das costas mais populosas e mais ricas» e «no tempo feliz, rico e abundante». Subjacente, uma comparatio297 tácita insinua-se: que quadro de miséria se 297 Sobre a comparatio como recurso da amplificatio, cf. Lausberg, 1982: 108-109. 204 encontrará nas costas mais pobres, no tempo da escassez?; como suportarão as algemas aqueles que não pertencerem à casta dos mais duros e dos mais fortes? Na abertura da sua Theory of Moral Sentiments, Adam Smith – um autor que Eça chega a referir episodicamente na sua obra – aborda essa característica humana que consiste em experimentar um sentimento de compaixão pelo sofrimento alheio quando este é exposto diretamente aos olhos, ou é representado de forma vívida à imaginação298. Como observa Mary-Catherine Harrison em Sentimental Realism: Poverty and the Ethics of Empathy, o realismo explorou abundantemente a representação da miséria com o fim de promover junto dos leitores a consciencialização da gravidade dos problemas sociais contemporâneos. Transportar quadros de miséria e de sofrimento até aos olhos do leitor tem inegavelmente um efeito direto sobre os afetos e traduz a emergência de uma vertente argumentativa do domínio do pathos, cuja presença nas farpas queirosianas não pode ser ignorada. Casos como aqueles que acabo de abordar ilustram a forma como se transita de um contrato de representação da realidade tal como ela é para a excitação das emoções do auditório, isto é, como se explora enquanto instrumento retórico aquilo que é proposto como registo do mundo. Esta ‘objetividade’ tingida de pathos assume, assim, o estatuto de expediente retórico na medida em que os objetos exibidos pretendem tocar diretamente a sensibilidade e dessa forma promover no destinatário uma resposta emotiva que se sobreponha, em primeira instância, ao processamento analítico dos dados. Ao contrário da rosa de Gertrude Stein, os objetos não são tautológicos, não apontam irredutivelmente para si próprios – como sabia Marco António, ao exibir a túnica ensanguentada de César nas exéquias do Imperador perante os cidadãos romanos. As Farpas também recorrem, a espaços, a correlatos da toga manchada com sangue e daquilo que esta representa, nomeadamente a quadros de miséria onde se encontram carregados os traços mais dramáticos, para não dizer os traços mais patéticos. Um bom exemplo desta modalidade argumentativa, destacando-se pela amplitude e pela densidade dos quadros representados, encontra-se num artigo de dezembro de 1871. Eça aborda o caso de um mendigo que, por se acercar da rainha pedindo esmola, é detido pela polícia: é o ensejo para uma demorada incursão pelo universo de miséria extrema em 298 «How selfish soever man may be supposed, there are evidently some principles in his nature, which interest him in the fortune of others […]. Of this kind is pity or compassion, the emotion which we feel for the misery of others, when we either see it, or are made to conceive it in a very lively manner» (1976: 9). 205 que habitam pobres, pedintes, gente sem trabalho, toda uma multidão relativamente à qual a tendência dominante é desviar o olhar. É precisamente esta atitude que As Farpas se propõem contrariar. Porque, segundo informa o texto, não se trata este de um caso isolado: «Sempre que um pobre, se aproxima, com a mão estendida, de S. M. o rei, de S. M. a rainha, de SS. AA. os infantes – é preso» (F: 292). Ora uma detenção policial pressupõe um delito, uma culpa, e a culpa destes homens é essencialmente a culpa da miséria que sai da sua obscuridade, dos «buracos ignorados» onde vive, das «sombras dos entulhos» onde se esconde, e decide perturbar o enquadramento através do qual se olha para uma realidade truncada, desfazendo-lhe a falsa harmonia. Ao afetar o apoio à decisão das autoridades, Eça encena uma pseudo-vituperatio que tem como destinatário o mendigo preso, a quem a dado ponto é dirigida uma acusação crucial: «vais assim pôr-t[e] diante de uma princesa, em toda a crua realidade dos teus andrajos?» (F: 293). É esta culpa que As Farpas reivindicarão afinal para si próprias, amplificando-lhe porém a magnitude: elas exporão diante de um país a mesma «crua realidade» cuja incómoda existência aquele episódio procurou suspender, arredando-a simplesmente do campo de visão. Quase todo este artigo é, assim, um exercício de representação da miséria encarnada pela figura do mendigo e projetada numa comunidade que simultaneamente multiplica e desdobra o exemplo de partida. Um passo como o seguinte demonstra bem que a estratégia queirosiana neste texto consiste sobretudo na exibição de imagens suscetíveis de comover o leitor, de apelar à sua compaixão: Bem vos conhecemos: os velhos com os seus chapéus altos, o peito e o ventre côncavos, apoiados tremulamente a uma bengala, a magreza apertada numa velha quinzena, pedindo, encostados, com uma voz chorosa; as mulheres, com os rostos cavados, uma saia curta, umas velhas botas esfarrapadas, aconchegando no xale traçado uma pobre criancinha de peito, que se encolhe, em que os olhos luzem dentre os farrapos, e a fria aragem adstringe as chagas da cabeça: os desgraçados pequenitos, que gemem enrolados numa velha e larga jaqueta de cotim, no degrau de uma porta fechada, pela fria noite: os que não têm trabalho, e que à noite, sem camisa, com a gola de um casaco remendado erguida para cima, a barba por fazer, o estômago por aquecer, fazendo bater na laje da rua as solas despegadas, pedem, explicando a sua fome: os que têm na voz o tom de uma última esperança aflita: os que pedem baixo, timidamente, com o terror da recusa; os que são insistentes, que têm o desespero da cólera contida, e cuja voz parece a mão de um náufrago que se agarra; os que são humildes mesmo quando se lhes não dá; os que querem beijar a mão de agradecimento; os que ficam a rezar com as lágrimas nos olhos! (F: 292-93) Não sendo comum nas farpas queirosianas a amplitude que o registo patético assume neste artigo (toda a longa apóstrofe dirigida ao mendigo está impregnada deste intuito 206 mobilizador dos afetos), ele comparece, ainda assim, com equiparável intensidade noutros textos. Já me referi várias vezes aos recursos que Eça mobiliza no sentido de proporcionar aos seus leitores uma perceção do mundo dos pescadores suscetível de se impor à sua presumível distância afetiva. Num artigo do número de outubro desse ano, é abordada a prisão de um grupo de pescadores por uso indevido de redes de arrastar. A certo ponto, Eça traz aos olhos do leitor com especial acuidade o caso de três crianças de dez anos, também elas presas. Tal como, no exemplo anterior, o mendigo introduz inicialmente uma galeria de figuras vulneráveis (os velhos, as mulheres, os pequenitos) cuja repercussão ao nível do pathos é por si só mais violenta, também neste caso Eça opta por explorar com especial detalhe descritivo as circunstâncias críticas que envolvem mães e crianças: E além disso foram presas três crianças de 10 anos! Ah! estes criminosos vão decerto ser tratados com as penas mais severas! Lá estão na enxovia! As mães choram às grades! É justo! estes indignos entezinhos também pescavam! Aos 10 anos, quando todas as crianças brincam, até as dos lavradores miseráveis, que guiam os bois, trepam aos ninhos, rolam-se nas altas ervas, estes bandidos que já trabalham, que já vão ao mar, que já aprendem a morrer na idade em que os outros ainda nem sequer aprendem a viver, que já ajudam os pais, que já são um braço ao remo, uma mão à escota, às vezes uma criança ao mar! estes celerados, tinham ido nos barcos com as redes, ganhar o seu pedaço de pão, estes imprudentes! enquanto as mães inquietas esperavam na praia; e tinham ousado também eles, os facínoras, ignorar as portarias do ministério do reino! Por isso choram na cadeia! (F: 240) Não é difícil reconhecer a confluência de processos através dos quais em ambos os artigos (e não apenas nos dois passos transcritos) Eça procura suscitar no leitor uma forte resposta afetiva. Antes de mais, esse efeito resulta da acumulação de pequenos quadros que desdobram a presença da realidade representada. Mas é também ao nível da elocutio que se joga a eficácia da estratégia queirosiana: aspetos como o léxico da miséria que atravessa os dois textos (as chagas, os farrapos, a fome, a promiscuidade, o frio, a mendicância, etc.), os deíticos e o presente verbal que conferem vividez aos quadros («as redes estão no barco! mãos aos remos! vela ao largo! Partem» – F: 239; «Lá estão na enxovia! As mães choram às grades!» – F: 240; «a cidade está cheia da vossa multidão, que erra por essas esquinas» – F: 292), a repetição de estruturas sintáticas que excita a sensibilidade («têm todas as dores que dá o frio, todas as consumpções que dá a fome» – F: 293; «sem o verem condescendente, sem o verem piedoso» – F: 240) ou as antíteses que aprofundam o dramatismo das situações («já aprendem a morrer na idade em que os outros ainda nem sequer aprendem a viver» – F: 240; «tu cuidas que os vestidos de cetim, de veludo, as peles, as joias, as caxemiras, os 207 perfumes, vêm do ar e de graça, como esse frio que te traspassa!» – F: 293) são fundamentais para o adensamento da atmosfera patética que atravessa textos como estes. Outros aspetos mais elaborados poderiam ser acrescentados a este esboço analítico, nomeadamente aquelas zonas em que o texto explora o pathos da desumanização do indivíduo. No artigo de outubro de 1871, isso é sensível, por exemplo, num passo como aquele em que o pescador é «um pobre homem» que «passa o seu dia remando, molhado, quebrado da luta do mar, para comer à noite, na promiscuidade da mesma gamela com uns poucos de filhos, uma pouca de sardinha» (F: 239): mais do que a miséria que resulta da divisão de «uma pouca de sardinha» por «uns poucos de filhos», impressiona aqui a aproximação de estatutos que a simetria promove entre as duas instâncias, e que desumaniza fortemente os filhos – reforçando assim um efeito que a «promiscuidade da mesma gamela», de resto, já tinha iniciado. No artigo de dezembro, o mesmo princípio subjaz à redução da vida dos mendigos a um esquema elementar e embrutecedor de funções desumanizadoras e vazias de sentido: «Vivem nos lugares ignorados, dormem pelos bancos […]; comem de vez em quando; têm todas as dores que dá o frio, todas as consumpções que dá a fome; […] e um dia, embrulhados numa serapilheira, são deitados à vala!» (F: 293). Há, no entanto, um derradeiro enquadramento que me parece importante fazer e que creio pode tornar mais claro o alcance em termos argumentativos de todo este investimento em aspetos suscetíveis de apelar à sensibilidade do leitor pela via da comoção. Nos exemplos acima abordados, como já referi, a exploração de imagens capazes de convocar as múltiplas faces do sofrimento cruza-se com uma vituperatio que introduz uma componente de estranhamento na sequência, já que as mesmas vítimas da pobreza e da miséria são descritas como portadoras de uma culpa: as crianças detidas são «criminosos», «bandidos», «celerados», «facínoras»; o mendigo é «vil e torpe», é um «homem pervertido», um «velhaco», um «animal», um «imbecil», um «ignorante»299. Ora, se a culpa é uma inferência legítima do seu encarceramento (visto que uma detenção judicial a pressupõe), ela neste texto existe apenas nos epítetos acusadores, que não encontram qualquer correspondência nos respetivos atos, 299 Uma pseudo-censura semelhante a enquadrar um passo igualmente apontado à compaixão do leitor observa-se, por exemplo, no artigo em que Eça afeta aprovar a decisão do Encomendado de Santos-o-Velho de excluir da missa as crianças que choram: «E essas mães pobres podem talvez dizer-nos / Que elas são pobres; que não têm quem lhes fique em casa a tomar conta dos filhos; que os não querem deixar sós no berço, chorando no isolamento, e se são mais crescidos às vezes ao pé do lume, ou arriscados a caírem, a ferirem-se, a virem para a rua, a serem atropelados; que não se querem separar deles; que enfim são pobres, sem pão farto, e que, vendo-se desgraçadas neste mundo, só lhes resta o sonho consolador de um céu que repara! Ora isto é talvez assim, ainda que se percebe que estas razões são inspiradas por Satanás» (F: 232). 208 isto é, na ‘realidade’, nos ‘factos’. Eça explora justamente as consequências retóricas desta bizarra coincidência entre acusação e vitimização, que é na verdade uma modalidade da contradição: uma forma algo oblíqua de assinalar, também por esta via, o modo disfuncional como o Estado, através do seu corpo jurídico e judicial, se relaciona com a realidade. Em última instância, por conseguinte, o que desta forma se pretende não é propriamente gerar comoção e piedade, mas promover nos leitores a transferência de toda esta vibração afetiva para o arco da indignação. A combinação entre o registo compassivo e as notações sarcásticas que o pontuam opera no auditório um movimento de basculação emocional: no contexto em que ocorrem, a censura dos inocentes e o aplauso da atuação das autoridades encenam discursivamente uma ordem perturbadora da estabilidade emotiva do leitor, que é transportado entre o polo mobilizador do registo dramático e a aparente desconstrução desse dramatismo. Na verdade, porém, o dramatismo destas sequências não só não é verdadeiramente desconstruído pelas irrupções de ironia, como é acentuado por elas. Ao simular uma adesão à posição que de facto está a censurar, e uma adesão normalmente firmada com traços de exagero, Eça acaba por desferir sobre ela um violento golpe visto que reorienta o fluxo afetivo gerado pela via do pathos para a direção pretendida – isto é, para aqueles cuja pretensa voz assume ao defender as suas iniquidades. Mas esse fluxo afetivo entretanto mudou de natureza: a comoção transmutou-se num sentimento de indignação que incidirá sobre as autoridades, os legisladores, o Estado – todos aqueles que surgem como responsáveis pelos quadros de miséria exibidos. Este movimento que o espírito do leitor é induzido a fazer entre a proximidade da empatia e da comoção, mesmo da compaixão, e o distanciamento da ironia e do sarcasmo é, afinal, aquilo que recentra o discurso queirosiano no plano da argumentação. 3.9. Da importância do pormenor Num célebre texto publicado em 1956, Roman Jakobson propõe a vinculação do realismo ao polo metonímico da linguagem: seriam sobretudo as relações de contiguidade que assegurariam a progressão e a significação da escrita realista, e Jakobson refere-se, a dado 209 ponto, à predileção do realismo pelos pormenores sinedóquicos300. Em «Eça de Queirós e a estética do pormenor», Carlos Reis explora precisamente «a conexão entre o pormenor, a descrição e a metonímia» (20) na ficção queirosiana, chamando a atenção para a «tensão permanente que, desde muito cedo, o escritor adivinhou» existir entre «o pormenor e a totalidade» (30). O óculo que o diabo empunha na imagem que ilustra a capa d’As Farpas parece precisamente anunciar a vigência de um princípio organizador da perceção do mundo assente em relações de natureza sinedóquica – e a verdade é que um dos eixos fundamentais da estratégia persuasiva d’As Farpas consiste na ideia de que é a observação do pormenor que permite configurar de uma forma esclarecida a perceção do todo. As ‘farpas’ queirosianas alimentam-se sobretudo de casos particulares que confirmam o diagnóstico de crise nacional exposto no ‘prólogo’ do primeiro número. A tese aí apresentada é relativamente genérica: Eça postula a priori o estado crítico da nação («o país está desorganizado»; «o país está perdido») e opera em seguida nesse artigo inicial, como ensaio demonstrativo, um primeiro exercício de divisão do todo nacional numa série de secções correspondentes a alguns dos pilares institucionais do país: religião, monarquia, imprensa, literatura, família, etc. Cada uma destas secções é descrita na medida em que incorpora à sua escala, e em função da sua natureza específica, os vícios apontados ao país globalmente considerado, mas é sobretudo ainda a afirmação de uma condição problemática que está em causa, mais do que propriamente a sua sustentação detalhada. A partir deste artigo inicial, um dos procedimentos mais consistentes d’As Farpas consistirá em ilustrar com exemplos renovados os pontos críticos assinalados no ‘prólogo’. Eça, no entanto, terá o cuidado de imprimir nos seus textos a ideia de que a opção pela abordagem do caso particular, do pormenor, se prende acima de tudo com uma questão de escala e não com uma questão de escolha. A tese-matriz d’As Farpas encontra-se plasmada nos dois princípios subjacentes ao retrato do país inscrito no terceiro parágrafo do ‘prólogo’: todo o país está decadente. Esta é a síntese daquilo que é exposto nesse terceiro parágrafo, a tese para a qual remetem os princípios de totalidade e de decadência que o atravessam e lhe conferem sentido. Ora, caso esta tese tenha eco na realidade, qualquer que seja o ponto do país para onde se olhe, será inevitável encontrar sinais dessa decadência, e Eça procurará convencer os seus leitores de que à seleção dos casos sobre os quais recai o foco da sua 300 «Seguindo a linha das relações de contiguidade, o autor realista realiza digressões metonímicas, indo da intriga à atmosfera e das personagens ao quadro espácio-temporal. Mostra-se ávido de pormenores sinedóquicos» (s/d: 57). 210 atenção não preside outro critério senão o acaso. Esta intenção é evidente quando Eça se propõe expor a incompetência dos deputados portugueses a partir do exemplo casual da Câmara em exercício (embora, depreende-se, dispusesse para esse fim dos casos análogos de Câmaras anteriores)301; quando escolhe uma peça de teatro aparentemente aleatória para exemplificar a decadência que atravessa toda a arte dramática nacional302 ou quando enuncia uma dada postura municipal como não mais do que emblema do alheamento da realidade que revela o conjunto da produção legislativa da Câmara Municipal de Lisboa303. Nos raros momentos em que As Farpas captam no seu enquadramento um aspeto que não contribui para o diagnóstico de decadência nacional, este é por norma objeto de uma abordagem que sublinha a sua lateralidade: vejam-se os casos do artigo em que Eça evoca a memória de Júlio Dinis, que se apresenta como um corpo estranho, um parêntese304 na torrente crítica da publicação, ou a referência elogiosa aos trabalhos de António da Costa sobre o problema da instrução em Portugal, que é relegada para nota de rodapé (F: 408). A presumível ambição d’As Farpas seria, pois, proceder a uma cartografia minuciosa da decadência nacional, assegurando o mapeamento integral dos aspetos em que ela se verifica. É isso, pelo menos, que indica a disposição programática de examinar, «dia por dia», «cada facto contemporâneo»305, uma missão de paciência e exaustividade que de alguma forma antecipa a representação do labor naturalista inscrita em Le Roman Expérimental, de Zola. Mas, se «cada facto contemporâneo» se encontra investido do mesmo signo de prostração geral, isso significa que o mapa da decadência portuguesa coincide, em toda a sua extensão, com o mapa do país – e é a partir deste pressuposto que Eça e Ramalho se empenharão em fazer passar a ideia de que o óculo d’As Farpas se pode deter em qualquer ponto do território político, social ou cultural do país com a garantia de que esse ponto conterá sinais particulares do abatimento nacional. O projeto extravagante de um «mapa 301 «A Câmara (tomemos a atual, para exemplo) não tem princípios, nem ideias […]» (F: 48). 302 «De resto que mise-en-scène! Tome-se para exemplo o D. Carlos: fatos remendados num paninho torpe, sala roída da traça […]» (F: 309). 303 «– Mas a câmara municipal, ao menos, vela pela cidade? / – Zelosamente. Por uma das suas posturas, por exemplo, é proibido a qualquer cidadão, sob pena de uma grave multa, ter em sua casa mais de seis meses – um lobo danado!» (F: 327). 304 E, à semelhança do que acontece com qualquer parêntese, a interrupção que este texto representa está devidamente sinalizada tanto no início («Tréguas por um instante nesta áspera fuzilaria irónica! Esta página é um parêntese tranquilo e meigo, onde pomos a lembrança de Júlio Dinis.» – F: 181) como no fim («Vamos, vamos! Fechemos este parêntese repousado e sereno: já do outro lado vemos inumeráveis, como abelhas vingadoras, as ironias aladas, leves, que com um rumor impaciente zumbem no ar tranquilo!» – F: 183). 305 «E aqui começamos, serenamente, sem injustiça e sem cólera, a apontar dia por dia o que poderíamos chamar – o progresso da decadência» (F: 17); «E na epiderme de cada facto contemporâneo cravaremos uma farpa» (F: 18). 211 desmesurado» da decadência nacional (que, como no texto de Borges, seria «um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele» – 1998: 223) dá assim lugar a uma rede necessariamente limitada de ‘focos cartográficos’, focos esses que, embora incidindo sobre uma fração deste vasto território crítico, acabam por expandir a amplitude do seu alcance através de processos de transferência metonímica e sobretudo sinedóquica. Quando, no terceiro número, Eça aborda o caso de um folheto sobre a Comuna de Paris cuja venda é proibida pelo governo já depois de esgotada a edição, esta decisão extemporânea, uma vez referida, é instantaneamente inserida num quadro de inépcia sistemática que abrange todo raio de atuação da instância visada: «O livro é publicado em maio, esgotado em junho, e proibido em julho! A única crítica é a gargalhada! […] Um governo decreta? gargalhada. Fala? gargalhada. Reprime? gargalhada. Cai? gargalhada» (F: 123). Isto é, embora o texto se proponha dissecar com detalhe o caso concreto da proibição de um folheto político, ele não destaca este caso daquilo que é a prática governativa típica do país – pelo contrário, é para essa prática típica que o caso aponta. Este movimento através do qual se altera a distância focal da abordagem crítica é determinante para a transição, n’As Farpas, do caso particular para o quadro geral – a transição do órgão para o corpo, do sintoma para a doença. O elenco de aspetos indicativos da crise nacional que Eça e Ramalho irão pacientemente colecionando confirma, assim, o retrato negro de Portugal exposto no prólogo, que é o único artigo que tem como tema imediato o país globalmente considerado. Todas as restantes farpas podem, portanto, ser lidas como variações sinedóquicas da primeira, na medida em que representam derivações elípticas do seu foco analítico. E, sempre que o óculo crítico d’As Farpas abre o campo de visão de forma a revelar o enquadramento de um pormenor abordado, como que recorda o regime sinedóquico que deve presidir à leitura dos artigos da publicação. Nos passos em que esse movimento de oscilação da distância focal é desenhado com maior amplitude, ele comporta normalmente duas etapas: aquela em que o caso particular aponta diretamente para a classe de que é elemento constitutivo imediato (um mau diplomata, por exemplo, deslustra antes de mais a classe dos diplomatas), e aquela em que esse caso é projetado à escala do país (um mau diplomata deslustra, em última instância, a nação). Naturalmente, estes dois patamares, ainda que de forma implícita, organizam o alcance da generalidade dos episódios abordados n’As Farpas. O oficial português que, num 212 artigo do número de junho-julho de 1872, trata indignamente o prisioneiro carlista que se entregara às autoridades portuguesas é, em primeiro lugar, sinédoque do exército («O senhor tenente, comandante da escolta – esse, é um sintoma. É a consciência do exército» – F: 493), mas a sua atuação neste caso é também, numa escala mais abrangente, sinédoque do país («[…] é bem digno deste país que por isso que tem a inépcia não podia deixar de ter a maldade» – ibidem). Da mesma forma, no artigo em que aborda a escassez de roupa dos presos portugueses, este caso particular é parte do problema sistémico das condições desumanas das cadeias portuguesas306, apontando igualmente, em última instância, para o quadro sistémico da decadência do país («Ao menos sejamos francos; em lugar das cinco quinas, ponhamos as cinco nódoas» – F: 498). Mas, mesmo que essas remissões não sejam textualmente apontadas, elas subjazem ao modo de funcionamento genérico dos textos. Abundantemente instruído no sentido de ler As Farpas em modo sinedóquico, o leitor automatiza essa modalidade de leitura, que acaba por vigorar quer quando a relevância em termos nacionais dos temas abordados (o exército, a emigração, a educação, etc.) a convocaria inevitavelmente, quer quando o texto incide sobre aquilo que é anunciado como «um facto singular» (F: 557), «uma curiosidade toda particular» (F: 497), um «estranho caso» (F: 277) ou «uma novidade excêntrica» (F: 278). Este princípio, assente no funcionamento da sinédoque, que permite que sejam transferidas para planos sucessivamente ascendentes as leituras suscitadas pela abordagem de aspetos singulares da realidade portuguesa é absolutamente central na produção de sentido dos textos d’As Farpas. É, na verdade, mais produtivo do que o princípio metonímico propriamente dito – Michel Le Guern, em Semântica da Metáfora e da Metonímia, refere precisamente que é a sinédoque, mais do que a metonímia, que sintetiza o modo intrínseco da escrita realista307. Nas farpas queirosianas, a metonímia está sobretudo ligada, segundo creio, à fluidez das identidades. Mais do que em casos como os da leitura metonímica da 306 «De entre tantas faltas das cadeias – a falta de espaço, a falta de ar, a falta de pessoal, a falta de segurança, a falta de asseio, a falta de alimento, a falta de moral, a falta de higiene, queremos destacar, como um diamante de um colar – a falta de roupa» (F: 497). 307 «Um levantamento sistemático das metonímias nos textos franceses provenientes de estéticas diversas obriga a admitir que não existe correlação entre a literatura realista e a metonímia em geral. Em compensação, é absolutamente evidente que um tipo especial de metonímia, a sinédoque da parte pelo todo, ocupa um lugar privilegiado nos textos realistas: é um meio de que um escritor se serve frequentemente quando deseja fazer incidir a atenção dos seus leitores sobre os detalhes da realidade que ele descreve, e esta é sem dúvida uma das preocupações essenciais da literatura realista» (1974: 154). 213 mala com que Pedro II do Brasil se apresenta perante a Europa308 ou da censura recorrente à transferência do foco do culto religioso para a esfera metonímica dos seus aspetos exteriores, penso, por exemplo, na forma como algumas metonímias através das quais a mulher é evocada acentuam distintas dimensões da sua identidade social: desde aquela que está associada ao recato doméstico, que uma literatura licenciosa ameaça ao introduzir-se «nos cestos de costura»309, até à que a representa essencialmente investida do papel de tentação310. Se concebermos o plano metonímico como aquele em que dominam as relações de contiguidade, podemos reconhecer essa matriz genérica na representação da grande questão global da decadência do país sob a forma de uma rede de células críticas. Essas relações de contiguidade são claramente visíveis num exemplo acima referido, o do colar de faltas das cadeias portuguesas que confinam com aquela que acabará por concentrar o foco do texto: «De entre tantas faltas das cadeias – a falta de espaço, a falta de ar, a falta de pessoal, a falta de segurança, a falta de asseio, a falta de alimento, a falta de moral, a falta de higiene – queremos destacar, como um diamante de um colar, a falta de roupa» (F: 497). Se cada um destes elementos funciona isoladamente como sinédoque da deficiência das cadeias (e, por essa via, como sinédoque de uma nação deficiente), este regime de contiguidade que o texto produz põe em evidência o facto de cada célula do corpo do país sobre a qual incide o foco analítico d’As Farpas se encontrar rodeada por outras células que reproduzem e multiplicam a mesma falha, ou falhas semelhantes. O que este passo sugere é que qualquer das restantes falhas elencadas poderia suscitar um artigo d’As Farpas: a questão da falta de roupa não se destaca em si mesma das restantes faltas, nem é aparentemente mais grave do que as outras; são As Farpas que decidem destacá-la. Uma enumeração deste tipo pode, por conseguinte, ser lida como um fragmento de uma espécie de índice virtual da totalidade dos artigos que 308 «A mala era uma insígnia: a insígnia do seu incógnito. S. M. trazia em vagão a mala, como usa no trono o ceptro: como a coroa é o sinal da sua realeza no Brasil, a mala era o sinal da sua democracia na Europa» (F: 372). 309 Num artigo do segundo número, aborda-se o perigo que a literatura romântica de pendor erótico representa para a mulher, exposta de modo quase acidental ao contacto com ela: «Colocado assim à larga, na anarquia da voluptuosidade e do lirismo, aí está o que o poeta ensina, aconselha, expõe num jornal popular, com uma tiragem de 20.000 exemplares, que anda por cima das mesas e nos cestos de costura!» (F: 74). 310 Refiro-me nomeadamente ao passo em que, no número de fevereiro de 1872, a mulher metonimizada é a representação de uma das tentações a que se expõem aqueles eclesiásticos que, a despeito dos constrangimentos da sua condição, penetram no ambiente mundano de um sarau da corte: «E que tinham em torno de si os srs. eclesiásticos do concerto? – Os moles sofás que inclinam às preguiças românticas, as músicas penetrantes e dissolventes que são o catecismo sonoro do amor, e as damas decotadas, srs. eclesiásticos! Os cabelos lustrosos e magnéticos pendiam caídos, constelados de joias: os pescoços brancos tinham tons lácteos e a cor macia das carnações delicadas tocadas da luz: o colo arqueava-se, com o polido dos mármores pálidos, na lânguida franqueza da nudez!» (F: 379). 214 poderiam ser escritos sobre cada um dos aspetos que confinam com aqueles efetivamente tratados – o que recupera a ideia do «mapa desmesurado», o projeto de elenco exaustivo dos males instalados no país. Como afirmei acima, a sinédoque é o modo mais produtivo de ler As Farpas – na verdade, em última instância, As Farpas são também uma sinédoque do seu próprio projeto. 3.9.1. Do sintoma ao sistema Um número muito significativo das farpas queirosianas tem como ponto de partida um caso que exibe, em primeira instância, um traço de singularidade. É a «curiosidade particular», o «estranho caso», o «facto singular», a «novidade excêntrica» aquilo que polariza, num primeiro momento, a atenção de Eça naqueles textos que incidem sobre acontecimentos aparentemente avulsos: o contrato celebrado entre o Estado e determinado historiador, uma praça de peixe que ostenta características arquitetónicas inusitadas, uma greve em que os operários parecem reivindicar um salário inferior àquele que a entidade patronal oferece, o concurso público através do qual é contratado para um hospital o médico menos qualificado, etc. Como observa Annabela Rita, esta forma de apresentação dos assuntos que destaca a sua natureza singular reveste-se, antes de mais, de um propósito estratégico ao nível da mobilização da leitura, do lectorem attentum parare: estamos perante «a surpresa curiosa como motor da receção (escuta, observação ou leitura)» (1988: 112). Esta natureza excecional dos factos abordados não é, no entanto, compatível com o estatuto de sintoma. As Farpas propõem-se colecionar casos ilustrativos da decadência do país, casos que provem o diagnóstico inicial de crise generalizada – mas essa crise, como é evidente, não pode ser confirmada com base em situações estritamente atípicas. Se procurarmos identificar as vias através das quais se processa, nas farpas queirosianas, a transição de um enfoque textual centrado no que é aparentemente irregular para o âmbito da projeção de um padrão capaz de explicar o todo nacional, concluiremos que elas se organizam essencialmente em torno de dois eixos. 215 Annabela Rita refere-se ao processo através do qual a singularidade é reconduzida à categoria de representatividade pela via da acumulação dos exemplos: «o caso singular […], nas farpas, […] tende a ser um exemplo entre muitos, esclarecendo, afinal, o funcionamento do sistema, ou, pelo menos, o de uma das suas áreas» (ibidem). Este é, na sua essência, um dos eixos a que me refiro. Consideradas isoladamente, as situações que Eça trata em muitos dos seus artigos têm toda a aparência de anomalias do sistema, mas um sistema em que se sucedem as anomalias é ele próprio um sistema anómalo. O primeiro eixo através do qual se processa a passagem do pontual ao sistemático é, então, um eixo que se expande horizontalmente e progride através da acumulação de casos: projetando-se sobre a superfície do sistema, assinala os pontos críticos que nela se destacam, e a crescente densidade desta linha confirma o diagnóstico de crise instalada, proposto no número inaugural. Mas há também um eixo vertical a estruturar este processo; um eixo que progride, não em extensão, mas em profundidade, e que se traduz numa atitude inquisitiva, que procura compreender as razões subjacentes à desconformidade do caso anómalo. O resultado do inquérito traduz-se, em regra, na verificação de que aquilo que à superfície parece uma anomalia é, na verdade, uma decorrência natural da inoperacionalidade do sistema. No número de junho-julho de 1872 encontramos um bom exemplo daquilo a que me refiro. Num dos artigos, está em causa de novo um naufrágio, desta vez real e com consequências dramáticas: uma lancha virou-se na Foz e, das 24 pessoas que seguiam a bordo, 14 perderam a vida. Este é o ponto de partida do texto que Eça escreve, e o primeiro parágrafo, seco, esquemático, linear, vai buscar a sua força precisamente à forma direta com que confronta o leitor com esta realidade violenta: «Na Foz, há pouco, voltou-se uma lancha. Morreram 14 homens» (F: 490). Esta frase – este parágrafo – só não reproduz com notável exatidão aquilo que se poderia designar por ‘despojamento retórico do lead jornalístico’ (como se esse despojamento não fosse ele próprio resultado de um rigoroso trabalho sobre a linguagem…) porque a opção de isolar, como período autónomo, a sequência «Morreram 14 homens» é, em si mesma, uma operação visivelmente retórica. O início abrupto, o laconismo cortante, a delimitação do período que nos diz que morreram 14 homens, evitando que este dado se dilua, por pouco que seja, no fluxo sintático da frase, são aspetos que conferem ao naufrágio da Foz o estatuto de anomalia trágica, de acontecimento que rompe violentamente a normalidade do quotidiano e se inscreve nele como um golpe pungente. 216 Se, no entanto, passarmos desta primeira frase do artigo diretamente para a penúltima, constatamos que o tratamento textual de que se reveste a menção ao naufrágio enquanto acontecimento sofre uma considerável alteração: «A areia do Cabedelo reluz ao sol, as senhoras passeiam na Cantareira, as gaivotas voam, e os que naufragam morrem» (F: 492). Eis, afinal, a morte integrada no curso natural das coisas, destituída de impacto, partilhando o seu lugar no mundo com as gaivotas e os passeios das senhoras. Que se passou para que tivesse ocorrido esta neutralização daquilo que, no início da farpa, é representado de forma a atingir com violência a placidez do leitor? A leitura do artigo revela-nos que a sua estrutura assenta no encaixe sequencial de uma série de enquadramentos que procuram esclarecer o facto inicial: as 14 mortes do naufrágio podiam ter sido evitadas caso o salva-vidas da Foz tivesse socorrido a lancha, mas não o fez; o salva-vidas tem uma comissão inoperante e um fiscal que finalmente esclarece que o barco se encontra inativo porque não tem tripulação; quando se procura dotar o salva-vidas de tripulação, a comissão depara-se com a recusa de todos os marinheiros que se acercam do equipamento; no final, conclui-se que o salva-vidas não pode operar porque tem o casco podre. Esta incursão vertical pelas circunstâncias que enquadram o naufrágio acaba por alterar a forma como este é percebido. Aquilo que parecia inscrever-se no cenário da Foz como um acontecimento trágico e excecional é, no fim de contas, apenas a consequência natural de um conjunto de deficiências estruturais (neste caso, trata-se de estruturas de socorro substituídas por uma espécie de simulacro, de trompe l’oeil: o barco que se vê mas está podre, a comissão que existe mas não faz nada, etc.) situadas a montante. Por isso, morrer no mar tem, afinal, de ser encarado com a naturalidade das coisas inevitáveis. É este o segundo eixo através do qual o facto singular é integrado no sistema: ele representa a incursão vertical pelas circunstâncias que explicam os casos anómalos (a lógica capitalista que justifica a estranha atitude das fábricas de tabaco; a lógica dos interesses instalados que esclarece a atitude ambígua dos deputados perante a reforma da Carta, etc.). O resultado destas duas operações é a progressiva constatação de que aquilo que parece ser da ordem do desvio se vai tornando recorrente e enquadrável – isto é, previsível. Os casos «singulares» anunciam invariavelmente algo que está para além do plano imediato da sua ocorrência, e As Farpas, número após número, vão expondo à compreensão do leitor a extensão e a profundidade do diagnóstico de decadência do país, por um lado através da acumulação de casos, por outro através da explicação da respetiva engrenagem. 217 Ao longo deste capítulo procurei perceber de que forma as farpas queirosianas projetam nas suas práticas discursivas os seus próprios postulados antirretóricos e nelas incorporam uma reiterada celebração da lógica como matriz comunicacional. Como creio que se foi progressivamente tornando claro, a construção do sentido nos artigos que Eça escreve para As Farpas não tem os seus fundamentos situados fora do território da retórica – antes tende a explorar um arco que liga, em particular no plano argumentativo, o que é do domínio da lógica àquilo que é do domínio da retórica. A vinculação d’As Farpas à lógica traduz-se sobretudo na mobilização de uma série de movimentos enquadráveis na categoria perelmaniana dos argumentos quase lógicos, de que abordei em particular aqueles vocacionados para a identificação e a desmontagem de casos de contradição; no entanto, esses dispositivos, que muitas vezes sinalizam de modo ostensivo a sua matriz lógica, não só não excluem o recurso a expedientes argumentativos de carácter afetivo, como por vezes se encontram eles próprios investidos de um estatuto ambíguo, participando a um tempo das duas naturezas. O quarto e último capítulo debruça-se sobre um aspeto incontornável do perfil comunicacional d’As Farpas, e que é também fulcral para se compreender melhor o lugar da retórica nos textos da publicação: o humor. Apesar da hegemonia do registo humorístico na economia discursiva d’As Farpas; apesar de esse registo ser apresentado logo nos primeiros parágrafos do texto inicial do primeiro número como o único capaz de responder com eficácia aos desafios colocados pelo momento histórico em curso; apesar de vinte anos depois, na «Advertência» que escreve para a edição de Uma Campanha Alegre, Eça evocar os seus artigos de 1871-2 acima de tudo como textos humorísticos – a verdade é que o estatuto do humor queirosiano n’As Farpas não é de forma nenhuma imune ao regime de múltiplas ambiguidades que recobre, de uma forma geral, todo o tecido retórico dos textos desta publicação. 4. Humor, distorção e realismo: ambiguidades retóricas 221 4.1. Humor: uma geografia instável O humor é um continente formado por muitos países, de que sabemos enunciar o nome mas cuja localização é muitas vezes incerta. A comédia, a sátira, a caricatura, a ironia, o espírito, o burlesco, o grotesco, o escárnio, a paródia, a farsa, o ridículo, o sarcasmo, o pastiche ou o nonsense são territórios que associamos a esta ampla região, situados uns em zonas mais centrais, outros em posições periféricas, alguns com boa parte do seu território já fora dos limites do continente – e, de um modo geral, todos com intricados problemas no que diz respeito à definição de fronteiras. Há desde logo dúvidas sobre a identidade desse continente: uma tradição filosófica milenar elege o cómico como conceito mais amplo, do qual o humor seria uma das espécies (a par do sarcasmo, da ironia, da sátira, do espírito ou do nonsense); só mais recentemente o humor passou a ser considerado o âmbito mais lato de um conjunto de modos específicos da sua manifestação (Rush, 1998: 6; Ermida, 2002: 18-20). Outras leituras desta geografia complexa, nem sempre concordantes, procuram estabelecer identidades e desenhar oposições. Uma tradição anglo-saxónica empenha-se em distinguir o humor do espírito (o wit inglês), este mais obscuro, mais subtil, mais refinado, mais cortante, e o humor mais ameno, mais claro, mais conciliador (cf. Ermida, 2002: 28-34). Mas a fronteira mais discutida é a que separa o humor da ironia: Jankélévitch (1964: 171-172) associa a ironia à malícia e o humor à bonomia; Bergson (1993: 91-2) considera-os ambos uma forma de sátira, mas distingue a ironia, esta tendencialmente oratória, moral, implicando maior envolvimento, do humor, cujo cariz é mais técnico, mais preciso, mais distanciado; na mesma linha, Frank Évrard (1996: 38) crê que a ironia comporta um juízo sobre o real, ao passo que o humor, desprovido de convicções, pretende sobretudo abalar a suas estruturas; Lola Xavier (2007: 67), no entanto, considera que a ironia, essa sim, «faz vacilar as normas comummente 222 aceites», e que, ao contrário da sátira, não está presa a um desígnio moral; Vergílio Ferreira, invertendo em definitivo as polaridades em causa, considera o humor «grave, sério, profundo», ao passo que a ironia é «coisa ligeira», «“fácil” e superficial» (1986: 292). Massaud Moisés (2004: 225-228), por seu lado, associa ironia e humor, os quais suscitam o sorriso, mas opõe-nos ao cómico, cuja índole mais baixa provoca o riso. Freud distingue entre si a piada, o humor e o cómico – mas fá-lo a partir de uma abordagem psicanalítica (a primeira representa uma compensação da carga de energia psíquica que seria libertada pela esfera das inibições, ao passo que o humor traduz esse efeito compensatório na esfera do sentimento, e o cómico na esfera do pensamento – cf. Ermida, 2002: 56-8). Este universo fluido acaba por tornar quase sempre problemática a fixação da identidade genética do humor (ou do cómico) característico de determinado autor, por vezes mesmo da identidade genética a que se encontra vinculada determinada obra (quando não determinada passagem dessa obra). Em Sobre o Humorismo de Eça de Queirós, ensaio publicado em 1943, Vergílio Ferreira defende que os processos do cómico queirosiano são os do humor e não os da ironia. Fá-lo sobretudo a partir das distinções entre os dois conceitos apresentadas por Jankélévitch e Bergson, e acaba por reconhecer duas coisas: que a sua proposta de enquadramento do cómico no âmbito do humor é escorregadia – e que não é fácil fazer coincidir as teses de Bergson e de Jankélévitch311 (1943: 5-9). Apenas dois anos depois, em 1945, Mário Sacramento publica Eça de Queirós. Uma Estética da Ironia, que nos apresenta a obra queirosiana profundamente marcada pelo traço da ironia, aqui entendida como a capacidade de expor as contradições do mundo sem sobre elas se formular um juízo (mas As Farpas situam-se, em termos gerais, num ponto anterior ao percurso de superação irónica que a obra queirosiana desenharia. Aí, afirma Mário Sacramento, não se pode falar ainda em ironia, «mas em algo mais preciso – o riso» – 1945: 93). No entanto, Eça atravessará esse grande território do humor sem dar grande atenção às suas fronteiras internas. Olhando para o caso específico d’As Farpas, basta ver como elas próprias reconhecem que nas suas páginas se cruzam o humor (F: 17, 506), a ironia (F: 16, 183), a sátira (F: 198, 508), o espírito (F: 199), o escárnio (F: 139), a caricatura (F: 216, 351, 509), a galhofa (F: 17), o chiste (F: 160) ou o epigrama (F: 506, 507). 311 Quarenta anos mais tarde, na secção relativa a 1983 do volume IV de Conta-Corrente, Vergílio Ferreira haveria de rever a filiação do cómico queirosiano ao humor proposta em Sobre o Humorismo de Eça de Queirós: «Mas há logo no título um equívoco que me não convém. É que Eça não foi um humorista mas um ironista» (1986: 292). 223 É, por isso, instalado numa amplitude de frequência muito larga, sem particular preocupação de proceder a classificações modais, que me proponho abordar neste capítulo o humor dos textos queirosianos d’As Farpas. Da ironia mais (ou menos) subtil à sátira mais feroz, das «palavras distraídas» (F: 506) àquelas que são «ferro em brasa» (F: 124), As Farpas oferecem-nos uma gama diversificada de modalidades e processos do cómico. Não é, porém, a sua distinção e catalogação que me interessa: interessa-me, sim, perceber o papel do risível no desenho de uma estratégia comunicacional que elege o humor como instrumento fulcral da sua eficácia. Como vimos, As Farpas, dada a sua vinculação a uma ideologia da racionalidade, declaram guerra à retórica enquanto exercício de manipulação emocional: a via de persuasão celebrada nas suas páginas é a da argumentação virtuosa, aquela que é produto de um raciocínio exato e rigoroso, informado em última instância pelo arquétipo da demonstração apodítica. Mas este modelo talvez não seja, afinal, tão eficaz na prática como teoricamente: entre outras coisas, ele pressupõe, como condição da sua eficácia, um auditório constituído por entidades dotadas de uma razão competente e uniformemente esclarecida. Ora, ainda que o bom senso seja invocado por Eça, logo na abertura do primeiro texto, como condição suficiente para ler As Farpas, os autores do projeto tinham consciência de que a realidade – como, de resto, acontece frequentemente – era um pouco menos ideal (um pouco menos perfeita, um pouco menos homogénea) do que aquilo para que apontavam essas linhas inaugurais. A carta a Joaquim de Araújo em que Eça traça o perfil de Ramalho inclui algumas passagens fundamentais para se compreender a forma como os criadores d’As Farpas conceberam desde o início a sua missão e a sua estratégia – e, nomeadamente, para entender o lugar que nesse quadro é ocupado pelo humor. Os artigos d’As Farpas insistem com frequência na ideia de que o seu registo humorístico é uma emanação direta e inevitável do estado de decadência da realidade nacional. No entanto, nessa carta de 1878, é um pouco diferente o papel que Eça atribui ao humor. Ele é, afinal, uma alternativa à argumentação – e, mais do que isso, é a única modalidade crítica verdadeiramente eficaz junto de um segmento da população que é, de resto, maioritário: O riso é a mais útil forma da crítica, porque é a mais acessível à multidão. O riso dirige-se não ao letrado e ao filósofo, mas à massa, ao imenso público anónimo. É por isso que hoje é tão inútil como irreverente rir das ideias do passado: a multidão não se ocupa de ideias, ocupa-se das fórmulas visíveis, convencionais das ideias; por exemplo: o povo em Portugal, nas províncias, não e católico – é padrista: que sabe ele da moral do Cristianismo? da teologia? do ultramontanismo? Sabe do santo de barro, que tem em casa, e do cura que está na igreja. E as Farpas mostram um alto bom 224 senso, argumentando sobre as ideias para os letrados – e rindo das fórmulas para o público […]. (CP: 118) Um passo como este torna claro que o humor d’As Farpas é concebido pelos seus criadores como um instrumento posto ao serviço de uma agenda (a crítica), investido de uma estratégia (a derrisão), apontado a um público específico (a multidão pouco ilustrada). E isso confere ao humor um estatuto distinto daquele de que se revestem as suas manifestações inconsequentes, que visam sobretudo o divertimento. O espírito de Eça de Queirós é por demais conhecido: a evocação que dele fazem os seus contemporâneos testemunha-o312; Oliveira Martins, numa carta a Teófilo Braga datada de 1870, refere-se a Eça como «um humorista»313 – e Mário Sacramento vê neste rótulo precisamente a marca do causeur, não a do escritor (2002: 81). Mas o humor d’As Farpas é mais do que a manifestação mediática desse espírito: é o humor vertido no molde de um projeto crítico cujo propósito é produzir um determinado efeito sobre o mundo, pela via do efeito operado sobre o seu auditório. Num dos capítulos finais de O Nome da Rosa, de Umberto Eco, Jorge de Burgos expõe a Guilherme de Baskerville as razões por que temia tanto que o texto aristotélico sobre a comédia fosse conhecido: o velho monge deixa bem claro que não o assusta o carácter leviano do riso, desde que este se confine às manifestações consentidas e balizadas pela ordem litúrgica. Não é o riso catártico que o inquieta, o riso episódico, cujo sentido cessa depois de fechado o parêntese da sua eclosão; o que se perfila como uma ameaça ante o seu entendimento é aquilo a que ele chama «a retórica da irrisão» (Eco, s/d: 470), isto é, o riso como instrumento ao serviço de uma estratégia de reconfiguração efetiva e duradoura da ordem do mundo. É neste sentido que me parece pertinente, no âmbito deste trabalho, abordar o humor nas farpas queirosianas – inquestionavelmente o dispositivo com maior potencial ofensivo dos seus textos. 312 Vejam-se, por exemplo, os textos que Alberto Oliveira, Manuel de Sousa Pinto ou Pinto de Carvalho publicam no In Memoriam de Eça (Oliveira, 1922: 41-43; Pinto, 1922: 116; Carvalho, 1922: 127-128). 313 «Além do Antero e de mim, temos na redação o Luciano; um humorista, o Eça de Queirós, um poeta Manuel de Arriaga, e um rapaz pouco conhecido no mundo literário mas de imensa valia – Batalha Reis, agrónomo» (Braga, 1903: 79). 225 4.2. De que se ri o leitor? A realidade como caricatura de si própria Num artigo publicado no número de agosto de 1871, Ramalho Ortigão assume em nome d’As Farpas uma curiosa posição relativamente ao riso. Sustenta Ramalho neste texto que As Farpas se riem do país, de tudo o que nele se situa entre o bizarro e o grotesco, mas que elas não têm como propósito fazer rir os leitores. De resto, explica ainda Ramalho, para que o leitor d’As Farpas se risse, este só precisaria de encarar o país e olhar para ele – para o estado da força pública, para os manuais de instrução escolar, para a marinha, para as colónias, para as estradas, para os hospitais, etc. Essa experiência imediata suscitaria o riso sem que fosse necessário submeter qualquer destes aspetos da realidade portuguesa a um tratamento humorístico, uma vez que a todos eles presidiria o mesmo princípio de disfuncionalidade, e este, por si só, faria deles matéria risível (F: 160). Aquilo que Ramalho afirma neste texto é, em síntese, que As Farpas não têm graça nem pretendem tê-la – o que é manifestamente falso. Mas há um ponto incontornável da alegação ramalhiana que justifica esta reivindicação, por parte d’As Farpas, de uma falha que não existe: esse ponto é aquele em que Ramalho encoraja o leitor a olhar diretamente para o país. Em primeiro lugar, As Farpas recusam assim um excesso de protagonismo na génese do riso dos seus leitores porque não pretendem que o filtro dos seus recursos humorísticos adquira demasiada espessura: o leitor deve compreender que, quando se ri de algo faceto ao ler aquilo que As Farpas dizem sobre o país, é o país que é faceto, e não As Farpas. A ideia de que As Farpas se limitam a publicar o registo do seu riso, sem que as suas páginas comportem em si mesmas qualquer intenção ou efeito humorísticos, seria, contudo, a própria negação do humor – mas essa negação surge neste contexto igualmente com um propósito: o de desvalorizar o riso enquanto mero divertimento e enfatizar a sua natureza interventiva, o seu estatuto de dispositivo de ataque e agressão. A tese de que As Farpas se riem mas não pretendem fazer rir situa-se, deste modo, numa primeira instância, entre a encenação de uma atitude autoral desconcertante e a intenção de vincar negativamente o diagnóstico do estado crítico do país. Ela estabelece, no entanto, pontes interessantes quer com outros passos em que a questão do riso é tematizada nas páginas da publicação, quer com alguns apontamentos sobre esta matéria que Eça deixa 226 registados noutros lugares, nomeadamente na carta a Joaquim de Araújo a que fiz referência acima. Comecemos, porém, por recuperar e enquadrar o passo em que Ramalho, em agosto de 1871, nega o propósito de fazer rir os leitores. Ramalho diz que As Farpas não querem que o povo se ria quando lê os textos nelas publicados porque isso acarretaria consequências nefastas, representaria um perigo para as instituições nacionais, e a publicação não pretende assumir as responsabilidades inerentes a esse cenário: Se As Farpas tivessem o condão mágico de fazerem rir o país, assim como elas mesmas se riem, As Farpas não quereriam talvez a responsabilidade de tornar efetivo o préstimo do seu talismã. O riso tem uma força tão poderosamente explosiva como a pólvora. Se o país a uma hora dada se risse de quanto há nele – oco, assoprado, barrigudo, córnico, ridículo, grotesco, desformado, caricato, torto, narigudo – a maior parte das instituições portuguesas saltariam em estilhas nessa hora, desmoronadas e expelidas do solo pela força omnipotente da hilaridade pública. Não! As Farpas não fazem rir o povo. Ainda bem! Se elas tivessem esse perigoso prestígio, que não ambicionam, poderiam talvez converter-se numa coisa, que os seus autores não desejariam que elas fossem: as petroleiras da gargalhada. (F: 160) Ramalho exprime aqui, como se vê, toda a fé no poder revolucionário do riso que animava por esta altura os dois farpistas – se bem que essa fé se esbata aparentemente no protesto de que o riso d’As Farpas é estanque e, por isso, inofensivo. As suas palavras, nomeadamente aquelas que preenchem o parágrafo central dos três acima transcritos, estão em sintonia com aquilo que Eça escreveria sete anos volvidos, na carta a Joaquim de Araújo. A grande diferença entre este passo de Ramalho e aquilo que Eça afirma em 1878 reside sobretudo no facto de este último reconhecer – e não podia ser de outra forma – que o propósito d’As Farpas era efetivamente contribuir através do riso para o processo de destruição das velhas e inoperantes instituições portuguesas: «O primeiro fim das Farpas foi promover o riso. O riso é a mais antiga, ainda a mais terrível forma da crítica. Passe-se sete vezes uma gargalhada em volta duma instituição, e a instituição alui-se» (CP: 109). As Farpas pretendem, de facto, ser as petroleiras da gargalhada, ao contrário do que diz Ramalho, e nunca se coibiriam de atear o rastilho do riso no seio da sociedade portuguesa, na convicção de que a hilaridade pública apontada à ordem velha e decadente poderia constituir um golpe suscetível de ameaçar os seus alicerces. O segundo ponto incontornável do texto de Ramalho é a sua alegação de que para rir basta olhar para o estado em que se encontram diversos aspetos do país (e trata-se de uma 227 diversidade que sugere como possibilidade a expansão virtualmente ilimitada da enumeração de casos314). As duas questões estão, de resto, ligadas. Se As Farpas se riem mas não fazem rir, e se por outro lado é suficiente visitar «os liceus, as cadeias, os hospitais, as confrarias, as irmandades, o Grémio e a camara dos deputados» (F: 160) para rir, isso quer dizer que o riso é aqui entendido sobretudo como uma reação visceral, a manifestação de um repúdio moral perante uma realidade desqualificada, e não como aquela experiência – por norma gratificante – assente em mecanismos psicológicos e cognitivos muito fortemente ligados às noções de incongruência, de sequenciação inusitada de dados, e que nos permite de um modo geral associar de forma quase automática o riso ao humor. Tal significa que o riso d’As Farpas poderia não ser propriamente humorístico, mas apenas castigador – como, por exemplo, o riso de Deus no Antigo Testamento, que não exprime mais do que o seu juízo de condenação e não faz dele de modo nenhum uma entidade bem-humorada (cf. infra: 4.4.). Não é, contudo, isso que acontece n’As Farpas. Se tivermos como referência duas das grandes teorias que a tradição dos estudos sobre o humor consagrou historicamente, a teoria da superioridade e a teoria da incongruência (cf. infra: 4.4. e 4.5.), verificaremos que elas enquadram de forma satisfatória as duas modalidades do riso a que me refiro: de um lado o riso sobretudo castigador, o riso hostil, que se associa de preferência à primeira, e do outro o riso propriamente humorístico, o riso que resulta da articulação de elementos inesperados e desconcertantes, que corresponde à abordagem deste fenómeno preconizada pela segunda. Como veremos a seu tempo, o humor d’As Farpas explora com muita frequência – e com assinalável mestria, também – a articulação destas duas modalidades. Regressemos, porém, para já, à proposta que Ramalho faz aos leitores d’As Farpas. Há, como já referi, na instrução ramalhiana de olhar para rir aquilo que me parece ser uma intenção de corrigir um eventual erro de paralaxe do leitor. Ramalho não quer que o humor d’As Farpas se sobreponha à perceção de uma realidade crítica; é necessário que os leitores compreendam que não se riem de uma distorção caricatural da realidade, mas de uma realidade minada por um processo de corrupção que a transformou numa caricatura de si própria. O papel d’As Farpas é por isso duplo: ensinar o leitor a ver os lugares da decadência 314 «Queres rir? contempla o estado da força pública. Queres rir? Lê os compêndios da instrução primária e da instrução superior. Queres rir? Chega à janela e vê a nossa marinha. Queres rir? Deita o óculo para as colónias. Queres rir? Abre o erário. Queres rir? Lê a pauta das alfândegas. Queres rir? Passeia nas nossas estradas. / Visita as escolas, visita os liceus, as cadeias, os hospitais, as confrarias, as irmandades, o Grémio e a câmara dos deputados. E tu, que nunca riste, de nenhum modo que fosse, rirás de todas as maneiras» (F: 160). 228 nacional (apontar para esses lugares críticos e revelá-los – isto é, orientar o olhar do leitor e mostrar-lhe a realidade despida de toda a roupagem com que o sistema foi encobrindo as suas incontáveis fragilidades) e ensinar o leitor a rir-se desses lugares. Este último aspeto é essencial, uma vez que ele corporiza uma mudança de atitude em relação a todo o conjunto de instituições que sustentam o sistema vigente. Cada leitor d’As Farpas que se ri dos casos denunciados de políticos incapazes, clérigos corruptos ou autoridades incompetentes é um cidadão que aprende deste modo a desrespeitar instituições que, pelo exercício indigno das funções de que estavam investidas, deixaram de ser respeitáveis. Daí que, em passos como aquele em que Ramalho confina a experiência humorística à relação direta entre o leitor e a realidade nacional, As Farpas se apresentem como parte estrategicamente irrelevante no processo que desencadeia o riso: elas fornecem a perspetiva através da qual a realidade se revela risível, mas o epicentro do fenómeno é a realidade e não o ângulo proposto. 4.2.1. Verdade, caricatura e representação A carta de Eça de Queirós a Joaquim de Araújo, já várias vezes referida, volta a revelar-se um documento útil para compreender melhor as questões levantadas no último ponto. Poucas linhas depois de escrever que o propósito d’As Farpas é promover o riso, e permitir depois que esse riso se transforme em insurreição, Eça tece algumas considerações sobre as condições em que tal metamorfose pode ocorrer. E a primeira coisa que faz é assinalar de que forma o riso se torna inócuo, e por isso inútil: é aquilo a que Eça chama a «receita vulgar para produzir o riso» (CP: 109), que consiste em distorcer a realidade a um ponto tal que o público se ri da distorção, mas o objeto de partida, aquele que é objeto desse processo, sai incólume315. Ora As Farpas pretendiam que quem as lesse desenvolvesse o hábito embrionariamente revolucionário de se rir, não dos seus recursos humorísticos, mas 315 «Há uma receita vulgar para produzir o riso: toma-se, por exemplo, um personagem augusto; puxa-se-lhe a língua até ao embigo, esticam-se-lhe as orelhas numa extensão asinina, rasga[-se]-lhe a boca até à nuca, põe-se- lhe um chapéu de bicos de papel; bate-se o tambor e chama-se o público. Mau método, meu caro. Apenas a multidão riu o seu riso e sai – o personagem recolhe a língua, contrai a orelha, franze a boca, esconde o chapéu de bicos – e continua a ser augusto!» (CP: 109). 229 das sucessivas parcelas da realidade que as suas páginas iam fixando nos aspetos mais caricatos. E, por isso, explica Eça, «As Farpas tinham inteiramente outro processo – era obrigar a multidão a ver verdadeiro» (CP: 109). Algumas linhas depois, acrescenta: «Um dos fins da arte realista é obrigar a ver verdadeiro. As Farpas tinham esta maneira, – fazer rir do ídolo, mostrando por baixo o manequim» (ibidem). Os termos em que Eça filia neste ponto As Farpas na literatura realista convocam um passo de uma outra carta queirosiana, desta vez privada. Trata-se da carta de agradecimento que Eça escreve, pouco mais de um mês depois (data de 30 de março de 1878), a Rodrigues de Freitas, a propósito da recensão acolhedora que este dedicara a O Primo Basílio nas páginas da Correspondência de Portugal. Não há nesta carta qualquer referência às Farpas, mas num dos parágrafos finais Eça descreve o projeto realista, no seu todo, em termos que coincidem, de uma forma geral, com aquilo que escrevera cerca de um mês antes sobre esta publicação. Na verdade, se nesse parágrafo da carta a Rodrigues de Freitas substituirmos o sintagma «o Realismo» por «As Farpas», obtemos uma descrição bastante rigorosa daquilo que foi o projeto de Eça e de Ramalho: O que queremos nós com o Realismo? Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições em que ele é mau, por persistir em se educar segundo o passado: queremos fazer a fotografia, ia quase a dizer a caricatura do velho mundo burguês, sentimental, devoto, católico, explorador, aristocrático, etc. E apontando-o ao escárnio, à gargalhada, ao desprezo do mundo moderno e democrático – preparar a sua ruína. (Cor, I: 188) A conclusão imediata – e não se trata de uma conclusão surpreendente ou inovadora – é que As Farpas se constituem como um corpus concentrado de temáticas e de processos que o romance realista queirosiano mais tarde explora e desdobra analiticamente. Por outro lado, este passo subsidia a ideia de que fazer ver equivale, no caso português, quase sempre a fazer rir; e fazer rir do modo certo (mais precisamente: da coisa certa) é um expediente para acender múltiplos rastilhos de inconformismo, a forma de gerar uma vaga coletiva fortemente crítica, constituída pela soma de todas as disposições individuais capazes de escarnecer de uma ordem minada pelas suas contradições. Mas Eça, neste passo, hesita entre associar os processos de representação do realismo à fotografia ou à caricatura – e o deslize que aí se deteta do registo fotográfico para o caricatural parece entrar em contradição com aquilo que é postulado na carta a Joaquim de Araújo, uma vez que nesse texto Eça rejeita a deformação subjacente à caricatura enquanto processo de obtenção de um efeito humorístico. No entanto, essa contradição não é insolúvel: aquilo que determina a legitimidade ou não do 230 recurso à caricatura é sobretudo o grau de distorção a que é submetido o objeto representado. Eça alegará frequentemente – à semelhança do que faz Ramalho no artigo d’As Farpas citado no início desta secção – que as feições autênticas da realidade portuguesa não se distinguem da caricatura; isto é, que a realidade do país é essencialmente caricatural, e que, portanto, retratar determinados aspetos dessa realidade equivale a desenhar a sua caricatura. Sobre a questão da emigração, por exemplo, no número de dezembro de 1871, lê-se o seguinte: «Um Governo impedindo uma lei económica, querendo obstar à emigração pela proibição – tinha-se visto nas anedotas do Tintamarre ou nas caricaturas de Cham. É-nos dado a nós portugueses, possuir o facto real, autêntico e referendado» (F: 315). Não é muito diferente o comentário com que, alguns anos mais tarde, já instalado em Newcastle, Eça reagirá, numa carta a Ramalho Ortigão, ao artigo que este dedicara no número de janeiro/fevereiro de 1875 a um discurso proferido no parlamento pelo deputado Manuel d’Assumpção: Sobretudo o discurso do Assumpção: como é extraordinário! Como é imenso! Peço que mo mande todo! Que me mande dois! Que me mande o retrato do homem! Não é uma invenção sua? Sua! Você tem lá génio para isso! Não é uma invenção de Dickens? Não será uma obra inédita de Molière? Passou-se tal sessão, fez-se tal fala? Mas então somos extraordinários! Mas então somos um grande povo! Possuímos real, vivo, um tipo igual, senão superior, aos grandes tipos funambulescos que os outros países só possuem na idealidade estética da arte. A Espanha tem Sancho Pança, a França, Prudhomme, a Inglaterra, Perknif e tantos outros, sem esquecer o imortal Pickwick – mas têm-nos no romance, no teatro, no poema: nós, temos o nosso Assumpção, vivo, de carne, com um belo esqueleto movediço e engonçado, no Chiado, no Grémio! (Cor, I: 117) E são também recorrentes os passos em que Eça realça a ideia de que o riso é uma resposta imediata (ou seja, sem mediação – nomeadamente em termos de recriação humorística) ao desempenho efetivo, real, das instituições portuguesas. Isto é, antes mesmo da intervenção d’As Farpas, ainda que sem essa intervenção, ou independentemente dela, a gargalhada deveria ser, segundo Eça, a reação instintiva perante a forma canhestra como em Portugal se decide, se decreta, se proíbe, se protesta, se opina, se pensa, se constrói – ou se governa: «Um Governo decreta? gargalhada. Fala? gargalhada. Reprime? gargalhada. Cai? gargalhada. E sempre esta política, aqui, ou pensando, ou criando, ou liberal ou opressiva, terá em redor dela, diante dela, sobre ela, envolvendo-a, como a palpitação de asas de uma ave monstruosa, sempre, perpetuamente, vibrante, cruel, implacável – a gargalhada!» (F: 123-24) 231 Temos, por conseguinte, que a deformação dos procedimentos que subjazem ao funcionamento das instituições se traduz em si mesma numa distorção caricatural dessas instituições. Perante uma realidade cuja face visível é ela própria grotesca, seria em princípio supérfluo, senão contraproducente, do ponto de vista da eficácia crítica, substituir o retrato rigoroso das feições alteradas pelo desenho sobrecarregado dessas mesmas feições: a caricatura de uma caricatura tornaria indeterminável o modelo da representação, ou remeteria o leitor para a entidade primitiva, na sua configuração original, intacta e perfeita. Porém, se o leitor souber (porque As Farpas lho mostram) que o estado atual de uma instituição se traduz, nas suas práticas quotidianas, numa distorção (em si mesma caricatural) de uns quantos graus relativamente àquilo que deveria ser o seu funcionamento são, talvez não seja desprovido de sentido propor a esse leitor um quadro em que o índice de distorção já sinalizado sofre um incremento: essa caricatura de segundo grau, construída sobre o primeiro desvio caricatural, projeta-se então enquanto prolongamento dos traços de decadência que subjazem a tal desvio. E, por isso, essa caricatura construída adquire também o estatuto de profecia e alerta, isto é, propõe-se enquanto configuração de um cenário futuro insuportável e inaceitável, mas para o qual os dados atuais parecem apontar. O diagnóstico da distorção efetivamente instalada no momento atual de determinada célula social não traduz mais do que a fixação de um estado transitório, um ponto num processo contínuo de decadência: basta, por isso, prolongar as linhas que esse processo vem historicamente desenhando para conceber um quadro que aprofunda e exacerba a distorção atual. É isso que podemos observar, por exemplo, num artigo que Eça publica no número de julho de 1871 (F: 98-100): aí começa por recuperar a crítica à falta de decoro nas sessões da Câmara dos deputados feita no primeiro número, descreve depois com ênfase os contornos expressivos de uma recente altercação ocorrida na sessão de 29 de junho, e acaba por propor, como exercício caricatural, a antecipação da sessão parlamentar de 29 de julho («Vistes, amigos, a sessão de 29 de junho. Quereis assistir à de 29 de julho? Aí tendes o seu fiel extrato» – F: 98), que eleva a um expoente muito mais gravoso os desvarios ocorridos na sessão de junho. Aliás, como adiante se verá (cf. infra: 4.6.1.) um dos processos mais recorrentes e produtivos da oficina humorística d’As Farpas consiste precisamente em fixar uma situação em cujos contornos se identifica, à partida, determinada anomalia, submetendo-a depois a um processo de torção – mas essa torção não a desfigura propriamente; o que ela faz é figurar o absurdo contido de forma embrionária na anomalia inicial, projetando-o numa escala perturbadora. 232 Na verdade, são também frequentes os passos em que os autores d’As Farpas se referem à caricatura noutros termos que não aqueles em que, na carta a Joaquim de Araújo, Eça a julga um mau método para provocar o riso. Num artigo publicado no número de setembro de 1871, a propósito das notícias que apontavam para a iminência de uma revolta em Goa, Eça considera a caricatura um modo de expor verdadeiro – mais: um modo de «escrever razões claras» – e dispõe-se a desenhar desta forma os motivos pelos quais considera infundados quaisquer receios de que essa anunciada rebelião se venha a concretizar316. Ramalho, no número seguinte, refere-se a este mesmo artigo de Eça: segundo ele, a caricatura avançada pel’As Farpas acabara por se revelar «o mais completo retrato» dos acontecimentos317. Mas é mesmo a partir de um outro texto de Ramalho que melhor se percebe o conceito de uma estreita relação entre caricatura e verdade que subjaz a esta publicação. Mais uma vez, está em causa a revisitação de um artigo de Eça: trata-se do texto, já acima citado, sobre a emigração para New Orleans, publicado em dezembro de 1871. No mês seguinte, escreve Ramalho: Algumas pessoas tomaram numa intenção extremamente literal as nossas rápidas páginas (Número de dezembro) sobre a emigração para a Nova Orleans e o seu remédio – os terrenos do Alentejo. Estranhou-se que nós tivéssemos torcido um pouco o perfil da verdade dizendo com aspetos verídicos – que a opinião mostrara aos colonos com gesto morgado as vastas terras incultas do Alentejo, dizendo-lhes: aí tendes, gastai 5.000 contos e procurai ganhar os vossos 17 vinténs. Não! Não! Nós não contornamos a verdade, fizemos-lhe a caricatura: não lhe expusemos o perfil fotográfico, arrebitámos-lhe um nariz truanesco. (F: 351) Eis, portanto, a caricatura reconhecida como dispositivo posto ao serviço da comunicação da verdade. O «mau método» de provocar o riso (mau porque distorce aquilo que representa) pode também afinal fazer ver melhor a realidade: trata-se, neste caso, de torcer essa realidade, não para a deturpar, mas para a expor mais claramente. O processo serve-se, de resto, de «aspetos verídicos» para levar a cabo esta intenção – isto é, não acrescenta, não suprime, não inventa: a sua matéria-prima é a verdade; é com ela que trabalha, com o objetivo de a tornar mais percetível. Em termos gerais, podemos afirmar que, na perspetiva d’As Farpas, a deformação que a caricatura opera no objeto representado 316 «Como o sr. visconde de S. Januário sentiu a necessidade aparatosa de fazer telegramas patéticos, nós sentimos o desejo humilde de escrever razões claras. / E já que os jornais sérios e barbados o não fizeram, as Farpas, para esclarecer os espíritos hesitantes, desenham a grossos traços de carvão e de tinta as caricaturas militares da Índia» (F: 186). 317 «Veio finalmente o correio trazendo resolvido o problema que nos fora posto pelo telégrafo. A nossa caricatura saiu o mais completo retrato; a nossa palavra tinha sido uma sentença. / Quereis saber explícita e positivamente o que foi a insurreição da Índia? Lede o precedente número das Farpas» (F: 216). 233 torce esse objeto na medida necessária para fazer estalar e saltar a camada de postiço com que ele se foi cobrindo e, dessa forma, se foi legitimando perante o olhar coletivo. A caricatura é, portanto, um movimento de sentido oposto ao da construção artificial (poderíamos dizer retórica) de uma legitimidade social que assenta exclusivamente sobre esse aparato vão. Este processo é explicado também na carta a Joaquim de Araújo: «O espírito […] é uma disposição cerebral, que faz descobrir o cómico; que o faz descobrir, através das exterioridades convencionais e as formas consagradas» (CP: 117). Esta necessidade de fazer ver (verdadeiro) prende-se com uma questão que As Farpas colocam desde o primeiro número: a legibilidade da realidade é problemática. É insuficiente, aliás, dizer que esta questão se põe desde o primeiro número; ela põe-se desde as primeiras linhas do seu artigo de abertura – precisamente a partir do ponto em que Eça garante que nas «cem páginas irónicas» de cada número o leitor poderá encontrar, emergindo da «penumbra confusa dos factos», «alguns contornos do perfil» da realidade que o cerca (F: 16). Pouco depois, trata-se de determinar qual o registo adequado para comunicar aos leitores a revelação dessa realidade: «a indignação dramática de panfletários», «a serenidade experimental de críticos» ou «a jovialidade fina de humoristas» (F: 17). Das três hipóteses levantadas – registo panfletário, crítico ou humorístico –, a opção recai no humor, sem aparente necessidade de sustentação318. Ela é colocada perante o juízo do leitor sob a forma de uma evidência que o seu bom senso não poderia deixar de acolher: «Não é verdade, leitor de bom senso, que humoristicamente o deveríamos fazer?» (F: 17). Nas páginas d’O Distrito de Évora, quatro anos antes, Eça pronunciara-se várias vezes sobre o recurso ao humor por parte da imprensa de uma forma que muito provavelmente deixaria surpreendido um leitor d’As Farpas (voltarei a este assunto proximamente). Mas já aí 318 Se a opção pelo humor parece ser da ordem da evidência, a refutação dos registos alternativos ao humor é feita, mas de forma lacunar: Eça circunscreve o seu ataque ao registo panfletário (que se esgota numa retórica ineficaz), não explicando por que razão se distanciam As Farpas da «serenidade experimental de críticos». Mas, embora As Farpas se afastem desse registo, nunca o atacam – o que se compreende, dada a sua vinculação indireta às Conferências Democráticas do Casino, descritas nas páginas do segundo número como tratando de «questões científicas e literárias numa alta generalização de ideias» (F: 76). As Farpas têm de ser lidas em articulação com o espírito das Conferências (uma reflexão aprofundada sobre estas relações pode ler-se em Rita, 1998: 177-200), de que foram inicialmente uma espécie de alter-ego; uma via alternativa para o mesmo objetivo genérico de despertar consciências e formar uma atitude crítica. A «serenidade experimental de críticos» tem, por isso, o seu lugar na série de instrumentos para a mudança social. Num dos artigos que escreve para o primeiro número d’As Farpas, a forma como Eça se refere à atitude dos conferencistas perante os temas abordados nas suas intervenções não difere substancialmente daquela «serenidade experimental» que, embora descartada como perfil adequado aos textos desta publicação, não é desqualificada na sua essência: «Por isso o espanto é grande, vendo aparecer homens que apresentam a revolução, serenamente – como uma ciência a estudar. Não o fariam mais tranquilamente se se tratasse de anatomia» (F: 41). 234 reconhecia que o artigo de fundo, o artigo grave e ideológico, é lido apenas «por três sectários, por cinco caturras, por dois conselheiros velhos» (DE, I: 140), e que portanto o seu impacto sobre a realidade é nulo – por conseguinte, o poder instalado convive bem com ele, e mesmo quando é visado não o teme. Outra coisa bem diferente acontece no que diz respeito ao registo humorístico, mais envolvente e mobilizador, mais eficaz319. A opção d’As Farpas pelo humor decorrerá, por isso, também do espectro do seu alcance: o objetivo da publicação não é chegar ao letrado ou ao filósofo, mas à multidão, como Eça refere na carta a Joaquim de Araújo – porque só chegando à multidão o poder sentirá o impacto das suas investidas, multiplicado pelos milhares de leitores e assinantes320, potenciado pela repercussão dos artigos na restante imprensa (cf. Medina, 2000: 19-23), ou ainda pela rapidez com que os exemplares esgotam nos pontos de venda321. Em suma, a opção d’As Farpas pelo humor assenta essencialmente na sua eficácia – uma eficácia multímoda, de que podem ser enumeradas diversas vertentes: o humor é um poderoso dispositivo de ataque às instituições; o humor opera um conjunto de mecanismos capazes de revelar aspetos da realidade que de outra forma permaneceriam na obscuridade; o humor pode ser posto ao serviço de uma pedagogia do inconformismo e por isso tem um alcance potencialmente revolucionário; o humor é um modo privilegiado de comunicação, uma vez que chega a um espectro excecionalmente abrangente da população. E, sendo tudo isto, parece não ser nada – porque tem ainda a seu favor a possibilidade de, sempre que necessário, invocar a sua natureza lúdica para afetar um muito conveniente alheamento de quaisquer consequências inoportunas resultantes da sua ação. 319 «Um ministro, por exemplo, abre um jornal: lê o artigo de fundo. Boceja, o artigo ataca-o: diz que ele vai levando a pátria ao abismo, que esbanja uma fortuna pública, que é amaldiçoado pelas almas honestas, etc.; o ministro boceja, ele ouve aquilo todos os dias, está cansado de escutar e sorri-se, cumprimentando, quando alguém lhe vem bradar. Por isso não se altera. Mas passa adiante; na política estrangeira, também boceja; lê correspondência do reino em que o fulminam: boceja; então passa a crónica, lê, lê mais, lê avidamente, dá um pulo, empalidece, dá um grito, esmorece, sufoca-se, passeia furioso: o que viu? Eu sei? qualquer coisinha: viu- se descrito, com o nariz bicudo e joanetes nos pés; vê a notícia de que no seu último jantar várias pessoas tinham encontrado bichos nos legumes, e outros, cabelos na omolette, pelo que um cavalheiro lhe bradou: / – Senhor ministro, eu gosto das omolettes calvas! / Vê-se mais acusado de trazer chinó, e de não lavar a cabeça, e de se deixar espancar pela mulher. Etc. Aquele homem, que a artigo de fundo não abalou, foi fulminado pela própria crónica» (DE, I: 139-40). 320 «As Farpas, segundo as declarações do editor, tinham 2000 assinantes; isto representava de 5 a 6000 leitores», afirma Eça na carta a Joaquim de Araújo (CP: 111). 321 O número inaugural d’As Farpas, escreve Ramalho, «é a primeira edição portuguesa esgotada num só dia» (F: 92). 235 4.3. Humor e agressão A despeito das desconfianças seculares com que tem sido historicamente abordado, o humor detém uma característica que lhe confere em determinados contextos uma importante vantagem face a outros registos discursivos: uma espécie de imunidade que decorre da sua vinculação a uma atitude lúdica (cf. Gilbert, 2004: 12). Se por um lado o humor é, de um modo geral, marcadamente transgressor, por outro lado essa transgressão reclama o estatuto de jogo, e por essa via a suspensão dos parâmetros gerais através dos quais se ajuíza a adequação de determinado comportamento às normas sociais (e até mesmo jurídicas) que o enquadram. A forma como As Farpas assumem o seu vínculo ao humor parece por vezes reivindicar essa leveza mais ou menos inconsequente. Os aspetos visados pelo ataque de Samuel (Vieira de Castro) ao primeiro número d’As Farpas são reduzidos por Eça a «opiniões, juízos, ditos, espalhados ao flutuante acaso do humorismo» (F: 121), e é também nessa frequência que está sintonizada a refutação queirosiana da acusação de se considerarem, ele e Ramalho, a encarnação do bom senso, acusação essa proveniente da mesma fonte (cf. supra: n. 71). No número de outubro de 1871, no final do artigo em que são mordazmente caricaturadas as competências dos diplomatas portugueses, bem como as condições em que estes desempenham as suas missões, Eça garante que tudo o que se pode ler naquelas páginas não passa de uma brincadeira, e, como tal, seria desajustado qualquer melindre por parte da diplomacia322. Algo semelhante acontece no final de um artigo de dimensão considerável, publicado no número de fevereiro de 1872, no qual se explora a caricatura do tipo do brasileiro: nos parágrafos finais, toda a verve caricatural das páginas anteriores aparece diluída na expressão «páginas risonhas», que precede a exortação a que todo o artigo seja lido com benevolência pelos visados323. E, quando Eça escreve a 322 «E vai a nossa diplomacia ficar amuada connosco, depois de lhe termos feito, com toques ligeiros e transparentes, o retrato gentil? Decerto que não: nós rimos, mas a chuva aromatizada não molha» (F: 231). Em Uma Campanha Alegre, este propósito é reforçado: «Que a nossa diplomacia, aliás meritória e simpática, se não agaste com estes traços ligeiros! Quisemos apenas rire un brin» (UCA: 180). 323 «Brasileiros, se estas páginas risonhas forem levadas por um vento feliz às vossas chácaras, lede-as sem rancor, entre o ruído dos engenhos e o bocejar da sinhá» (F: 395). Não foi isso que aconteceu: o Brasil não reagiu bem a estas páginas, nem àquelas que nesse mesmo número Eça dedica à visita do Imperador do Brasil a Portugal: houve conflitos com a comunidade portuguesa, houve violência, houve mortes. No artigo de abertura do número de julho/agosto de 1872, Eça pronuncia-se sobre estes acontecimentos: não é possível, defende aí, que tão graves consequências decorram da publicação de alguns artigos de «prosa humorística», não mais que «três tiras de folhetim», apenas «algumas palavras distraídas», «sem factos e sem acusações, mal risonhas» (F: 506-07) – pelo que a verdadeira causa dos tumultos teria de ser procurada noutro lugar que não As Farpas. 236 «Advertência» à edição de 1890, As Farpas, vistas à distância de vinte anos, surgem-lhe como «um punhado ligeiro de ironias douradas» (UCA: 7), um «riso imenso» esparso em «panfletos leves» (UCA: 6), desprovido afinal de qualquer efeito sobre a realidade, uma vez que não abalara uma só pedra das cidadelas contra as quais tinha investido. Mas Eça tem, como ficou exposto acima, uma compreensão muito nítida de que o humor é um assunto sério; tem plena consciência de que, sob a fina capa que o investe de um estatuto de leveza, o humor é na verdade um formidável mecanismo de agressão. É a este respeito revelador o excurso sobre a opereta de Offenbach que se lê no primeiro número324 (F: 28-9): toda a galeria de figuras cómicas offenbachianas de que o público ri perdidamente não é «um passatempo», mas «uma condenação», uma agressão que tem como objeto as instituições que elas representam sob a forma da respetiva caricatura. A leveza da obra de Offenbach é, por isso, ilusória; o riso recobre um ato de violência – uma «bofetada» ou uma «palmada na pança», infligida, em última instância, sobre a própria sociedade que ri enquanto vê as suas referências institucionais arrastadas no vórtice de uma representação anedótica. Esta conceção do riso como instrumento de agressão é, na verdade, dominante n’As Farpas. «Vamos rir pois. O riso é um castigo», escreve Eça no mesmo número (F: 19), logo que seleciona o registo humorístico como aquele que sustentará a publicação. E, nos números seguintes, quando convocado enquanto referência textual, o riso é quase sempre a manifestação através da qual uma entidade judiciosa desfere um ataque sobre uma outra que enferma de alguma debilidade: é através dele que um grupo de personalidades notáveis é instado a pronunciar-se sobre a incompetência científica dos deputados da câmara325; é pela via da gargalhada que a Espanha, na visão de Eça, se prepara para constatar o estado geral de 324 «Quem, como ele, bateu em brecha todos os preconceitos do seu tempo? Quem como ele, com quatro compassos e duas rebecas, deixou para sempre desautorizadas velhas instituições tirânicas? Quem como ele fez a caricatura fulgurante da decadência e da mediocridade? […] O militarismo, o despotismo, a intriga, o sacerdócio venal, a baixeza cortesã, a vaidade burguesa, tudo feriu, tudo revolveu, tudo abalou num couplet grivois. / Não, alta burguesia, não fizeste bem em o aplaudir e em o proteger. Julgaste encontrar nele um passatempo, encontraste uma condenação. A sua música é a vossa caricatura. Tão mal alumiados são os teatros, tão estreita a vossa penetração, que vos não reconheceis um por um, naquela galeria ruidosa dos medíocres do tempo? [… ] / Vós ristes perdidamente de todas aquelas criações facetas? Pois foi da vossa realeza, da vossa diplomacia, do vosso exército, das vossas intrigas, dos vossos cortesãos, que vos ristes. E convosco riu-se todo o mundo, clero, nobreza e povo. E já ninguém vos toma a sério. / Sim, Offenbach, com a tua mão espirituosa, deste nesta burguesia oficial – uma bofetada? Não! Uma palmada na pança, ao alegre compasso dos cancans, numa gargalhada europeia!» (F: 28-9). 325 «Damos testemunhas: o sr. Dias Ferreira, um professor ilustre, o sr. Sampaio, um jornalista notável, algum publicista e um ou dois magistrados… Vamos, senhores, não riam assim à socapa! Riam alto, riam connosco, e confessem connosco que são deploráveis todos os discursos que têm sido proferidos no parlamento em questões de crítica, de doutrina e de ciência» (F: 49). 237 abaixamento do nosso país326; é rindo-se do brasileiro que os cidadãos portugueses manifestam a sua opinião crítica sobre aquilo que consideram ser uma figura que representa o cúmulo de todos os vícios (F: 390-91). O comportamento impróprio dos deputados é pontuado por gargalhadas nas galerias327; a resposta que o estado de decadência do exército português suscita em quem o encara é o riso328, e essa é também a única reação possível perante os nós cegos da administração metropolitana e ultramarina329. No número de julho de 1871, a gargalhada reativa é objeto de um breve parêntese expositivo: ela «não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma» (F: 123); é «cruel» e «implacável» (F: 124). Num dos vários textos dedicados à classe parlamentar publicados no número seguinte, o riso volta a merecer o rótulo de «cruel», mas recebe além disso alguns contributos novos para a sua caracterização: ele é também «amargo», e é um instrumento de vingança330. A carta em que Eça apresenta o projeto d’As Farpas a João Penha, presumivelmente escrita em junho de 1871, deixa bem claro que o propósito da nova publicação não é divertir o público mas atacar os alicerces do país. Se na «Advertência» de 1890, olhando para trás, Eça fala sobretudo do espírito ameno e ligeiro que animara os seus textos de 1871-2, nessa carta a João Penha o periódico é descrito em termos muito diferentes: trata-se de um «jornal de luta, jornal mordente, cruel, incisivo, cortante»; termos como «chicote» e «ferro em brasa» ocorrem igualmente (Cor, I: 49). O humor é, assim, «processo» e «instrumento» (CP: 118) posto ao serviço do combate. Mas esta conceção eminentemente instrumental do humor traz consigo um problema. Se, como afirma Eça na carta a Joaquim de Araújo, argumentar é uma coisa e rir é outra (e atendendo a que o auditório perante o qual As Farpas argumentam é, afinal, muito mais restrito do que aquele a que elas se dirigem através do humor), torna-se necessário perceber 326 «Ah! meus senhores, não consintamos que essa cruel Espanha, que se levanta, que se afirma, que se organiza, que se engrandece – venha, de luneta no olho e gargalhada na boca, fazer o inventário jocoso do nosso abaixamento!» (F: 234). 327 «Numa das últimas sessões fala um membro do partido histórico: o seu partido interrompe-o com apoiados a cada oração. Ergue-se um reformista: o seu partido não quer ficar atrás e coroa-o de apoiados a cada palavra. Torna a falar um histórico, e o partido respetivo estala em apoiados a cada sílaba. Quando apareceu outro reformista, os berreiros de apoiados foram tais, que apenas se percebia o gesto do orador. Era grotesco. As galerias davam gargalhadas» (F: 50). 328 «Ora se atentarmos bem na utilidade do nosso exército temos ocasião de algumas francas e fortes risadas, dignas de Homero» (F: 108). 329 «Dilema pavoroso! Devemos vender as colónias porque não temos governo que as administre; mas não podemos vendê-las – porque não teríamos governo que administrasse o produto! Miserere! / Riamos! riamos sempre!» (F: 121). 330 «Olhai! Vós sois tão criminosos que nos fazeis perder o riso. E no entanto é necessário não o perder. É a nossa vingança! É indispensável que ele esteja sempre pronto, amargo, cruel!» (F: 139). 238 que posição ocupa afinal o riso no desenho esquemático de uma outra importante oposição assumida n’As Farpas – aquela que coloca em confronto a argumentação e a retórica. Em torno de qual destes polos se desenha a órbita do humor? Estamos ainda perante uma modalidade do discurso de alguma forma tributária de uma racionalidade argumentativa de matriz lógica, ou perante uma estratégia discursiva que assume como desígnio a obtenção de uma resposta de natureza afetiva por parte dos leitores – resposta essa resultante de um processo associado ao condicionamento (poder-se-ia dizer – à manipulação) das condições de perceção que esses leitores têm de determinadas realidades? O mesmo Eça que repudia a retórica da sensibilidade, da comoção, dos afetos, elege n’As Farpas como dispositivo primordial da sua campanha de intervenção pública o riso. E o riso, não nos esqueçamos disso, é uma paixão à luz de uma longa tradição filosófica, de Platão a Kant, passando por Descartes, por Hobbes ou por Espinosa – na verdade, pela generalidade dos filósofos da era moderna (cf. Parvulescu, 2010: 5). Para complicar um pouco mais a questão, assumamos desde já que o próprio Eça reconhece que o registo humorístico comporta uma dimensão oblíqua. Mais do que isso, considera que ele é incompatível com um projeto de imprensa pontuado pela elevação das ideias e pela legitimidade dos argumentos. Mas este posicionamento é anterior à publicação d’As Farpas: data de 1867. Nas páginas d’O Distrito de Évora, Eça censura repetidamente o recurso ao humor por parte da imprensa adversária, a imprensa próxima do ministério fusionista de Joaquim Augusto de Aguiar, e em particular as manifestações de escárnio de que o próprio Distrito é alvo vindas da Folha do Sul, o jornal eborense que desde a sua fundação, em 1864, defendia os interesses do partido do governo (Simões, 1980: 145). Na edição de 11 de abril, Eça lamenta que a Folha dirija «ironias, motejos, insinuações, jovialidades, chascos» ao Distrito, «um jornal que todos os dias lhe declara não estar nos seus hábitos fidalgos a polémica grotesca e jocosa» (DE, III: 113). O momento histórico crítico que está na mira da fuzilaria humorística d’As Farpas era, quatro anos antes, encarado de forma muito diferente, nomeadamente no que diz respeito à atitude a ter perante o estado da nação. No mesmo artigo, escreve Eça a certo ponto: «A pátria está na véspera da sua agonia, e as folhas do governo só têm galhofeiras incitações e gestos de ebriedade! Acham porventura nobre o feito de um filho que se espojasse nas convulsões do riso e da desonestidade sobre o cadáver de sua mãe?». A 21 de abril, volta a 239 condenar aquilo que considera ser um sinal de baixeza intelectual e de decadência moral inscrito na atitude cómica de certos jornais331: Mas na imprensa combatem-se ideias, discutem-se princípios, debatem-se sistemas, argumentações, métodos, mas não se provocam risos. O lugar augusto das ideias não é o recanto cómico das risadas. Quem tem a alma cheia de impropérios, de desonestidades, de cinismos violentos, não vem para aqui, para a imprensa. Para a imprensa vêm os que têm uma ideia, um princípio generalizador, uma alma criadora. Aqui não é o lugar dos que se riem. (DE, III: 133-134) De resto, já na edição de 4 de abril esta questão tinha sido abordada. Aí o recurso ao humor na esfera da imprensa é igualmente considerado indigno, um expediente de ataque destruidor mas desleal, porque impróprio de um campo que deveria ser estritamente reservado ao combate de ideias: A imprensa ministerial tem adotado um meio de combate que, se não é o mais proveitoso, é pelo menos o mais desonesto. É a ironia, a chufa, o escárnio. Procuram sempre nos atos da oposição um pequeno veio de ridículo, e ali o exploram longamente, com tenacidade incómoda, com luxuosa foliação de graças. […] E (coisa notável!) costumando a caricatura política ser o mais destruidor ataque, esta jovialidade impudente dos jornais ministeriais não tem sequer provocado uma resposta, uma observação, uma indignação, uma exclamação. Nada. (DE, II: 206-7) O que há de semelhante – e convém sublinhá-lo – entre o juízo que Eça faz do humor derrisório n’As Farpas e aquilo que sobre ele escreve n’O Distrito de Évora é a conceção dessa modalidade do cómico como instrumento de agressão e de destruição. Porém, aquilo que em 1871 é assumido como registo próprio justo e legítimo era encarado em 1867 como dispositivo de ataque desonesto – sendo neste caso O Distrito a entidade atacada. Na verdade, não há diferenças substanciais entre o juízo que Eça faz do registo humorístico em 1867 e o juízo que faz de certas modalidades da retórica a partir de 1871: está em causa a distorção da realidade, a amplificação de certos traços que deformam a essência do objeto, a intenção perversa, o carácter sinuoso de todo o procedimento. Encarado como recurso adotado pelo lado oposto da barricada política, o humor é, afinal, um expediente de combate baixo e desleal, contrastante com a elevação demonstrada pelo discurso da imprensa da oposição: essa prima pelo «resplandecimento das ideias» (DE, II: 207) e defende ativamente os valores que a movem – a democracia, a liberdade, a igualdade, a lei –, ao passo que os jornais que 331 A fronteira, segundo Eça, passa pela linha que separa os jornais da oposição dos jornais próximos do governo: «Nada há de comum entre os jornais da oposição e os jornais do governo: nós, que nos chamamos oposição, representamos as ideias; eles, que se chamam governo, representam as chufas» (DE, III: 115). 240 promovem o riso não fazem mais do que «escarnecer», «apupar», «caluniar», «vilipendiar», «intrigar» (DE, II: 208). Os papéis, naturalmente, inverter-se-iam a partir do momento em que As Farpas elegem o humor como atitude de confronto. Sobre elas passariam a incidir, desde o início, oriundas de diversos quadrantes, considerações de natureza variada acerca do seu postulado humorístico: dos defensores do projeto chegariam por vezes recomendações de prudência no manuseamento da arma escolhida, atendendo à sua instabilidade332; os opositores limitar- se-iam a deplorar que o humor fosse usado para atacar valores que deveriam ser salvaguardados333. Uma das mais longas polémicas que As Farpas mantiveram teve como antagonista António Enes334, que, no primeiro de uma série de textos publicados na Gazeta do Povo, começa por acusar Eça e Ramalho de se demitirem, com o seu humor crítico, de qualquer contributo construtivo para a reforma do país. António Enes censura asperamente o primeiro número d’As Farpas e considera contraproducente todo o projeto, fazendo recair a maior parte dos seus reparos precisamente na atitude humorística dos autores, que considera estéril e imoral. Segundo Enes, o riso, ao invés de tornar vulneráveis as zonas críticas sobre as quais incide, tem na verdade o efeito de as fazer perdurar, de lhes reforçar as condições de existência. O riso, escreve Enes, «[n]ão faz penitentes, faz cínicos. Não estigmatiza o mal, amolenta a indignação que o mal produz» (Reis, 1987, II: 20). Deste ponto de vista, o riso promove, de facto, uma mudança de atitude em relação àquilo sobre que recai o seu foco, mas tal mudança de atitude não se traduz num contributo para a destruição dessa entidade: o riso apouca o seu objeto, mas, defende António Enes, esse apoucamento terá 332 Veja-se o caso do acolhedor artigo que o jornal O Partido Constituinte dedica, em novembro de 1871, aos primeiros números d’As Farpas: «Castigar rindo os costumes é ideia antiga […]. Incontestavelmente pode auxiliar-se deste modo o melhoramento social, mas cuidado! A senda não é segura; ladeiam-na precipícios temerosos. […] / É justo que se conceda à crítica uma certa liberdade, mas não tanta que degenere em licença. É agradável rir à custa dos vícios e defeitos alheios, mas é necessário que o gracejo não esconda a injúria, que o sal não seja como era o de Aristófanes, no dizer de Plutarco: amargo, indigesto, irritante. / Sacrificar a naturalidade, a justiça, a razão ao interesse da narrativa – nunca; abdicar a dignidade da ideia perante o desejo de despertar o riso – por modo nenhum. Em caso de dúvida, antes Terêncio do que Plauto» (apud Medina, 1984: 398). 333 É disso exemplo o folheto anónimo As Farpas Brasileiras, publicado como manifestação de repúdio pela forma como As Farpas tinham caricaturado o Brasil, o seu imperador e o povo brasileiro no número de fevereiro de 1872. Aqui se condena igualmente o espírito global do projeto: «uma série de diatribes em estilo faceto, cómico e audaz», por meio das quais Eça e Ramalho atacam «quanto inspira lá no santo torrão em que nasceram e habitam, interesse e consideração» (apud Medina, 2000: 36). 334 A polémica entre Enes e As Farpas, com intervenções pontuais de Alberto Queirós, prolongou-se por vários meses. A edição de 1890 de Uma Campanha Alegre, porém, ignora-a completamente. Pouco antes, Eça convidara Enes a colaborar na Revista de Portugal. 241 sobretudo o efeito de lhe retirar gravidade, de promover a indiferença de quem o encara, de o banalizar, no fundo. Embora não deixemos de estar perante uma tomada de posição crítica em relação à opção pelo humor enquanto estratégia de combate, a opinião de António Enes sobre o efeito dormente ou alienante do registo humorístico situa-se ao arrepio da generalidade das opiniões sobre este dispositivo, que tendem a enfatizar a potência do seu impacto destruidor. A conceção do riso como dispositivo de ataque enquadra-se numa longa tradição do pensamento filosófico sobre o humor. A perspetiva dominante das várias abordagens de que este fenómeno foi sendo objeto desde a antiga Grécia até ao século das Luzes encara-o essencialmente como uma agressão exercida sobre o seu objeto: o humor traduziria, em suma, uma manifestação de hostilidade ou de superioridade da parte de quem o produz, tendo como objetivo a depreciação das entidades sobre as quais ele incide. É, em primeira instância, aquilo que As Farpas pretendem. No artigo de abertura do número de março de 1872, Ramalho escreve o seguinte: «Um dos caracteres da sátira consiste em provocar por meio do riso a indignação contra o objeto satirizado» (F: 399). A missão d’As Farpas passa inquestionavelmente por aqui: trata-se de atacar uma série de alvos selecionados, com o objetivo de redefinir hierarquias na relação entre os cidadãos e as estruturas do poder. O gesto cáustico, hostil, d’As Farpas só se cumprirá, por isso, se for transitivo; ele seria inútil se ficasse confinado às páginas da publicação e não tivesse repercussão fora delas. A sua motivação última é despertar uma atitude crítica no leitor: levá-lo a olhar um conjunto de figuras e de instituições – políticos, deputados, ministros, escritores, clérigos, autoridades policiais e jurídicas, etc. – a partir de um lugar de poder; o poder que advém de rir, de escarnecer. As Farpas são «a propaganda do desprezo», escreve Eça em 1875 (Cor, I: 117). Três anos mais tarde, na carta a Joaquim de Araújo, irá atribuir-lhes a missão de minar junto do povo português o respeito atávico, quase supersticioso, pelas fórmulas. Levar a população a superar o respeito pelas figuras medíocres e pelas instituições caducas que dominam o país, ensiná-la a desprezá-las e, assim, a desejar outra coisa – é toda uma pedagogia ambiciosa assente em grande medida no humor, o qual adquire, assim, para Eça e Ramalho, um estatuto equiparável ao de dispositivo de reprogramação social. Esta conceção instrumental do humor, as suas implicações éticas, as suas repercussões sociais, estiveram, como referi, no centro das reflexões em torno do riso e do cómico desde a 242 Antiguidade até às Luzes. Na medida em que o pensamento produzido sobre esta questão enquadra quer a atitude combativa e hostil d’As Farpas, quer as reservas que o registo humorístico deste projeto suscitou nos seus críticos (mas também aquelas que Eça repetidamente exprime n’O Distrito de Évora quando o seu jornal é objeto dos motejos que lhe dirige a Folha do Sul), justifica-se uma síntese das principais linhas do paradigma de abordagem do humor representado pelas reflexões produzidas neste período. 4.4. A teoria do humor como manifestação de superioridade O humor (ou, melhor dizendo, algumas das manifestações que este conceito recobre) suscitou historicamente, no plano teórico-conceptual, uma atenção algo dispersa e fragmentária até pelo menos ao século XVIII. As reflexões produzidas neste período, que compreende cerca de dois milénios, assentam sobretudo nas seguintes ideias, que aliás se articulam e entrelaçam: o humor traduz uma atitude irrespeitosa de quem ri em relação àquilo que é objeto de riso (é, por isso, um expediente eficaz para municiar uma «propaganda do desprezo»); o riso é a manifestação de um excesso emotivo e, como tal, coloca entre parênteses o autocontrolo de quem ri; por estas razões, o riso, bem como aquilo que a ele conduz, deve ser evitado, ou frequentado com moderação e prudência. É fundamentalmente à primeira destas ideias que se deve o cunho de ‘teoria da superioridade’, a designação sob a qual se reúne o contributo para a compreensão do fenómeno do humor de filósofos como Platão, Aristóteles ou Thomas Hobbes. O humor parece ter sofrido, desde as suas mais remotas origens, de um problema de má reputação. Pré-socráticos como Protágoras ou Epicteto alertam já para a inconveniência do riso ou para os perigos que ele representa (Morreall, 2009: 4; Minois, 2007: 61; Ermida, 2002: 43). Estes primeiros avisos tendem a focar-se na sua natureza excessiva: o riso está na sua génese visceralmente ligado ao excesso, quer pela via das narrativas mitológicas que associam o riso dos deuses a episódios onde se explora a obscenidade, a deformação, a violência (Minois, 2007: 13-18), quer pela via das grandes celebrações rituais – dionisíacas, bacanais, leneias, tesmafórias, panateneias –, onde o riso desenfreado pontuava as 243 mascaradas, as trocas de vestuário, os gritos, as injúrias, a inversão da ordem, as mímicas eróticas, etc. (Minois, 2007: 21-27). A comédia grega arcaica é herdeira direta desta primitiva sensibilidade, que se compraz com a violência e a obscenidade: é um humor de ataque que aqui se encontra, muitas vezes brutal e grosseiro, que tem em Aristófanes o seu mais notável representante. Aristóteles assinalará depois, na Ética a Nicómaco, a transição para uma comédia mais refinada, a qual constituiria um progresso de sofisticação do cómico335. Outro importante testemunho do papel do riso no período arcaico são os textos homéricos. Não sendo aqui predominantemente obsceno, ele é no entanto malévolo; é uma arma de ataque, um instrumento de humilhação do outro, temido e temível (cf. Minois, 2007: 34-38). E é precisamente a partir do texto homérico que Platão, na República (388d), desencadeia um dos seus ataques ao riso. Homero representara os deuses acometidos de «um riso inextinguível» perante a figura do coxo Hefestos, que no Olimpo se afadigava servindo- lhes néctar. Platão não concebe nem aceita tal reação dos deuses; na verdade, os próprios homens se deveriam abster de rir; logo, se rir é indigno dos homens, será forçosamente, por maioria de razão, indigno dos deuses. A razão desta desejável abstenção humana prende-se, explica Platão, com a dimensão excessiva do riso336, mas é pouco provável que lhe fosse indiferente, no texto da Ilíada, a própria circunstância que motiva a reação hílare do Olimpo. Com efeito, no Filebo (XXIX) a questão do riso é retomada; neste diálogo, Platão censura aquele que se ri quando assiste a uma comédia porque esse riso contém uma componente de malícia: ele resulta do reconhecimento nas personagens de um vício, uma fraqueza ou uma inferioridade, e é injusto alguém rir-se na presença do infortúnio, em vez de se entristecer. Nesse caso, como poderiam os demais deuses rir-se da inferioridade física de um deles? Platão proscreve, então, o riso com base em dois aspetos críticos da sua ocorrência: um deles diz respeito exclusivamente àquele que ri, e se vê assim assaltado por uma paixão violenta que o faz perder o autodomínio; o outro manifesta-se na relação estabelecida entre quem ri e o objeto do riso, relação essa assente numa deficiência ética, na medida em que o riso traduz uma atitude de hostilidade, de superioridade e de humilhação exercida sobre alguém. 335 «O modo de parodiar de quem é fino difere do do subserviente, tal como a forma de brincar do que tem educação difere da do que a não tem. Poderá ver-se isto na diferença que existe entre as comédias antigas e as modernas. O que era motivo de riso para os primeiros era a obscenidade, para os segundos é mais a insinuação» (1128a1). 336 «[…] quase sempre que alguém se entrega a um riso violento, tal facto causa-lhe uma mudança também violenta» (ibidem). 244 Aristóteles é, em relação ao humor (como acontece em relação à poesia ou à retórica, por exemplo), menos radical do que Platão. É certo que, nas breves passagens analíticas sobre a comédia que ocorrem na Poética, Aristóteles insiste na posição vulnerável de quem é nela representado, porque a comédia imita os homens «piores […] do que eles ordinariamente são» (1448a9), surpreendendo-os em «ações ignóbeis» (1448b16), colando-os ao torpe e ao ridículo (1449a22). Mas, na Ética a Nicómaco, falando não da comédia enquanto género poético mas do cómico enquanto prática social, Aristóteles defende uma solução de meio-termo entre «os comediantes que fazem palhaçadas ultrapassando o limite do ridículo», para quem não é uma preocupação «evitar fazer sofrer quem é objeto do seu escárnio», e aqueles que «não dizem nada engraçado e não suportam que os outros o digam» (1128a1). Segundo Aristóteles, há um humor de bom gosto, espirituoso e agudo, característico dos espíritos mais ágeis; no entanto, a maioria das pessoas deleita-se mais do que deveria com a paródia e o gozo. Depois de afirmar que «uma piada é num certo sentido uma espécie de insulto» (ibidem), Aristóteles descreve o «comediante», aquele que tudo sacrifica ao cómico, como alguém que é «dominado pela dimensão cómica da existência e não se poupa a si nem aos outros, quando se trata de fazer rir» (ibidem). Cícero, um orador hábil no uso do humor, que por vezes leva ao limite da inconveniência (cf. Beard, 2014: 100-105), aborda também com alguma cautela esta questão no plano teórico. No De Oratore, embora não considere o humor redutível a regras (II, LIV, 216; II, LVI, 227), Cícero reconhece que este pode ser útil ao orador e consagra-lhe alguma atenção. Ainda assim, não é sem reservas que aborda este tema: afinal, o talento cómico não é propriamente dos mais invejáveis (II, LVI, 228), e o humor é sobretudo visto como uma arma eficaz para atingir certas fraquezas do adversário, mais suscetíveis de o expor ao ridículo (II, LVI, 229), uma vez que o território do humor é o da repugnância moral e da deformidade física (II, LVIII, 236). Na Institutio Oratoria, Quintiliano, não sem antes prestar o seu tributo de admiração ao engenho humorístico de Cícero (VI, III, 2-5), coloca, também ele, na órbita da derisão e da depreciação o humor que toma alguém para seu objeto: «en ce qui concerne les autres, nous critiquons, nous réfutons, nous rabaissons, nous rétorquons, nous éludons» (VI, III, 23). No entanto, Quintiliano concebe outras vias para o humor que o aliviam desta carga hostil, nomeadamente o humor que toma como lugar o próprio sujeito da 245 enunciação, bem como aquele que incide sobre um tópico externo ao conjunto dos homens337. O cristianismo reforçou a desconfiança clássica em relação ao riso. Numa perspetiva bíblica, o riso surge depois da queda; no paraíso, Adão e Eva não riem: «Nenhum defeito, nenhum desejo, nenhuma fealdade, nenhum mal: não há lugar para o riso no jardim do Éden» (Minois, 2007: 106)338. O riso é, então, diabólico; ele nasce de uma cisão, da perceção de uma incompletude, que se torna urgente desfigurar até ao grotesco como forma de apaziguar a angústia que esse vazio representa. O Antigo Testamento contém várias referências ao riso, nomeadamente ao riso de escárnio, ao riso castigador – frequentemente o riso de Deus, que toma por objeto os injustos (Salmos: 2, 3; 37, 13; 59, 9; Deuteronómio: 28, 37). No Eclesiástico, diz-se que o riso dos insensatos é «orgia de pecado» (27, 13) e instruem- se os pais para que não se riam com os filhos (29, 30). O Eclesiastes, depois de afirmar que o riso é tolice (2, 2), professa que «é melhor a tristeza do que o riso» (7, 3). O Novo Testamento, por seu lado, não representa neste aspeto uma abertura; Georges Minois, pelo contrário, observa que o tom é aí mais grave: «onde quer que no Novo Testamento se trate explicitamente do riso, é para o condenar como zombaria ímpia e escárnio sacrílego» (Minois, 2007: 114). É, no entanto, a teologia que em definitivo confirma a diabolização do riso e a sua proscrição do quadro de referências dos fiéis: sobretudo com S. João Crisóstomo, o principal responsável pela difusão da ideia de que Jesus nunca riu, mas também com o contributo de figuras como as de Santo Ambrósio, Santo Agostinho, S. Jerónimo ou Clemente de Alexandria (Minois, 2007: 119-125). As regras monásticas, desde S. Pacómio, o fundador do monasticismo cenobita, confirmam esta aversão, ao inscrever regularmente nos seus códigos a proibição do riso (cf. Morreall, 2009: 5-6; Le Goff, 1989: 5- 6). Em O Nome da Rosa, de Umberto Eco, Jorge de Burgos encarnaria supinamente este espírito: o riso é uma coisa vil e marginal que toma por objeto o defeito, o vício e a fraqueza; por isso se impõe a censura do segundo livro da Poética de Aristóteles, porque o riso pertence à ordem do ventre, e a divulgação do texto aristotélico poderia fazê-lo ascender ao domínio do intelecto e assim integrá-lo na ordem do saber (Eco, s/d: 468-71). E, em última instância, 337 Este último enquadra-se na teoria da incongruência, uma vez que «consiste à tromper l’attente, à détourner l’acception des mots» (VI, III, 24). 338 Esta mesma ideia pode ler-se num texto de Joseph Addison publicado em 1712 no jornal The Spectator, de que Addison foi fundador: «I have read a sermon of a conventual in the church of Rome, on those words of the wise man; “I said of Laughter, it is mad; and of Mirth, what does it?” Upon which he laid it down as a point of doctrine, that laughter was the effect of original sin, and that Adam could not laugh before the fall» (1902: 146). 246 o que Jorge de Burgos teme sobre todas as coisas é que o riso incida sobre a própria entidade divina, consumando-se assim a inversão da relação hierárquica entre criador e criatura. Já na idade moderna, Descartes, em As Paixões da Alma, recupera a interpretação clássica do riso como paixão ambígua, uma vez que, no riso, à alegria que exteriormente se manifesta subjaz um contraponto de ódio (art. 125-126; 178). Desta forma, para o filósofo francês o riso preserva, em certa medida, um carácter hostil e castigador, nomeadamente na sua forma escarninha (art. 178-9). Thomas Hobbes, em A Natureza Humana, refere-se expressamente à «superioridade» (1983: 112) de quem ri relativamente ao que suscita o riso: uma das causas desta paixão, escreverá depois no Leviatã, é a «visão de alguma coisa deformada em outra pessoa, devido à comparação com a qual subitamente nos aplaudimos a nós mesmos» (1999: 62); o prazer que advém de percebermos as imperfeições do outro alimenta, então, o nosso autoconceito. Assim, observa Hobbes, «um excesso de riso perante os defeitos dos outros é sinal de pusilanimidade. Porque o que é próprio dos grandes espíritos é ajudar os outros a evitar o escárnio e comparar-se apenas com os mais capazes» (Hobbes, 1999: 62). Esta conceção do humor, ou pelo menos do riso, como manifestação de hostilidade dirigida contra um objeto do qual se expõem as debilidades, os defeitos e as deformações – logo como manifestação de um sentimento de superioridade em relação a esse objeto – dominou a reflexão sobre este tema até ao século das Luzes (Morreall, 2009: 6); no entanto, o próprio Bergson reconhece no riso uma forma de castigo e de humilhação exercidos sobre aqueles que dele são objeto (1993: 134), dado que faz parte da sua essência «um fundozinho de maldade, ou pelo menos, de malícia» (1993: 135), associado a um sentimento de superioridade: «o que ri […] afirma-se mais ou menos orgulhosamente ele próprio e tende para considerar a pessoa de outrem como um fantoche do qual segura os cordelinhos» (Bergson, 1993: 135). Hoje, refere Morreall, esta corrente tem ainda os seus representantes contemporâneos, como o filósofo inglês Roger Scruton (Morreal, 2009: 6). A partir do conjunto destas observações sobre o riso e o humor, dispersas no tempo e muitas vezes laterais em relação ao tópico principal do texto em que foram vertidas, a crítica concebeu o conceito algo equívoco de teoria da superioridade (ou da hostilidade). Equívoco porque, observa Morreall, não estamos propriamente perante uma teoria una, global e consistente (Morreall, 2009: 6). Em última instância, como defende Sheila Lintott (2016), é mesmo possível pôr em causa que seja legítimo formular uma teoria da 247 superioridade a partir dos contributos dos autores que tradicionalmente a sustentam, precisamente devido ao facto de esses contributos consistirem, regra geral, em reflexões que convocam de modo acessório a questão humor, não a tendo no seu epicentro. Ainda assim, o conjunto dessas considerações proporciona inquestionavelmente um enquadramento produtivo para compreender alguns aspetos essenciais das modalidades do riso e do humor assumidas pelos autores d’As Farpas: desde a própria figuração do riso na figura demoníaca de Asmodeus até à conceção do humor como dispositivo hostil, cruel, como exercício de violência sobre um alvo – passando igualmente pela questão das reservas que esse exercício suscita no plano ético. Mas se o humor é de uma forma geral objeto de censura pela generalidade das abordagens que dão corpo a esta corrente teórica, se ele é quase sempre visto como um vício, As Farpas assumem-no como uma arma legítima – uma arma ao serviço de uma ideia de justiça. O que faz do humor um expediente censurável à luz do filtro ético que cobre praticamente todo o campo da teoria da superioridade é o facto de esta conceber como cenário dominante aquele em que o riso incide sobre as fragilidades de quem se encontra num plano inferior ao de quem ri: Hefestos é um deus menor perante os seus pares do Olimpo e por isso, segundo Platão, seria indigno os outros deuses rirem-se dele; para Hobbes o riso é igualmente vil porque quem ri toma como alvo os que lhe são inferiores, não os mais capazes. Por isso, quando o Clamor do Povo se insurge contra as «páginas irónicas» (F: 241) que As Farpas tinham dedicado no número de setembro de 1871 a D. Eugénia de Montijo, o Clamor representa a viúva de Napoleão III como uma «mulher desgraçada» (F: 241), que «não tem quem a defenda» (F: 242), e retrata-a «saindo das Tulherias abraçada a seu filho» e «tendo trocado a sua coroa de imperatriz por uma coroa de espinhos» (F: 242). Todo o artigo com que Eça responde ao Clamor do Povo consiste na correção deste retrato: ponto a ponto, Eça mostra que Eugénia de Montijo não é uma mulher desgraçada, «é apenas uma imperatriz despedida» (F: 241) – e que, por isso, ela não representa o universo dos fracos, mas o dos poderosos. O que legitima eticamente o uso do humor como arma no caso d’As Farpas é, por isso, a sua submissão a uma ideia de justiça e de revolução: se o humor é efetivamente um exercício de superioridade, essa superioridade, nos textos de Eça e de Ramalho, é exercida pelos cidadãos sobre quem está investido de poder. Mas a abordagem do humor como manifestação de superioridade ou hostilidade está longe de explicar todas as dimensões deste fenómeno: centrando-se em certos aspetos 248 situados nos planos ético, psicológico ou sociológico do humor, ela não investiga, por exemplo, os mecanismos diretamente envolvidos na sua produção e na sua perceção. A teoria da superioridade partilha, por isso, o campo do estudo do humor com outras abordagens, destacando-se historicamente duas: a teoria da incongruência e a teoria do escape339. Esta última encara o humor como uma via de libertação de tensões acumuladas e um dispositivo de compensação de impulsos reprimidos. Uma vez que me parece revestir-se de menor relevância para a compreensão do humor queirosiano n’As Farpas, a teoria do escape não será objeto de abordagem detalhada neste trabalho340. Quanto à teoria da incongruência, dado que é a única que procura direcionar os seus recursos, não para as motivações ou para as consequências do humor, mas para a constituição e o funcionamento dos mecanismos da sua engrenagem, ela é atualmente considerada a mais produtiva das três341. É também, a par da teoria da superioridade, essencial para a compreensão das modalidades do humor que As Farpas praticam: por um lado, porque constitui um contributo importante para iluminar os mecanismos retóricos e cognitivos que lhe são subjacentes; por outro, porque certos aspetos 339 Sobre as teorias da incongruência e do escape pode dizer-se algo semelhante àquilo que se afirmou acima acerca da teoria da superioridade: não se trata de teorias orgânicas, mas de construções que recobrem um conjunto de reflexões sobre o fenómeno do humor que apresentam afinidades entre si (cf. Morreall, 2009: 6). 340 Talvez o passo em que Eça clama que não lhe tirem o riso porque precisa dele (é ele a sua vingança) aponte para a sua dimensão catártica (F: 139), mas parece-me arriscado ir além daqui e ensaiar algum tipo de leitura psicanalítica desta ou de qualquer outra ocorrência. Em termos sucintos, os nomes mais importantes da teoria da libertação, ou do escape, são os de Herbert Spencer e de Freud, mas ela tem a sua génese no século XVIII. O sistema nervoso é então concebido como uma rede de vasos em cujo interior circulam os «espíritos animais», uma substância gasosa que Descartes, em As Paixões da Alma, descreve como «certo ar ou vento muito subtil» (2008: 91). Quando se verifica um aumento da pressão destes «espíritos» no sistema, gera-se uma excitação emocional; o riso funciona neste caso como válvula de escape. Lord Shaftesbury, em Sensus Communis: An Essay on the Freedom of Wit and Humour (1711), não só confere à palavra ‘humor’ o sentido de que ela se reveste atualmente como esboça os fundamentos da teoria do escape (cf. Morreall, 2009: 16), mas é Herbert Spencer, em «The physiology of laughter», quem desenvolve de modo determinante esta teoria, propondo-a como uma abordagem alternativa às outras duas – uma abordagem fisiológica (s/d: 397-8). Spencer pretende que o riso seja visto como uma forma de libertação da excitação nevosa, a manifestação de uma descarga não dominada de energia (s/d: 405). É, no entanto, Freud, nomeadamente em O Chiste e Sua Relação com o Inconsciente (1905), quem imprime a esta teoria a sua direção definitiva. Para Freud, a elaboração onírica que preside ao processo de transformação de conteúdos latentes em conteúdos manifestos no sonho encontra paralelo na produção dos ditos espirituosos. Mecanismos como a condensação, a deslocação, o raciocínio equívoco, o non-sense ou a representação pelo oposto são comuns ao funcionamento de certas manifestações de humor e à génese dos sonhos (2017: 127). Esta aproximação entre o mot d’esprit e o sonho assenta na tese de que nos encontramos perante emanações do Inconsciente. Freud sustenta que o dito espirituoso traduz sobretudo a satisfação de um instinto de natureza sexual ou agressiva, correspondendo, desta forma, a uma libertação de energia normalmente usada para reprimir esse instinto. 341 Nas últimas décadas, a teoria da superioridade foi dando origem a uma série de subteorias nela inspiradas: a teoria da bissociação de Koestler, a teoria dos scripts semânticos de Raskin, a teoria geral do humor verbal de Raskin e Atardo, etc. 249 desse humor suscitam um interessante cruzamento entre o quadro de propostas desta teoria e o quadro de propostas da teoria da superioridade/hostilidade. 4.5. Humor e incongruência Alberto de Queirós, num texto publicado n’A Revolução de Setembro a 26 de outubro de 1871, comenta a certo ponto um artigo d’As Farpas que ele considera ser o melhor («a obra mais bem acabada») da edição do mês anterior: trata-se de um artigo de Eça que aborda a dispensa de revista alfandegária da bagagem da ex-imperatriz de França Eugénia de Montijo, e Alberto Queirós celebra-o como «obra-prima de graça». Esse mesmo artigo d’As Farpas viria a ser depois objeto de censura por parte do Clamor do Povo, que nas suas páginas acusa Eça e Ramalho de com ele moverem um escusado e deselegante ataque a Eugénia de Montijo, viúva de Napoleão III. É provável também que a própria Alfândega de Lisboa não tenha gostado especialmente da forma como se viu retratada no texto queirosiano. Mas Alberto de Queirós fixa a sua leitura noutros aspetos: Ah! meus caros leitores, como havemos nós de exprimir com a nossa pena pesada e mesmo diremos um pouco grave, todas as facécias, todas as invenções, todos os saltos, todas as deslocações deste artigo, obra-prima de graça, de espírito, de finura e de estilo. Decididamente renunciamos à tarefa, e para terminarmos, diremos só que admiramos sem reserva, que nos desnorteia completamente esta alegria, e esta verve inesgotáveis. (apud Reis, 1987, II: 88) Se O Clamor do Povo aponta (e deplora) a hostilidade do artigo queirosiano, o irmão de Eça assinala (e celebra) antes os «saltos» e as «deslocações» através dos quais esse texto produz a sua comicidade hostil. Neste como em muitos dos artigos escritos por Eça de Queirós, o humor ocorre na curva do raciocínio, na inflexão a que o leitor é forçado para acompanhar o movimento do texto; ocorre cada vez que a expectativa sequencial é quebrada e percebemos que o sítio onde nos encontramos não corresponde à direção em que parecia caminharmos. Essa alegria que desnorteia, conforme lhe chama Alberto de Queirós, passa neste caso, por exemplo, pela reductio que constrange o leitor a chegar à conclusão de que lhe convirá cometer alguns crimes para poder usufruir de um trânsito mais ágil na alfândega. Ou então passa pela reunião sob o mesmo conceito de entidades que não julgaríamos possível 250 ver associadas: a «ideia napoleónica» e os roupões da ex-imperatriz (F: 179-80); a empresa colossal de reformar as injustiças de todo um sistema social e a tarefa modesta de reformar as injustiças da alfândega portuguesa (F: 180). Mas, a despeito de o humor deste texto resultar de semelhantes saltos e inflexões, ele não deixa de ter um alvo – ou até mais do que um. Este caso é ilustrativo da ideia de que a comicidade de um texto pode assentar na exploração de incongruências lógicas ou de associações inesperadas enquanto mecanismos de produção do humor e simultaneamente resolver-se numa atitude crítica (ou mesmo irrespeitosa) em relação a uma entidade visada. No caso d’As Farpas, o casamento entre estas duas vertentes é especialmente produtivo e dá corpo a uma das mais importantes teses plasmadas nos textos de Eça e Ramalho: de uma forma geral, as figuras e as instituições representadas nas páginas da publicação tornam-se risíveis (perdendo assim o respeito devido ao estatuto de que estão simbolicamente investidas) precisamente na medida em que As Farpas reproduzem, numa imagem aumentada pela lente humorística, as incongruências e as contradições em que elas incorrem – isto é, as flagrantes distorções dos princípios da lógica e do bom senso. Ao chamar a atenção para os «saltos» e as «deslocações» operados pelo texto de Eça, Alberto de Queirós aponta para procedimentos de construção do humor que estão na base da abordagem deste fenómeno proposta pela teoria da incongruência. Embora esta só adquira um corpo relevante de contributos a partir do século XVIII, é possível rastrear desde a Antiguidade passagens textuais que a anunciam. Alguns dos autores abordados no ponto relativo à teoria da superioridade, ao tratarem a questão do humor, observam que este é por vezes o resultado de uma súbita e surpreendente inflexão na lógica que organiza o encadeamento de uma determinada sequência discursiva ou situacional. Aristóteles, na Retórica (III, 11), refere-se ao papel do inesperado, do efeito surpresa, no funcionamento da anedota e do verso cómico; no De Oratore, Cícero nota que nos rimos quando esperamos ouvir uma coisa e é dita outra (II, LXIII; II, LXX); Quintiliano, na Institutio Oratoria (VI, III, 61), considera que a adaptação de um tópico a uma circunstância que normalmente remete para outro campo diferente constitui um engenhoso divertimento. Em As Paixões da Alma, Descartes associa ao riso também «a surpresa da admiração» (art. 126). Mas é em grande medida sob a forma de contestação às teses de Hobbes sobre o riso que irá ganhando expressão a ideia de que o que 251 define o humor não é tanto uma subjacente atitude moral em relação ao seu objeto de incidência, mas o mecanismo da sua deflagração, assente na violação da expectativa ou da lógica de uma dada sequência. São exemplo dessa deslocação do foco de abordagem autores como Francis Hutcheson, James Beattie ou George Campell. Num ensaio de 1726, Reflections Upon Laughter, and Remarks Upon the Fable of the Bees, Hutcheson distancia-se da interpretação hobbesiana da teoria da superioridade e sustenta que «the cause of laughter is the bringing together of images which have contrary additional ideas, as well as some resemblance in the principal idea» (1750: 19). James Beattie, no seu Essay on Laughter and Ludicrous Composition, depois de refutar igualmente Hobbes nesta matéria (1776: 332 e ss.), propõe uma interpretação do funcionamento do humor baseada na articulação de dois ou mais elementos incongruentes: «Laughter arises from the view of two or more inconsistent, unsuitable, or incongruous parts or circumstances, considered as united in one complex object or assemblage, or as acquiring a sort of mutual relation from the peculiar manner in which the mind takes notice of them» (1776: 347)342. George Campbell, pela mesma altura, alimenta reservas semelhantes em relação à teoria da superioridade (1849: 50-4) e coloca também ele a tónica do humor na surpresa, nomeadamente no cruzamento de elementos desencontrados: «[…] it is the design of wit to excite in the mind an agreeable surprise». Este efeito, explica Campbell, pode obter-se através de três procedimentos, seja de forma isolada, seja por meio da combinação de dois, ou de todos: «debasing things pompous or seemingly grave», «aggrandazing things little and frivolous», «setting ordinary objects, by means not only remote, but apparently contrary, in a particular and uncommun point of view» (1849: 30-31). Tal como Beattie343, Campbell concebe expressamente a incongruência como a chave para compreender o riso: «[…] laughter may be, and is daily produced by the perception of incongruous association, when there is no contempt» (1849: 51). Em traços muito gerais, o que subjaz a esta conceção do humor é a ideia de que a compreensão do mundo assenta na reiteração de padrões que permitem prever determinadas sequências; o humor instala-se quando esses padrões regulares são quebrados e a expectativa 342 Beattie, porém, revela já consciência de que nem todas as incongruências desencadeiam um efeito humorístico («though every incongruous combination is not ludicrous, every ludicrous combination is incongruous» – Beattie, 1776: 351), uma questão crítica que será objeto de várias abordagens a partir do século XX (cf. Ermida, 2002: 70-2). 343 Beattie refere-se no seu ensaio à coincidência de pontos de vista com Campbell nesta matéria, sem que houvesse, porém, segundo o seu testemunho, alguma espécie de influência de qualquer deles em relação ao outro (1776: 326). 252 é surpreendida por algo radicalmente inesperado. Na Crítica da Faculdade do Juízo, Kant define o riso precisamente como «um afeto resultante da súbita transformação em nada de uma tensa expectativa» (1998: 238), e linhas antes observa que ele ocorre quando «o entendimento […] não encontra o esperado», pelo que «[e]m tudo o que pode suscitar um riso vivo e abalador tem de haver algo absurdo». Kant demarca-se igualmente da teoria da superioridade, nomeadamente quando comenta a anedota do índio que se mostra surpreendido ao ver a espuma que jorra de uma garrafa de cerveja, não por ela sair, mas por não compreender como é que foi possível colocá-la lá inicialmente: não está, ainda assim, de modo nenhum em causa, para o filósofo alemão, que «nos consideremos mais inteligentes que esse néscio» (1998: 240); o riso resulta aqui apenas do facto de o desenlace desta situação dissipar a expectativa criada. Schopenhauer irá conferir um grau de elaboração mais sofisticado a esta linha de reflexão e, em O Mundo como Vontade e Representação, produz um dos mais importantes contributos para a consolidação de uma teoria da incongruência. Na verdade, Schopenhauer considera erróneas as teses kantianas (1966: 771), mas a sua proposta (a que ele chama «a verdadeira teoria do riso» – 2008: 115) é em certa medida um refinamento da reflexão de Kant. O desencontro kantiano entre a expectativa prévia e aquilo que efetivamente ocorre dá lugar, na tese schopenhaueriana, a um desacordo entre um conceito e um objeto, isto é, uma representação abstrata e uma representação intuitiva. Schopenhauer sustenta que o riso «não é nunca outra coisa senão a falta de concordância – subitamente constatada – entre um conceito e os objetos reais que ele sugeriu seja de que forma for» (2008: 114); assim, o riso ocorre essencialmente quando dois objetos de naturezas discordantes são reunidos sob o mesmo conceito, que os abarca e identifica de forma inesperada, ou então quando essa discordância se verifica entre o objeto e o conceito no qual ele é subsumido. O episódio dos guardas prisionais que descobrem que certo preso com quem jogam às cartas tenta fazer batota e por isso decidem expulsá-lo da prisão ilustra esta tese: a decisão dos guardas consiste em integrar inesperadamente o preso num conceito que à partida não se lhe deveria aplicar (aquele que determina a exclusão do jogo de um jogador batoteiro), uma vez que esse conceito oblitera a sua condição de detido. Bergson, cujo contributo para a reflexão sobre o humor atravessa na verdade as principais teorias, propõe a ideia de que o cómico resulta do facto de uma situação pertencer «a duas séries de acontecimentos absolutamente independentes», produzindo no espírito um 253 «movimento pendular […] entre duas interpretações opostas» (1993: 74). Para Bergson, porém, o cómico não resulta propriamente da perceção de uma incongruência; ele só acontece, de facto, no momento em que essa incongruência é superada (cf. Ermida, 2002: 68-9), uma ideia depois recuperada por autores como Thomas Schultz ou Jerry Suls (cf. Morreall, 2012). Esta via de abordagem do fenómeno do humor sob o signo da incongruência (ainda que que este termo seja por vezes objeto de variações lexicais – Monro prefere falar em «impropriedade», ao passo que Edith J. Hols opta por «irregularidade», por exemplo. Cf. Lippitt, 1991: 22) é aquela que hoje prevalece no âmbito dos estudos sobre esta questão, por vezes em articulação com outros quadros teóricos, quer do campo da comunicação, quer mesmo de áreas que lhe são alheias – desde o princípio da cooperação de Grice (Zhan, 2012) até à teoria quântica (Gabora e Kitto, 2017). 4.6. Figurações do absurdo: a construção do cómico n’As Farpas Do que ficou exposto acima, é importante para já reter duas ideias fundamentais. Em primeiro lugar, o humorismo que As Farpas selecionam como registo adequado ao seu programa é estratégico e instrumental. O que é verdadeiramente castigador na sua intervenção não é tanto o humor, mas o riso: é este que coleciona os epítetos de amargo, implacável, destruidor, cruel, vingativo (qualificações que o humor propriamente dito nunca merece). Assim, a publicação só se poderá cumprir na medida em que for capaz de levar uma população alargada a rir-se daquelas instituições que sustentam o statu quo decadente do país – isto é, na medida em que for capaz de levar a população a perder o respeito por essas instituições, a colocar-se perante elas numa posição de superioridade; enfim, a desprezá-las. Em segundo lugar, os mecanismos humorísticos a que As Farpas recorrem para provocar esse riso assentam em grande medida na exploração de nexos paradoxais, de inflexões lógicas, de associações inesperadas, através dos quais são expostas (reveladas) as múltiplas distorções dos princípios da lógica e do bom senso em que incorrem as entidades visadas. A lógica do humor d’As Farpas não é, por isso, a do efeito avulso e efémero; ela obedece a uma estratégia, seleciona determinados recursos, tem um objetivo definido. Se o 254 humor d’As Farpas assenta sobretudo na exploração de um padrão de incongruência lógica, trata-se em todo o caso de um padrão meticulosamente orquestrado: ele compõe-se a partir do mapeamento de uma infindável série de violações da lógica do bom senso inscritas quer no funcionamento intrínseco das instituições, quer na forma como essas instituições se relacionam com os cidadãos, ou ainda (como consequência última das distorções geradas pelas circunstâncias anteriores) no sistema viciado de relações que os cidadãos acabam também por estabelecer entre si. Isto é, a falha lógica, o contrassenso, o absurdo, pré-existem no objeto d’As Farpas – o país – ao exercício humorístico que sobre ele incide. É o próprio Eça quem o afirma: o humor d’As Farpas não cria o cómico, descobre-o344 – e descobri-lo significa a um tempo encontrá-lo e revelá-lo. As Farpas são o desenho de um país minado pelo absurdo: eis uma síntese possível (um possível desenho) do projeto de Eça e Ramalho. Em termos muito esquemáticos, parece-me existirem dois processos que os textos queirosianos exploram com especial insistência para concretizar o seu propósito de captar e mostrar o absurdo que preside ao funcionamento das coisas nacionais. O primeiro assenta numa pequena ficção irónica: As Farpas instalam-se elas próprias no âmago do absurdo e a partir daí exploram a sua lógica até ele se tornar insuportável. O segundo consiste em projetar as manifestações da decadência portuguesa numa rede de antíteses que permitem figurar a amplitude do desvio do país em relação a um critério de referência, bem como o nível de distorção inscrito nesse desvio. Nas próximas páginas, tentarei explicar de forma mais detalhada e procedente estes dois processos. 344 «O espírito […] é uma disposição cerebral, que faz descobrir o cómico; que o faz descobrir, através das exterioridades convencionais e as formas consagradas; achar o cómico numa má instituição ou num mau costume (maus pela sua ampla existência, ou maus por se perpetuarem além do momento histórico que os justificam), é pô-los em contradição com o bom senso e com o bom gosto, é anulá-los. Um ato de espírito pode ser assim um ato de grande justiça social» (CP: 117). 255 4.6.1. A «estranha lógica» do mundo português: humor, profecia e alerta Vergílio Ferreira assinala, numa breve passagem de Sobre o Humorismo de Eça de Queirós (Ferreira, 1943: 56), um procedimento humorístico queirosiano relativamente ao qual não parece ter uma opinião especialmente favorável. Está em causa um conjunto de passos em que Eça, explica Vergílio Ferreira, não encontra nada de cómico nos factos ou nas situações que deviam mover o riso; Eça constrói então, a partir desses factos ou dessas situações, uma hipótese, de onde extrai o cómico necessário. Vergílio Ferreira observa ainda que este procedimento ocorre com mais frequência n’As Farpas, sendo quase inexistente fora delas, e os dois exemplos que ilustram este expediente humorístico são, por isso, retirados de textos aí publicados. O primeiro é extraído do número de janeiro de 1872: uma vez que o ministro Rodrigues Sampaio alegara ter assinado certos documentos sem os ler, Eça sugere que o Diário do Governo se arrisca a um dia publicar uma portaria cujo teor consista apenas nas estrofes de um poema lírico (F: 344-45). O segundo vem do número de junho/julho do mesmo ano: tendo-se sabido que o rei, na sua recente visita ao Minho, se deparara à chegada a Vila do Conde com 160 bois perfilados em alas, Eça pergunta-se em que qualidade ali estariam os animais – e acaba, na sequência das hipóteses que levanta, por representar o boi minhoto frequentando a ópera, conversando com o deputado Melício e passeando com a noiva em Seteais (F: 474). Estamos de facto, como afirma Vergílio Ferreira, perante um expediente humorístico recorrente nas farpas queirosianas: através dele, Eça representará, por exemplo, os cidadãos lisboetas a ser devorados por obras municipais; os circunspectos lentes da Universidade de Coimbra, travestidos de mulher, decotados e lânguidos, dançando entre si num baile de doutoramento; o barqueiro que resgata um homem caído ao mar apresentando a este último a conta detalhada das despesas do seu gesto (um tanto por se ter molhado, um tanto por ter nadado, um tanto por ter de secar a roupa, etc.); a polícia vigiando e retificando os comentários que os cidadãos fazem sobre o estado do tempo; o peixe à venda em certa praça do Porto dormindo em cobertores de damasco e tomando café à janela – entre muitos outros quadros forjados com base em situações à primeira vista desprovidas de comicidade. Esta abundância não é casual: está em causa um processo que, segundo Eça afirma na carta a Joaquim de Araújo, As Farpas assumem como essencial à sua missão crítica: identificar e expor (descobrir) o cómico que, não sendo embora visível à superfície de um 256 facto, nele estava contido. As Farpas têm a capacidade notável de extrair humor praticamente de qualquer situação enquadrada pelo óculo diabólico de Asmodeus, mas Eça, na referida carta, faz questão de corrigir Ramalho em relação à etiologia desse humor. Segundo Ramalho, a visão cómica seria produto de uma espécie de lesão cerebral que conferiria uma perceção transfigurada das coisas. Eça, porém, retifica: não se trata de uma lesão cerebral suscetível de instalar em quem dela sofre um filtro que distorce a realidade; trata-se de uma disposição cerebral que se traduz na capacidade de descobrir o cómico onde ele existe – mas ninguém o vê (CP: 117). Por isso, quando o humor d’As Farpas assenta na configuração de um quadro irregular, descabido e absurdo, isso significa que a situação que está na origem desse quadro se encontrava ferida desse mesmo princípio: o que o cómico faz é projetar numa escala ampliada a irregularidade inicial, de forma a torná-la visível. Este processo tornar-se-á mais claro se considerarmos de forma mais detalhada dois casos. No primeiro (número de outubro de 1871), a situação de partida é relativamente anódina: no teatro de S. Carlos, instalara-se o hábito de o público reagir ao que se passava no palco de forma diferenciada consoante o local onde o rei se encontrava a assistir ao espetáculo. Nos dias em que o monarca ocupava a tribuna real, os espectadores abstinham-se de manifestar qualquer reação; nas ocasiões em que o rei ocupava o camarote, o mesmo público aplaudia e pateava sem qualquer reserva. Se a partir daqui Eça propõe uma série de quadros que figuram o público do teatro (vertido num «nós» que extravasa os limites deste grupo e o funde com o universo d’As Farpas) atirando cebolas ao rei, dando-lhe piparotes na orelha ou saltando-lhe para os ombros e esporeando as suas reais ilhargas, isso só é possível porque as circunstâncias iniciais já continham o princípio que preside às hipóteses forjadas pel’As Farpas. O próprio texto queirosiano assinala que a situação autêntica se encontra ferida dessa «estranha lógica»: aquela que subjaz à relação entre o grau de cerimonial com que o rei se apresenta no teatro e o comportamento do público, da qual Eça extrai como princípio «que o rei só é respeitável e só se respeita quando está de gala!» (F: 237). Todo o texto queirosiano, a partir da breve introdução em que é observado este costume e enunciado o princípio que o explica, assume então a forma de uma redução ao absurdo, na qual se exploram as consequências do facto de o comportamento do público divergir em função do local onde se senta o rei. A estranha lógica subjacente aos dados iniciais é, assim, desdobrada e progressivamente amplificada numa série de declinações através das quais a 257 figura real é colocada em circunstâncias progressivamente mais comprometedoras345 – e cómicas, porque irregulares e desconcertantes. Este passo, para além de sinalizar a «estranha lógica» que permite o salto de uma situação inicial aparentemente comum para uma série de cenários cada vez mais absurdos, faz também outra coisa: ele alerta para a inconveniência de se permitir que o princípio identificado se instale e evolua para os cenários propostos. Mas este aspeto é mais notório no segundo caso que pretendo abordar. No mês seguinte (outubro de 1871), As Farpas dedicam um artigo ao problema da cartelização das fábricas de tabaco. A despeito de se tratar de uma indústria à partida extraordinariamente rentável346, as fábricas haviam decidido em coligação aumentar de forma substancial o preço dos cigarros: há muito, refere Eça, que os operários compravam seis cigarros por dez réis, tendo passado, na sequência desse acordo, a pagar os mesmos dez réis por apenas quatro cigarros. Eça argumenta que se está perante um caso de alteração fraudulenta do preço de uma mercadoria e que, por conseguinte, os fabricantes devem cair sob a alçada do Código Penal – sob pena de, caso nada se faça, estar a partir daí ao sabor do seu arbítrio multiplicar por mil o aumento recentemente decretado: Porque, notem, quem impede que amanhã os nossos charutos custem cada um 7$000 réis, e cada cigarro nos saia a 1$800 réis? Estão na lógica os srs. fabricantes. Eles têm a suprema garantia do consumo – a garantia do vício! – E isto virá talvez a acontecer se não tivermos a previdência de nunca comprarmos tabaco – sem irmos acompanhados por algum polícia, e um escrivão que lavre o auto! (F: 267) 345 Eça representa aqui o rei numa sequência de situações que, mais do que atingi-lo na sua dignidade pessoal, ferem em última instância a própria dignidade institucional da monarquia; escuda-se, no entanto, no facto de os desenvolvimentos hipotéticos que o seu argumento propõe serem autorizados por um princípio que ele se limita a identificar, não tendo, naturalmente, qualquer responsabilidade na sua instauração. De resto, o desígnio manifesto do artigo é o de salvaguardar o regime, como se lê no final do texto: «Ora isto, realmente, não convém à Monarquia!». Eça coloca-se, assim, numa posição inatacável. No entanto, este é um artifício recorrente n’As Farpas: há vários passos em que se projetam os efeitos de uma lógica distorcida sobre a figura do rei, quase sempre com efeitos fortemente iconoclásticos. No mesmo número, Eça representara já D. Luís, «de vassoura em punho», a varrer todo o país, na sequência de uma decisão judicial que condenava um habitante de Gouveia, acusado de matar a mulher, a varrer as ruas da vila: perante tal sentença, alerta Eça, nenhum empregado municipal, nenhum cidadão mesmo, aceitaria doravante desempenhar essas funções, sob pena de passar aos olhos de toda a população por assassino de sua esposa – restaria assim ao rei, insuspeito por via da imunidade régia de que goza, encarregar-se de varrer todas as ruas. Já no artigo que abre o número de junho/julho de 1872, determinado gesto de simpatia dirigido ao rei à saída do teatro suscita a Eça uma analogia na qual o monarca é, a dado ponto, representado como uma dançarina que se corteja. No mesmo texto, a figura real é ainda vítima do arremesso de almôndegas por parte dos súbditos (F: 475), e é mesmo «partido ao meio» (F: 472) em resultado do excesso de entusiasmo da população. Em qualquer dos casos, o texto queirosiano repudia expressamente tais cenários – o que não impede que, sob a proteção desse repúdio, se possa na verdade ler um texto cáustico da imagem de coroa. 346 «Porque até agora, e desde há muito, um operário dava 10 réis e davam-lhe 6 cigarros: as fábricas entendiam que este contrato era vantajoso porque o mantiveram, prosperaram e entesouraram» (F: 263). O sector dos tabacos era de facto gerador de fortunas: ver a este respeito o artigo de Maria Filomena Mónica «Negócios e política: os tabacos (1800-1890)» (Mónica, 2002). 258 Se no exemplo anterior chamei a atenção para a referência textual à «estranha lógica» a partir da qual o texto constrói a sua projeção humorística de um facto real, aqui interessa- me sublinhar o passo em que Eça afirma «E isto virá talvez a acontecer». O cenário concebido não é de todo plausível – ele representaria um aumento do preço unitário do cigarro de 2,5 réis para mil e oitocentos réis. Mas o princípio da arbitrariedade mantém-se: se as fábricas de tabaco podem decretar sem qualquer constrangimento legal, num regime de monopólio concertado e irresponsável, um aumento de 30%, podem nos mesmos termos decretar um aumento de 300% ou de 3000%. A «estranha lógica» subjacente a um facto ou a uma afirmação, projetada num cenário que «virá talvez a acontecer» se se permitir que haja condições para a sua materialização, são, assim, os elementos que constituem, no seu conjunto, a matéria-prima conceptual a partir da qual é fabricada boa parte do humor queirosiano n’As Farpas. Por isso o humorismo desta publicação tem, como referi acima, uma forte componente de profecia e alerta. Uma vez que o forte de S. Julião da Barra exige a uma embarcação em risco de naufragar o pagamento da despesa feita com os tiros de aviso que a salvaram, está aberta a porta para que qualquer ato de auxílio passe a ser pago. Ora isto implica a introdução de um cálculo de custo-benefício no enquadramento da operação quer para quem salva, quer para quem é salvo: o cidadão que cai na rua e é ajudado a levantar-se verá o braço que o ajuda a erguer-se entregar-lhe logo a seguir a conta a pagar pelo gesto amigo; o náufrago no alto mar terá de regatear o seu resgate com a embarcação que o vem salvar; esta poderá, em certos casos, considerar necessário assegurar a garantia de um fiador… O resultado é entrópico, e por isso cómico: trata-se da transposição para uma outra escala do princípio absurdo inscrito no caso real. Muitas situações humorísticas, como referi, são criadas a partir deste processo. O jornal A Nação declara sobre a liberdade de consciência que se trata de um conceito forjado «para enganar os tolos, que nada significa a não ser um grande contra-senso»; no entanto, observa Eça, suspender a liberdade de consciência implica vedar a qualquer cidadão a possibilidade de tecer o mais pequeno comentário de natureza apreciativa – mesmo que esse comentário incida sobre o estado de tempo347. A portaria ministerial que determina o 347 «Ora este modo de pensar pode dar lugar a interpretações aflitivas: / Suponhamos a restauração dada, a Nação triunfante, agora, em junho, em que um frio traiçoeiro nos surpreende à tarde, ao desembocar das ruas. / Um cidadão, recenseado e eleitor, caminha no Rossio, e diz gravemente, com aquele ar meditado que toma a burguesia nas graves questões da vida: / – Diabo, está frio! / Acode subitamente um polícia legitimista, gritando: / – Perdão! o cavalheiro não tem direito a dizê-lo! / Movimento de surpresa do cidadão. / E o polícia mostra-lhe o reportório oficial, onde se lê: / – 12 de junho… calma. / E o polícia terá razão! Desde o momento em que o direito leg[í]tim[o] nega a liberdade de consciência, nenhum cidadão tem direito a espalhar 259 encerramento das Conferências Democráticas alega que estas ofendiam o código fundamental da monarquia, mas Eça recorda que as conferências eram essencialmente exercícios de crítica literária – e que, por isso, «quando se escrever que o sr. Vidal é um poeta lírico ligeiramente inferior a Lamartine, o trono de sua majestade ficará bambaleando um quarto de hora» (F: 78). Muitas vezes, a extensão dessa lógica distorcida inscrita no facto ou na afirmação de origem surge sob a forma de proposta ou sugestão – frequentemente associada a uma pseudo- adesão ao princípio cuja natureza perversa ou absurda se pretende demonstrar. Esta pseudo- adesão traduz-se no pretenso assentimento ao princípio irracional formulado ou estabelecido pela entidade visada no texto, e normalmente é objeto de um notório revestimento irónico, desde logo evidente na forma entusiástica como se exprime o louvor da situação problemática abordada. Assim, o contrato remunerado que o Estado português celebra com Sena Freitas para que este escreva uma história dos Açores é contestado por vários quadrantes da imprensa mas As Farpas glorificam-no, ao arrepio de todas as opiniões348; as sessões parlamentares podem resumir-se a uma batalha de insultos trocados mas As Farpas encontram nesse alvoroço razões para celebrar349; do mesmo modo, a decisão judicial que condena um uxoricida à pena de varrer as ruas de Gouveia (F: 219), a construção no Porto de uma praça de peixe desnecessariamente sumptuosa (F: 157) ou a prática reiterada da polícia de agredir barbaramente cidadãos (F: 213) constituem outros exemplos, entre muitos mais, de situações inaceitáveis que suscitam, a dado ponto, o aplauso d’As Farpas. A adesão irónica a uma tese insustentável é o contrato que permite a instalação do juízo autoral no absurdo, passando Eça a operar a partir da sua lógica. Por isso, aquilo que nos exemplos anteriores era da ordem da profecia assume agora a natureza de sugestão – uma sugestão, naturalmente, com contornos de provocação. No último exemplo da pequena lista que acima elenco, o ponto de partida é uma situação testemunhada por Eça e Ramalho em pleno Chiado: uma patrulha militar, ao deparar-se com uma altercação entre dois cidadãos espanhóis e um grupo de fadistas, distribui uma dose destemperada de coronhadas pelos intervenientes. «Respeitamos, submissos, este procedimento judicial» (F: 213), comenta Eça. doutrinas diferentes das de um reportório fundado na sabedoria das nações – com uma tradição de 100 anos – infalível cartilha das nossas temperaturas!» (F: 85). 348 «Pois bem, para este ato, nós só temos bênçãos, flores, lenços brancos a acenar. Achamos isto um facto de progresso, de elevação civilizadora. Glorificamo-lo: a plebe irrefletida pode ladrar em vão» (F: 184). 349 «Outros que lhes atirem às mãos cheias de apóstrofes irónicas! Nós não! Nós admiramos a quantidade de elevação cristã que há num diploma de deputado» (F: 141). 260 E, porque na véspera um grupo de polícias fora visto a tentar reanimar um homem inconsciente pontapeando-o, Eça sugere que se retirem os benefícios consequentes destes dois procedimentos: se a agressão tem um efeito terapêutico, não é então necessária a escola de medicina; e, visto que qualquer «cidadão estendido morto, com a espinha partida ou o crânio aberto, aos pés do municipal, dá garantias superiores do seu sossego e da sua cordura» (F: 214), podem finalmente encerrar-se os tribunais. No mesmo número (outubro de 1871), mas noutro texto, depois de aplaudir a opinião de um clérigo que repreendera as mães por levarem para a missa crianças pequenas («Respeitamos profundamente esta opinião católica do sr. Encomendado de Santos-o-Velho»), Eça sugere que, à porta das igrejas, ao lado do funcionário enxota-cães, se instale um funcionário enxota-crianças – mas defende depois que a recomendação mais justa do sacerdote seria a de que as mães, quando os filhos lhe chorassem ao peito, «imediatamente lhes esmagassem as cabeças no lajedo» (F: 232). Entre os casos nos quais a apropriação de uma lógica absurda se resolve em termos de profecia e aqueles em que esta se resolve em termos de sugestão, parece-me haver tendencialmente uma diferença de intensidade: a modalidade da sugestão corresponde muitas vezes ao reforço de uma nota de pessimismo, quase de desespero. Aquilo que quase sempre se apresenta à superfície como resultado de um exercício lúdico assume então a forma de uma proposta perturbadora, que exacerba a violência contida no facto inicial e transforma a distensão do riso num esgar de ódio e repulsa350. Um dos artigos sobre a falta de decoro dos deputados que Eça escreve para o número de agosto de 1871 é a este respeito elucidativo. Está em causa a ausência de compostura institucional que o comportamento dos deputados patenteia. Eça, em nome da lógica absurda que preside a esse comportamento indecoroso («Porque não tiram para maior comodidade de suas pessoas a consequência lógica do seu procedimento?»), exorta então os deputados a que adotem uma série de condutas com vista a harmonizar os padrões da axiologia parlamentar: Se se desprenderam de todo o respeito, porque não se desembaraçam das suas gravatas? Se se atribuíram o direito de dizer injúrias, porque não se dão o direito de trazer chinelas? Porque conservam uma certa compostura de toilette, se têm desabotoado tanto a dignidade? Se os não prende o decoro, para que os há de 350 Henrique Lopes de Mendonça, no texto que escreve para o In Memoriam de Eça, apercebe-se deste fenómeno que por vezes se manifesta nos textos queirosianos d’As Farpas da ocorrência de deslizamentos do registo humorístico para o registo da indignação: «Quando, como nas Farpas, ele aspira a uma transbordante alegria, a um riso que peleja, a indignação arrasta-o por vezes a fúrias juvenalescas» (1922: 80). 261 afoguear a sobrecasaca? Vamos, meus belos cavalheiros da injúria franca! Um último passo! Já aniquilaram o decoro, ponham de lado a polidez. – Então! nem se prendam com o asseio! Tirem esses botins e atirem por cima das carteiras – à face do país – essas [peúgas] de alvura duvidosa! Desabotoem esses coletes, e que a pátria veja nas pregas das camisas o suor dos seus eleitos! Venha cerveja! Saltem as primeiras rolhas! caiam as últimas injúrias! Ferva a intriga e espumem os bocks! Ao tilintar dos copos misture-se o embate dos insultos! – É falso, mente! Mais cerveja! Isso é uma bestialidade, fora! – cigarros! Venham as disputas de café, em atitudes de taberna! Ninguém se coíba! Que o fumo do tabaco faça uma nuvem às votações – e as nódoas de vinho um comentário aos projetos de lei! (F: 138) A exortação queirosiana (a sua proposta radical, na senda das suas sugestões de que se dispensem o ensino da medicina ou os tribunais) é, também neste caso, uma provocação decorrente da lógica perversa inscrita no comportamento da entidade visada. Eça procura demonstrar que há apenas um grau – ou um degrau – a separar a situação atual da situação projetada; que os limites últimos do ponto a que se chegou («caiam as últimas injúrias») e os limites primeiros do ponto que se crê ser interdito («Saltem as primeiras rolhas») estão muito próximos – tocam-se. Esse grau ínfimo é a distância que medeia entre uma transgressão espiritual e uma transgressão protocolar das referências inerentes ao espaço parlamentar: de um lado, os valores (o respeito, a dignidade, o decoro); do outro, os aspetos exteriores (a toilette, as gravatas, as chinelas, as peúgas). A lógica da proposta queirosiana assenta num princípio de harmonização do sistema pelo seu nível inferior – ou, vista por outro prisma, vista no negativo da sua formulação, é a denúncia de um regime que, colocado perante duas ordens de valores, ignora os espirituais e concentra toda a sua atenção naqueles que deveriam ser a mera roupagem dos primeiros. Mas, se existe apenas um grau – ou um degrau – a separar estas duas realidades, então o potencial humorístico que um passo como este contém é inevitavelmente tingido por uma coloração amarga. Se o humor está no salto, na incongruência, na contiguização do que pertence a domínios alheios, esta aproximação perfila-se, na verdade, como uma ameaça capaz de ensombrar qualquer dimensão da ordem do divertimento. A provocação queirosiana é, por isso, sobretudo uma acusação, a expressão de um sentimento de exasperação. Ao longo do texto os expedientes humorísticos vão perdendo força perante o reforço do registo da indignação – e essa perda, assumida por Eça no final, é também imputada à classe parlamentar, sob a forma de mais uma culpa: «Olhai! Vós sois tão criminosos que nos fazeis perder o riso» (F: 139). 262 A principal tese que subjaz ao humor d’As Farpas é, sem dúvida, que a lógica dominante na globalidade dos sectores da sociedade portuguesa aponta invariavelmente para o absurdo. E um dos pontos de interesse incontornáveis do projeto de Eça e Ramalho é precisamente essa tentativa de apreender a lógica distorcida que subjaz ao funcionamento do país e de a desenhar de um modo nítido. Esse desenho assume muitas vezes a forma de quadros cuja conformidade com a lógica do raciocínio proposto é diretamente proporcional à sua desconformidade com o senso comum; o efeito humorístico daí emergente resulta justamente da distância que medeia entre a sua lógica interna e o funcionamento da mecânica do mundo. «As pilhérias fazem rir porque interrompem a relação familiar com o mundo e redescrevem-no com observações clarificadoras», observa Abel Barros Baptista no primeiro dos seus Ensaios Facetos (2004: 14). A ideia de que uma afirmação ou um comportamento por vezes de aparência inócua podem hospedar um princípio geral que seja responsável pela instauração de um estado de coisas anómalo compreende, para além do revestimento humorístico, um alcance profundamente crítico: trata-se de exercícios de fazer ver, como preconiza o programa d’As Farpas – nomeadamente, de fazer ver a amplitude da «tolice» (essa entidade repetidamente invocada na «Advertência» à edição de 1890) contida na situação inicial. As Farpas propõem-se, então, revelar os contornos nítidos desse absurdo que existe de forma embrionária em cada facto abordado – expandindo-lhe o perfil, desdobrando os exemplos da sua manifestação, jogando o jogo do absurdo até retirar dele todas as consequências lógicas. O procedimento mais frequente, como procurei demonstrar nos casos acima abordados, compreende três passos: assinalar o caso problemático; identificar o princípio anómalo que nele se manifesta; projetar esse princípio num cenário que amplifica as consequências da sua aplicação. Poder-se-ia talvez ainda assinalar uma derradeira forma de abordagem a esse quotidiano minado por focos de deflagração de uma lógica distorcida. Consideremos, para isso, um artigo já anteriormente abordado (cf. 3.9.1.), publicado no número de junho/julho de 1872, e em cuja abertura nos deparamos com a notícia de um naufrágio recente. A embarcação em risco fora socorrida por uma lancha, enquanto um barco salva-vidas, ali perto, permanecia ancorado. Depois deste enquadramento, Eça prescinde de qualquer mecanismo analítico quando efetua a passagem do caso real para o caso hipotético – e rende- se ao domínio da mais absurda incoerência: 263 Quem tinha obrigação de vir era a bomba dos incêndios. O salva-vidas, não. O salva- vidas só se moveria para algum caso especial, em que ele pudesse dar os seus serviços especiais – como, por exemplo, se tivesse desabado um muro. Então correria. Assim, como era um naufrágio, o salva-vidas conservou-se imóvel, aboborando. (F: 490) Por esta altura, havia já mais de um ano que As Farpas apontavam, texto após texto, a ancoragem de uma série inumerável de factos ocorridos (aqui englobados comportamentos, decisões, posições publicamente defendidas, etc.) em princípios ilógicos, princípios cujas consequências se revelavam desafiadoras do bom senso. Um passo como este representa a superação dessa via, já que assume plenamente a inadequação de uma abordagem racional àquilo que aconteceu e procura instalar-se nessa lógica alternativa, distorcida, e operar diretamente através dela, sem a enunciar. Mas, quer se assinalem e desdobrem as manifestações que anunciam o aparecimento dissimulado de um regime absurdo de funcionamento do quotidiano, quer se assuma esse regime como definitivamente instalado e se mostre como se podem mover as peças a partir das regras erráticas que ele estabelece, aquilo que Eça pretende tornar claro é que o absurdo vai tomando conta da existência do país, e que, se a sua implantação não for contrariada, as consequências do seu pleno estabelecimento conduzirão a vida coletiva a um estádio de irracionalidade insuportável. 4.6.2. O princípio antitético como operador humorístico No início de um artigo do número de julho de 1871, o leitor d’As Farpas depara-se com o elenco das múltiplas perspetivas em função das quais certo comportamento do Barão do Rio Zêzere, Joaquim Bento Pereira, é flagrantemente incompatível com o seu estatuto e os seus deveres de autoridade militar. Logo a seguir, porém, Eça imprime uma súbita inflexão no rumo do texto e passa a enaltecer o carácter do visado. Esta inusitada celebração assenta em grande parte no recurso a módulos usados tradicionalmente na construção da figura do herói guerreiro, onde se refletem fulgurações características do herói épico: o Barão do Rio Zêzere é, assim, representado na sua natureza íntima como «um homem forte, febril de batalhas a dar, palpitante de redutos a tomar, sôfrego de sangue inimigo» (F: 106), 264 excitado pela «atmosfera militar em que [aquela] época se move e respira: guerras no Reno, guerras civis, províncias conquistadas, cidades que ardem, nomes de generais heroicos que cintilam em telegramas, o ruído, a fulguração da glória, a imortalidade na história» (F: 107). Mas, sempre que o texto ergue a figura do Barão do Rio Zêzere ao estatuto de herói e o enquadra no ambiente dos grandes feitos bélicos, Eça invariavelmente fá-lo cair e estatelar-se na estreita e dura mediocridade a que de facto ele pertence351. Conceber que o «valor heroico» possa provocar «furúnculos», invocar «S. Jorge e Portugal!» quando se reprime um foco de conflito inofensivo ou classificar como «corpo de exército» uma força constituída por um único soldado constituem desconformidades sequenciais suscetíveis de provocar o riso: o contraste entre a dignidade de um dos polos e a vulgaridade do outro cabe no domínio das incongruências a partir das quais se desencadeia o humor. Um dos postulados com que George Campbell se propõe exemplificar o modo de funcionamento deste fenómeno consiste precisamente, recorde-se, em vê-lo como resultado de uma operação através da qual se cruzam o frívolo e o grave, o nobre e o vil. Mais de cem anos depois, a proposta de Bergson não é muito diferente: «Transp[or] o solene em termos familiares» (1993: 89), «falar das coisas pequenas como se elas fossem grandes» (1993: 90), «Exprimir, em termos de honestidade uma ideia desonesta; pegar numa situação escabrosa, numa ocupação inferior ou numa conduta vil e descrevê-las em termos de estrita respectability» (1993: 91) são expedientes do cómico. Kierkegaard sustenta que a essência do cómico reside na contradição («The comic is present in every stage of life […], for wherever there is life there is contradiction, and where there is contradiction the comic is present» – 2009: 431), e Ricardo Araújo Pereira, em A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar, afirma a mesma convicção: «A contradição parece habitar a própria ideia de humor» (2016: 351 «Um homem nestas circunstâncias acumula dentro em si, dos gorgomilos ao estômago – quantidades prodigiosas de furor guerreiro. A cada movimento que faz – sobem-lhe à cabeça – vêm-lhe à boca – ondas de ardor bélico. Acrescentem-lhe a isto a atmosfera militar em que esta época se move e respira: guerras no Reno, guerras civis, províncias conquistadas, cidades que ardem, nomes de generais heroicos que cintilam em telegramas, o ruído, a fulguração da glória, a imortalidade na história – e ele, s. ex.ª, condenado, como única ação radiosa, a repreender o 73 da 2.ª, porque furtou uma correia ao 48 da 5ª! / Ora esta castidade na luta – pesa a s. ex.ª. S. ex.ª necessita de dar satisfação às exigências do seu temperamento, e s. exª está viúvo de glória! Por isso, ao mais pequeno motivo, S. Exª de dentro do deputado da maioria saca o herói da municipal. / Houve um tempo feliz entre todos, em que S. Exª andou ferindo as grandes guerras – dos penicheiros. Então S. Exª vivia nos interesses da luta, nas comoções soberbas. Era o tempo das patrulhas dobradas e dos grandes recontros da Rua Nova do Carmo. Então, quando as guardas avançadas lhe vinham dizer: – “Há penicheiros para os lados da Bitesga” – S. Exª, sorrindo, respondia: – “S. Jorge e Portugal” E partia. E o nome de s. Exª aparecia nos telegramas do correspondente de Lisboa – para o Clamor de Alpedrinha! / Outras vezes eram vultos suspeitos que tinham entrado numa casa, a horas lôbregas. S. Exª corria, cercava, bloqueava, destacava um corpo de exército composto do Bento da 5ª – outro composto do José Prefeito da 1ª. Mas ai! os bandidos que S. Exª surpreendia minando as instituições, eram mesários da confraria das Chagas!» (F: 107). 265 43), escreve a abrir o primeiro dos seis capítulos que nesta obra consagra às técnicas humorísticas («Opor uma coisa a outra coisa» é o título dessa secção). E aqui, depois de recuperar no essencial as propostas campbelliana e bergsoniana – «tratar o que é banal como se fosse notável»; «tratar o que é notável como se fosse banal» (2016: 43-44) –, Ricardo Araújo Pereira enumera algumas outras modalidades de que se pode revestir a antítese humorística: colocar lado a lado duas personagens muito diferentes; colocar lado a lado um discurso e uma intenção significativa dissonantes; colocar lado a lado dois registos discrepantes; colocar lado a lado um discurso e uma prática divergentes. Em Sobre o Humorismo de Eça de Queirós, Vergílio Ferreira sustenta precisamente que os processos humorísticos da obra queirosiana, na sua maioria, assentam no contraste (1943: 42). A mesma ideia fora já defendida, aliás, por Ramalho Ortigão num perfil de Eça escrito originalmente para o Diário Ilustrado em 1874 e publicado também no número de outubro desse ano d’As Farpas: «Têm-vos dito que sois humoristas? […] Não, não sois humoristas. O humorista é Eça de Queirós. Não o sois vós porque vos falta a faculdade de criar as grandes violências que se tiram dos grandes contrastes» (1926-8, II: 210). Com efeito, o contraste – a oposição, a antítese – subjaz como dispositivo retórico a um grande número de passagens humorísticas nas farpas queirosianas. Mas a antítese tem n’As Farpas uma relevância que transcende largamente o plano humorístico. Ernesto Guerra da Cal, em Língua e Estilo de Eça de Queiroz, refere-se à «profusão da antítese na sua obra, onde, a partir de Rel[íquia], passa a ser um elemento constante e de primeiro plano» (1981: 281). No entanto, a antítese, investida frequentemente de toda a carga de violência a que se refere Ramalho, é já n’As Farpas inquestionavelmente uma figura fundamental, quer para a construção do estilo, quer para a definição do pensamento. Por esta razão, antes de abordar a antítese enquanto dispositivo nuclear da construção de efeitos humorísticos, creio que se justifica uma breve síntese do papel que ela desempenha noutros planos discursivos destes textos. Como procurarei demonstrar, a antítese está sobretudo associada, n’As Farpas, a um efeito gerador ou potenciador de tensão, e as antíteses humorísticas não se afastam desta matriz, representando embora uma modalidade específica desse efeito genérico. 266 4.6.2.1. A antítese n’As Farpas: tensão, fratura, transporte Quando se abre o número inaugural d’As Farpas e se começa a ler o artigo de apresentação, a primeira figura incontornável (descontando a apóstrofe inicial) com que o leitor se depara é uma antítese. Ela encontra-se precisamente no passo em que Eça ensaia uma tipologia dos leitores («celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil» – F: 16), povoando de possibilidades o conceito vazio de «qualquer pessoa». Estas primeiras antíteses constituem uma série relevante sobretudo pela visão do mundo que lhes subjaz. O seu propósito parece ser acima de tudo colorir352 o discurso (e o quiasmo associado ao último par acentua esta impressão); no entanto, o desenho do mundo que fornecem não deixa de ser o de uma realidade pontuada por pares antinómicos, isto é, há contida nelas uma conceção do mundo como lugar de conflitos de natureza diversa, aos quais nenhum homem pode escapar em virtude de uma série de circunstâncias que são inerentes à sua condição de cidadão pertencente a uma sociedade historicamente organizada de uma determinada forma. Na verdade, é raro que a antítese em Eça se revista de uma dimensão meramente ornamental: ela acaba quase sempre por compreender uma valoração crítica que se projeta sobre um dos seus termos ou sobre algum elemento contextual por ela contaminado. Quando lemos, na abertura do segundo artigo do número de junho de 1871, «Este mês, quando os cravos abriam, as câmaras fecharam» (F: 56), aquilo que parece um início sobretudo galante, um efeito de estilo desprovido de uma vocação crítica evidente, contém na verdade uma componente virtual de desqualificação do segundo termo, ao aproximá-lo do primeiro. Mais do que perante uma antítese ornamental, estamos perante a equiparação da natureza ornamental dos termos em confronto, os cravos e as Câmaras: havendo cravos a alegrar e a colorir os dias, não se justificará que as Câmaras se mantenham abertas, como se estivesse em causa um ciclo vital em cuja mecânica estivessem englobadas as duas realidades. Fundamentalmente, portanto, a antítese é uma figura cuja vocação natural é exprimir a realidade como um palco de tensões e conflitos353. Ela retira a sua força da capacidade que 352 Pierre Fontanier refere-se nos seguintes termos à antítese: «L’effet du contraste des couleurs en peinture et des tons en musique, peut faire juger de l’effet de l’Antithèse» (1977: 379). 353 A pulsão antitética que se deteta desde o início d’As Farpas abrange a própria demarcação por oposição das duas instâncias fundamentais que o processo de comunicação (jornalística, literária, ideológica, argumentativa) necessariamente envolve: por um lado, o leitor, que ou terá bom senso e será leitor – ou não terá bom senso e não o será; por outro, os autores, Eça e Ramalho, que reclamam igualmente a inscrição de um traço que os 267 tem de condensar processos, traduzindo imageticamente essa tensão que Eça procura captar no desenho do mundo que nos oferece n’As Farpas. A antítese tem também a capacidade de transportar, de modo quase instantâneo, o espírito do leitor de um polo ao outro de um espectro de possibilidades ilimitado, desenhando vividamente a tensão do arco que se abre entre esses polos; ao suprimir os estádios intermédios, este movimento de espírito sacode o leitor com maior ou menor violência. A antítese é, por conseguinte, transporte, e é por isso que tem normalmente um lugar importante no âmbito dos recursos do pathos. Num passo como aquele em que Eça, no primeiro número de 1872, especula sobre qual seria a feição do novo ano que acabava de começar, as antíteses que enfileira encenam um dramatismo que visa acima de tudo impressionar a imaginação: Como será o seu rosto – franzino e pacífico ou violento e duelístico? Como será a cor, o jeito dos seus cabelos – grisalhos e acamados como de um musgoso conservador, ou negros e revoltos como de um revolucionário impaciente? Como será a palma da sua mão – macia e seca como a do que espalha dinheiro ou adunca e áspera como a do avaro ganchoso? (F: 322) Há nesta série um labor estilístico que se pretende claramente evidenciar, patente nos emparelhamentos, nas simetrias sintáticas, na crescente amplitude dos membros, no tom enfático; daí que, apesar da ostensiva reiteração de contrastes, seja fundamentalmente como exercício retórico que ela se propõe. No entanto, as potencialidades vigorosamente dramáticas da antítese são exploradas de forma clara nos passos em que a brevidade e a gravidade dos termos em oposição acentuam fortemente o impacto desta construção: «A criança palpita assim, na influência da mãe, – como uma matéria transformável de que se pode fazer um herói ou um justo, um sábio ou um infame» (F: 413)354; «Proudhon disse que a mulher só tem um destino – menagère ou courtisane – dona da casa ou mulher de prazer» (F: 551). Estamos, em casos como estes, no âmago de uma realidade conflitual, consumadamente fraturada, e através da antítese Eça pretende fazer repercutir no leitor essa fratura – por vezes depô-lo no abismo que acaba por se abrir. A antítese é com frequência uma figura violenta, concebida de modo a ferir a sensibilidade do seu leitor; ela revela, por vezes de forma extrema, a tensão latente que existe numa realidade em crise. opõe a todos os outros cidadãos: «Assim todas as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão! / Nós não quisemos ser cúmplices na indiferença universal» (F: 17). 354 Este passo adquire maior vigor na edição de Uma Campanha Alegre: «A criança está assim entre as mãos da mãe como uma matéria transformável de que se pode fazer – um herói ou um pulha» (UCA: 322). 268 Na Retórica Geral do grupo μ, sustenta-se que a antítese encerra uma dimensão hiperbólica, mesmo quando os termos que se opõem não configuram hipérboles isoladamente355. Ora é precisamente a esse carácter hiperbólico que está ligado o pico de intensidade que n’As Farpas determinadas antíteses concentram. No último artigo do número de dezembro de 1871, as palavras de Eça acerca da afirmação do jornal católico Bem Público «estão em primeiro lugar os deveres da lactação, que os desejos da devoção» oferecem-nos alguns exemplos do potencial dramático desta figura. Eça apropria-se da frase do Bem Público e retira dela consequências teologicamente subversivas, demonstrando que, ao enunciá-la, o jornal católico incorre numa flagrante contradição com os seus próprios princípios: A lactação antes da devoção – isto é a natureza antes do misticismo, a razão antes da fé, o dever humano e consciente antes do dever divino e transcendente, o raciocínio antes do dogma, a higiene antes do Evangelho, a mãe antes da devota, o preceito naturalista antes da regra da igreja, o homem antes de Deus! (F: 319) Todo este passo visa extrair uma antítese cujos termos exprimem uma revolução – «o homem antes de Deus» – de dentro de uma outra que, na aparência, se apresentava como relativamente inócua. O fosso conceptual que existe entre a primeira antítese e a última, bem como o efeito de preenchimento mental desse espaço com várias etapas que resulta da multiplicação de pares intermédios, dá-nos a sensação de que existe um percurso ascendente que conduz inevitavelmente à antítese final. No entanto, a locução explicativa «isto é» estabelece uma relação de equivalência entre cada uma das hierarquias que se lhe seguem e a hierarquia inicial, surgindo esta, afinal, como uma espécie de elemento deflagrador de um feixe de consequências lineares, um feixe que diverge da proposição inicial e converge para a derradeira. Entre «a lactação antes da devoção» e «o homem antes de Deus», o salto em termos de alcance e implicações é avassalador, mas o que Eça nos diz é que se trata da mesma coisa: todos os passos que medeiam entre esses extremos são caminhos alternativos que tornam mais clara esta passagem. O seu papel é, portanto, preparar o espírito do leitor para uma formulação derradeira que é simultaneamente expectável e temível, inevitável e insuportável. Sem esses elementos intermédios, esta antítese definitiva perderia parte da sua carga tensional, que lhe advém precisamente das ressonâncias contidas no texto precedente. 355 «[…] bien que l’antithèse ne se fonde pas nécessairement sur la combinaison de deux hyperboles, elle a néanmoins par elle-même un caractère hyperbolique» (Grupo μ, 1970: 136). 269 Poucas linhas abaixo deste passo, o registo antitético reaparece na sua feição intensamente dramática: […] se pões o mais pequeno dever humano antes do mais pequeno dever católico – rachas de alto a baixo o catolicismo: se a mãe deve amamentar antes de rezar, o homem deve refletir na sua consciência antes de obedecer ao preceito religioso: tens a análise, a liberdade religiosa, a reforma, a revolução. Abres uma fresta no mundo velho e entra-te por ela um mundo novo! (F: 319) Sequências como estas ilustram de modo exemplar a forma como nas grandes antíteses queirosianas se encena hiperbolicamente o lugar crítico em que se coloca o indivíduo perante os valores que estão em causa. Elas permitem igualmente ver o papel fundamental da articulação dessas antíteses com o texto adjacente, que as explica, lhes dá sentido e alcance356. É esta vocação dramática, associada a uma natureza tendencialmente hiperbólica, que faz da antítese um instrumento retórico habitualmente convocado quando é necessário maximizar uma tensão ou acentuar uma fratura. Quer ocorra na sua forma breve, que deve a sua eficácia ao modo implacavelmente seco como exprime uma oposição, quer surja na sua modalidade extensa, de intensidade crescente, construída regra geral com o auxílio de figuras geradoras de presença e de tensão, a antítese pretende acima de tudo ferir uma dimensão afetiva do leitor. De resto, preservando estas características essenciais, e particularmente operando a redução das dinâmicas do mundo a um binarismo elementar, a antítese é uma figura versátil na forma como comparece nas farpas queirosianas. Ela marca oposições fortes, abrindo a distância que separa o que é radicalmente diferente – o herói e o pulha, a courtisane e a menagère; ela organiza esquematicamente o mundo, separando os elementos de que ele se constitui e distribuindo-os numa escala de valoração binária357 («O teatro nacional é uma 356 Neste segundo caso, existem duas antíteses fortemente dramáticas: a inicial («se pões o mais pequeno dever humano antes do mais pequeno dever católico – rachas de alto a baixo o catolicismo») e a derradeira («Abres uma fresta no mundo velho e entra-te por ela um mundo novo!»); entre as duas, desfila um conjunto de recursos que, por um lado, esclarecem a primeira e, por outro, introduzem a segunda. A insistência no grau superlativo da pequenez de tudo o que está em causa no primeiro membro potencia poderosamente o contraste entre a insignificância das causas e a gravidade das consequências. 357 É por vezes possível superar este binarismo e reconstituir posicionamentos intermédios a partir do confronto de duas ou mais antíteses. No campo artístico, o clássico prevalece sobre o romântico («Meyerbeer, Gluk, Mozart, Beethoven, são verdadeiros pensadores. Mas S. Carlos canta-os? De modo nenhum, a não ser de dois em dois anos, Meyerbeer a fugir, a fingir. De resto Verdi, Donizetti, Bellini, todos os amorosos! Ora aqueles, respeitamo-los, como ideias que cantam – estes detestamo-los, como erotismos que arrulham» – F: 309); no entanto, um escritor romântico como Camilo deixa de constituir um representante de uma escola literária perniciosa e passa a ser um romancista excelente quando posto em confronto com certo clérigo polémico: «Deve v. ex.ª Reverendíssima saber – que o Diário da Tarde, jornal dessa diocese, tem publicado 270 necessidade inteligente e moral – e o teatro italiano é uma inutilidade luxuosa e sentimental» – F: 228); ela traça o corte preciso que é necessário fazer numa questão cujos termos tendem a confundir-se («Ou o adultério é um facto fatal da natureza eterna, ou é um facto fatal da moral moderna» – F: 544358). Revestida por uma película de ironia, passa a sublinhar a contrario a indiferença substancial daquilo que por vezes se opõe formalmente: «A opinião é tão indiferente e alheia às mudanças de ministérios, como as cadeiras do governo são indiferentes a suportarem a pesada corpulência do gordo ministro A, ou a inquietação nervosa do estítico ministro B» (F: 21)359. Ela sublinha as contradições que se multiplicam um pouco por todo o lado, desde aquelas que se manifestam no plano da realidade física (por exemplo, o convívio de infraestruturas urbanas elegantes e amenas com condições de insalubridade gritantes360) até àquelas – as mais frequentes – que recaem sobre o plano ético e moral, e que muitas vezes configuram casos de incompatibilidade: «E a prova é que tu – que em conversas, entre amigos, no café, és inesgotável de facécia sobre o brasileiro, – és no jornal, no discurso ou no sermão, inexaurível de glorificações ao Brasil. Em conversa é o macaco; no jornal é a nação irmã!» (F: 394)361. Ela expõe a desapontante oposição entre o que devia ser e o que é; entre a esfera ideal e o plano real, exibindo a extensão do declínio da realidade mais próxima362. Em última instância, ela denuncia a própria distorção das cartas trocadas entre o sr. Camilo Castelo Branco, que no mundo profano é um romancista excelente, e Rocha, que é no mundo eclesiástico – qualquer coisa» (F: 333-34). 358 O homeoteleuto acentua o efeito de repetição, mesmo no segmento variável. A variação mínima no plano lexical e fonético é o reflexo discursivo da aparente homogeneidade do problema enunciado, o que não diminui a assertividade da disjunção. 359 A importância do aspeto formal na construção destas antíteses tem alguns lugares fundamentais, como a sua associação a simetrias sintáticas, que contrariam a variação contida nos membros da oposição, ou mesmo ao quiasmo, o que promove a redução ou a neutralização do seu alcance (cf: «Liberdades Públicas» / «Públicas Liberdades» – F: 36). 360 «A glória da capital, o Aterro, a maravilha, é ladeado ao seu comprimento, de duas suaves circunstâncias: o cheiro da imundície dos canos; e o pó da houille das fábricas, dando assim a perspetiva de uma sociedade gentil, rica e dandy – que passeia, no aparato da riqueza e nos vagares do luxo – com a palma da mão sobre a boca e o lenço no nariz!» (F: 290). 361 Novo exemplo da importância dos isomorfismos na potenciação dos efeitos da antítese. As estruturas sintáticas dos membros em oposição são quase simétricas, desenhando-se duas figuras que emanam da mesma entidade («tu») e que revelam ser alternadamente o seu positivo e o seu negativo em função das circunstâncias, privadas ou públicas, da enunciação. Se no texto de 1872 esta atitude divergente tem, ainda assim, distintos objetos de incidência – o brasileiro e o Brasil –, a edição de 1891 neutraliza esta diferença e ‘corrige’ o lugar da cópula verbal no segundo membro: «Por isso tu – que em conversas, entre amigos, no café, és inesgotável a troçar o brasileiro – no jornal, no discurso ou no sermão, és inexaurível a glorificar o Brasileiro» (UCA: 312). A simetria é agora perfeita: Tu em conversas, entre amigos, no café és inesgotável a troçar o brasileiro. no jornal, no discurso ou no sermão és inexaurível a glorificar eeeeeeeee 362 Vejam-se os confrontos entre a religião e o catecismo (cf. supra: 92) – ou mesmo entre a poesia romântica de referência e aquela que se produz no contexto português: «A poesia individual tem um vasto alcance quando o 271 hierarquias de valores vigentes na sociedade portuguesa, desenhando um mundo às avessas, no qual ações culposas, inofensivas ou meritórias são posicionadas numa escala invertida de aceitabilidade (cf. supra: 167-68). Por vezes, a antítese não é lexical; ela pode não ser redutível à rigidez semântica do dicionário – ou então deslocar-se para o lugar dos atributos associados aos valores em causa. Quando, em Uma Campanha Alegre, Eça opõe o «bom Deus» e o «mau jornal»363, os termos da antítese são duas entidades conceptualmente inaproximáveis, pelo que a oposição está concentrada nos adjetivos que os acompanham. Quanto mais conceptual – e menos lexical – é a antítese, mais o leitor é instado a preencher os lugares antitéticos que ela convoca de modo virtual; compete-lhe perceber esses termos como antitéticos, visto que cada uma das entidades em confronto evoca um conjunto de valores que as recobre, define e demarca (nobre vs. ignóbil, útil vs. inútil, adequado vs. inepto, etc.)364. Qualquer abordagem que tenha como objetivo compreender o lugar desta figura na articulação entre estilo e persuasão nas farpas queirosianas terá, pois, de passar necessariamente pela consideração de uma multiplicidade de aspetos que vão da sua versatilidade funcional até à sua variedade formal. Creio, no entanto, que o traço mais marcante da pulsão antitética que atravessa as farpas queirosianas – e que constitui uma indelével marca autoral – é o cunho dramático de que quase sempre se encontram investidas essas antíteses, traduzindo o carácter fraturado e conflitual da realidade nelas representado. poeta se chama Byron, Espronceda, Hugo, Lamartine, Musset. Porque, então, naquelas almas todo o século com as suas dúvidas, as suas lutas, as suas incertezas, as suas tendências, as suas contradições se retrata. São grandes almas sonoras onde vibra em resumo toda a vida que as cerca. Estuda-se ali como num sumário a existência de uma época. Mas, com franqueza, que se há de estudar na alma do sr. João, ou na alma do sr. Francisco? a imensa dúvida que pesa sobre a Baixa? As perturbações ideais que agitam a rua dos Fanqueiros?» (F: 26). 363 «A moda vem de fora, do figurino, feita pela fantasia burguesa de um desenhador de armazém: e aqui, depois, a pobre mulher precisa de reformar o corpo, obra do seu bom Deus – para o acomodar ao figurino, obra do seu mau jornal» (UCA: 326). 364 Assim, num passo como o seguinte: «[A literatura] Fala do ideal, do êxtase, da febre, de Laura, de rosas, de liras, de primaveras, de virgens pálidas – e em torno dessa poesia o mundo proprietário, industrial, fabril, positivo, prático, experimental – pergunta, meio espantado, meio indignado: / — Que quer esta tonta?» (F: 24-5), no qual Eça opõe as preocupações da literatura romântica às exigências do seu momento histórico, o efeito antitético é claro, embora a antítese não chegue a manifestar-se lexicalmente; ela constitui-se implicitamente pela forma como as duas séries em confronto evocam os conceitos antitéticos de ‘ideal’ vs. ‘real’. 272 4.6.2.2. Coordenadas de um percurso humorístico de deceção Isabel Ermida, num artigo em que aborda a escrita humorística de Woody Allen, refere-se à antítese como a quinta-essência dos operadores de incongruência, uma figura primordial suscetível de compreender no seu âmbito outros procedimentos mais específicos (Ermida, 2011: 342). De uma forma geral, os casos abordados em 4.6.1. devem o seu efeito humorístico, como vimos, a um mecanismo de incongruência não explicitamente antitético: o que aí está em causa são antes os constantes saltos e inflexões conceptuais a que o leitor é submetido ao ver os padrões de organização da realidade serem sistematicamente reconfigurados. Seria, ainda assim, possível, segundo creio, conceber que à generalidade desses casos pudesse subjazer uma espécie de antítese virtual, ou elíptica: essa antítese oporia cada uma das manifestações de um princípio de distorção inscrito na realidade a uma matriz de referência assente na lógica e no bom senso. Há, no entanto, n’As Farpas um número muito significativo de casos em que o humor queirosiano resulta, de facto, da criação de tensões explicitamente antitéticas. Recuperemos o texto que Eça dedica à figura do Barão do Rio Zêzere, evocado na abertura do ponto 4.6.2. O elogio (faceto) de Joaquim Bento Pereira que aí se lê serve essencialmente para demonstrar a sua própria impossibilidade (a impossibilidade do elogio efetivo), manifesta no violento choque existente cada vez que o enaltecimento das virtudes heroicas desta figura desemboca nas modalidades degradadas em que essas pretensas qualidades se realizam no plano da realidade. Todo o texto queirosiano explora recursivamente este mecanismo de ridicularização do comandante da Guarda Municipal: no total do artigo, são mais de uma dezena os arranques encomiásticos no processo de caracterização desta figura – que é sempre deposta, afinal, numa posição indigna, totalmente incompatível com o registo precedente. Não é difícil encontrar n’As Farpas outros casos semelhantes a este, em que o elogio irónico tem uma resolução paradoxal resultante de os factos contrariarem o sentido do juízo exposto: veja-se, por exemplo, a forma como o aplauso da elevação e da sofisticação da linguagem dos deputados que se encontra num artigo do número de agosto de 1871 é sistematicamente desmentido pela vulgaridade das respetivas falas365 (o artigo seguinte, de Ramalho, retoma, explora e refina este 365 «E depois que doçura de expressões! Não vimos ainda há pouco o sr. Ávila designado no meio de uma questão financeira com estas benévolas qualificações – camaleão, sapo, elefante?! Que autoridade no dizer! que dignidade no pensar!» (F: 142). 273 procedimento), ou como o prolixo encómio do navio Índia esbarra invariavelmente no facto incontornável de este meter cinco polegadas de água por dia (F: 329). Estes casos são interessantes não apenas porque neles se explora o princípio da antítese como técnica humorística, mas também porque essa técnica é aí usada recursivamente (no último caso referido, a sequência «mete apenas cinco polegadas de água por dia» adquire praticamente o estatuto de refrão com que fecha cada uma das secções do texto). Eça compreende bem o efeito erosivo deste procedimento, o desgaste a que ele submete a entidade visada, que vai sendo reiteradamente exposta ao confronto entre a projeção ideal do que ela devia ser e a manifestação real do que ela efetivamente é – um aspeto a que já fiz referência no ponto anterior. De uma forma geral, o efeito de contraste aprofunda a perceção do desvio ou da degradação sofridos pela parcela da realidade em causa. Por isso, o foco do artigo sobre o navio Índia não é a sua falha de construção – é o fosso aberto entre o aparatoso panegírico construído na abertura de cada parágrafo e o seu humilhante desfecho. Kant, recorde-se, associa o humor a uma expectativa defraudada: ele ocorreria, segundo o filósofo alemão, quando se dá a «súbita transformação em nada de uma tensa expectativa» (1998: 238). Como observa Lippit, não é sensato interpretar literalmente aquele «nada», uma vez que a mera suspensão da expectativa, sem que fosse proposto qualquer tipo de resolução para o enunciado que a gera, suspenderia também na maior parte dos casos a produção de um efeito humorístico (1991: 15-17). Contudo, nos casos de que venho falando podemos dizer que estamos, de certa maneira, perante o esvaziamento de uma expectativa: o humor queirosiano é muitas vezes um humor de deceção. Referi-me acima à exploração do contraste entre uma projeção ideal e uma manifestação efetiva de determinada realidade. Esta antítese genérica está na origem de inúmeros momentos humorísticos nos artigos de Eça. A relevância que este dispositivo adquire n’As Farpas prende-se com o facto de ele constituir uma matriz especialmente adequada à expressão da vocação crítica do projeto. Ele permite figurar o fosso que separa o estado decadente da realidade portuguesa daquilo que seria o seu estado ideal, e por esta via é um instrumento eficaz ao serviço do programa de denúncia das debilidades, dos defeitos e das deformações que minam todo o corpo institucional e social do país. Bergson sustenta justamente que a mais generalizada oposição do cómico «é certamente a do real ao ideal, do que é ao que devia ser» (1993: 91), uma ideia que reencontramos num artigo de Castelo Branco Chaves intitulado «O humorismo de Eça e o sarcasmo camiliano»: o humor é aqui 274 visto como um fenómeno «resultante do contraste entre a forma perfeita que se idealizou e a forma transitória realizada» (1932: 109). Uma das mais importantes funções do humor n’As Farpas é, de facto, sublinhar a oposição entre o que devia ser e o que é. O que devia ser assume um papel de referência, em função da qual se mede o desvio da sua manifestação efetiva: é, portanto, uma medida da sua degradação. Quando Eça opõe a vocação intelectual da capital francesa à vocação pasteleira de Lisboa («Lisboa é uma cidade gulosa, como Paris é uma cidade revolucionária. Paris cria a ideia e Lisboa o pastel» – F: 415), o que essa regra nos oferece é a perceção imediata de um contraste que se propõe como medida da mediocridade nacional. Nesse ponto específico do texto, havia já dois parágrafos que Eça vinha falando dos malefícios do açúcar na saúde física e moral, e depois dele dedica ainda mais um parágrafo a esta questão: o diagnóstico e a crítica do problema podiam cingir-se a esta abordagem estrita. Mas, como refere Ramalho, Eça prefere as grandes violências que se tiram dos grandes contrastes: a antítese queirosiana típica não nos diz apenas onde estamos; diz-nos também o quão longe nos encontramos do sítio onde devíamos estar. Uma questão deve, entretanto, ser colocada neste ponto. «Pastel» e «ideia», à semelhança de «gulosa» e «revolucionária» (ou, na edição de Uma Campanha Alegre, «doceira» e «intelectual»), são termos inegavelmente propostos como antitéticos no contexto em que ocorrem, mas não se trata de unidades lexicais alinhadas no mesmo eixo semântico. Se, como refere Lausberg, o fundamento lexical da antítese é a antonímia (cf. Lausberg, 1982: 229; «antithesis are tipically constructed from contraries such as friend and ennemy, near and far, good and evil, good and hate» – Fahnestock, 1999: 48), a verdade é que os polos daquelas antíteses de que resultam efeitos humorísticos tendem a ser preenchidos por termos entre os quais não existe uma relação antonímica pura. Esse efeito humorístico decorre precisamente do emparelhamento contrastivo de termos que não se evocariam mutuamente noutro contexto. Tentarei nos próximos parágrafos, entre outros aspetos, compreender também por que razão reconhecemos como antíteses elementos pertencentes a núcleos semânticos distintos, bem como determinar em que princípios radica a vis comica das antíteses em causa. Consideremos em primeiro lugar um importante núcleo de antíteses de ressonância humorística correspondente a uma oposição genérica a que já me referi várias vezes: aquela que põe frente a frente, de um lado, a manifestação baixa de determinado fenómeno e, do 275 outro, uma referência superior desse mesmo fenómeno a partir da qual é possível obter a perceção da degradação ocorrida. Esquematicamente, a antítese que subjaz a todos estes casos é, portanto, aquela que opõe uma referência a uma ocorrência. O papel da referência consiste invariavelmente em fornecer uma medida da corrupção instalada na ocorrência. Assim, embora «pastel» e «ideia» não sejam termos suscetíveis de preencher os polos de uma antítese lexical, cada um desses termos aponta para realizações humanas enquadráveis em antinomias mais genéricas, como aquelas que opõem o abstrato ao concreto, o espiritual ao material ou o intelectual ao que é da ordem do apetite – antinomias essas que, no quadro conceptual predominante, são tendencialmente organizadas em hierarquias que valorizam os primeiros termos e desconsideram os segundos. Deste modo, a «cidade que cria a ideia» apresenta-se como antítese da «cidade que cria o pastel» na medida em que aquilo que cada uma delas produz se situa em pontos afastados na escala valorativa das realizações humanas. Por outro lado, embora este tipo de antítese encontre a sua sustentação na forma como arrumamos o mundo em planos diferentes e dispomos hierarquicamente esses planos (como referi: o espírito acima da matéria, o intelecto acima do apetite, etc.), o efeito humorístico advém quase sempre do cruzamento desses planos na construção da antinomia. Opor a ideia ao pastel configura uma interseção de planos inusitada; é um salto conceptual, uma descontinuidade que desafia a lógica, que parece desarrumar o mundo – e que no entanto nele inscreve uma proposta de sentido. Que se possa construir um sentido desarrumando o mundo – eis uma modalidade perturbadora do humor366. Vejamos alguns casos que ilustram este modelo de antítese de efeito humorístico assente na oposição entre referência e ocorrência: Não podendo [o discurso da coroa] falar como uma página de história, conversa como um habitante do Chiado. (F: 95) Em Lisboa lia-se isto – e esperava-se o príncipe Humberto, se não como um príncipe, ao menos – como um consumidor! (F: 180) Todo o país tem uma campanha – nós temos a Índia! Todos têm uma expedição – nós temos o Bonga! Todos têm um poeta – nós temos o sr. Vidal! (F: 280) Os jornais republicanos como não encontram nada a exaltar nas ideias políticas de Adolfo – querem ao menos glorificar-lhe os cozinhados do jantar: já que não podem dizer: que organização ele dá à França! gritam: que jantares ele dá à gente! (F: 374) 366 Ricardo Araújo Pereira refere-se a esse alcance perturbador do exercício humorístico, nomeadamente pelo que este pode revelar do desconcerto do mundo: «A ideia de que o mundo, submetido à prova radical de ser virado do avesso, continua a fazer sentido, pode ser tranquilizadora; se fizer mais sentido do que a forma original, isso pode ser inquietante: significa que o mundo já estava às avessas antes de ser virado do avesso» (2016: 64). 276 Os srs. proprietários não supuseram que Sua Majestade fosse um espírito, uma curiosidade, uma observação – supunham só que era um estômago: ele vinha, dobravam os negócios, e desdobravam a toalha. (F: 470) […] podeis arriscar-vos a que o dia 9 de julho, não vos ficasse gravado no espírito pelas lembranças da liberdade – mas pelas nódoas da casaca. E seria terrível que o comentário desse dia não fosse a glória – fosse a benzina! (F: 476) Como se vê, todos estes passos – e não se trata de modo nenhum de uma recolha exaustiva – encaixam numa matriz recorrente: um modelo superior de determinada qualidade ou realização é enunciado enquanto referência exemplar, mas acompanhado de uma adverbialização (implícita no terceiro exemplo) que lhe nega a possibilidade de se concretizar; o que se concretiza de facto é uma modalidade extremamente corrompida das virtudes contidas no modelo inicialmente proposto. Entre a referência e a ocorrência, estabelecem-se relações antinómicas de diversa índole (abstrato/concreto, espiritual/material, excecional/comum, sofisticado/rudimentar, etc.) que sustentam uma antítese de natureza hierárquica, isto é, uma antítese valorativa, que opõe um polo superior a um polo inferior. Há n’As Farpas artigos em que este mecanismo satírico é explorado de forma especialmente insistente. No texto que Eça dedica à diplomacia portuguesa, por exemplo, leem-se passagens consideravelmente extensas nas quais o desenho da precariedade das condições em que o corpo diplomático português desempenha as suas missões adquire o relevo expressivo resultante dos sucessivos confrontos entre as preocupações medíocres dos diplomatas e aquelas que deviam constar da sua agenda: Onde um embaixador português, confessemo-lo, mais se demora, – não é diante das instituições estrangeiras com respeito – é diante das lojas de mercearia com inveja! E se eles não podem alcançar bons tratados para o país – é porque andam ocupados em arranjar mais roast-beef para o estômago. […] Que o país […] dê aos seus embaixadores menos títulos e mais beefs: embora lhes diminua as atribuições, aumente-lhes ao menos a hortaliça. Eles pedem ao seu país uma coisa bem simples: não é um palácio para viver, nem um landau para passear, não são fardas nem títulos! É carne! É carne! Que o país, no número do pessoal diplomático, – diminua nos adidos, e aumente nos bois! (F: 230-31) Passos como este proporcionam uma perceção nítida do poder corrosivo de que o dispositivo em causa se reveste, nomeadamente quando a amplitude textual envolvida permite que se produza um efeito de saturação crítica assente na recursividade. Tornam também clara uma constatação para a qual já apontavam os exemplos mais curtos anteriormente citados: as antíteses propostas (neste caso, «instituições estrangeiras» /«lojas de mercearia», «tratados /«roast-beef», «títulos» /«beefs», «atribuições» /«hortaliça», etc.) são 277 frequentemente reforçadas através de expedientes como os paralelismos sintáticos367, ou a acumulação de elementos adjacentes aos termos nucleares da oposição que surgem a desempenhar o papel de articuladores antitéticos («menos» vs. «mais», «diminua» vs. «aumente», «não é» vs. «é», etc.). Esse efeito corrosivo a que me refiro será seguramente uma das razões que levam Eça a concluir o artigo em questão com um parágrafo que é quase uma retratação (F: 231). Estamos, com efeito, perante um recurso suscetível de municiar textos investidos de um propósito mais hostil, o que não é claramente o caso do artigo sobre os diplomatas portugueses. Mas é o caso de um artigo muito severo que Eça escreve a propósito das condições infra-humanas a que são submetidos os presos portugueses condenados ao degredo, publicado no número de junho/julho de 1872. E aí reaparece este registo antitético, uma vez mais vertido numa modalidade recursiva: Quem decretou esta infâmia? Se foi o regulamento das cadeias – reforme-se essa disposição como se lava uma nódoa. Esse regulamento não é inepto – é sujo. Não obriga só a reagir a consciência, obriga a pôr o lenço no nariz. Não precisa crítica – precisa benzina. […] Quem consente que um homem leve para um degredo – uma camisa – pode ser um jurisconsulto que se respeite, mas é um corpo que se evita. Tal autoridade não deve ser repreendida, deve ser lavada. Para ser reconhecida não precisa a toga – basta-lhe o cheiro. Não lhe façamos crítica, atiremos-lhe bacias de água. Que o sr. ministro da justiça, lhes faça pagar os seus ordenados em sabão. E enquanto às suas cabeças, não pediremos à lei que as inspire – mas sim que as cate. (F: 498) Não se trata neste caso de assinalar o contraste entre uma referência ideal e uma ocorrência corrompida: trata-se de, perante uma autoridade jurídica desumana e uma produção legislativa indigna e cruel, propor um paradigma crítico alinhado com o perfil baixo das entidades visadas. O lugar da referência neste excerto é, deste modo, quase sempre preenchido também por termos negativamente marcados – a oposição desenha-se assim entre aquilo que seria uma disposição crítica respeitadora da dignidade de que goza o universo jurídico («reforme-se esta disposição», «reagir a consciência», «repreendida», «façamos crítica», etc.) e a adoção de uma atitude abertamente hostil, que despromove o tópico superior da justiça ao âmbito inferior da higiene («como se lava uma nódoa», «pôr o lenço no nariz», «lavada», «atiremos-lhe bacias de água», etc.). 367 Sobre a importância dos paralelismos no reforço das oposições humorísticas, ver Gabin, 1987: 40. 278 (2006: 456) Uma questão já anteriormente aflorada mas que não foi ainda abordada com suficiente atenção diz respeito à relação que inegavelmente existe entre o efeito humorístico associado às antíteses até aqui tratadas e a circunstância de essas antíteses serem construídas com base na interseção de planos distintos – ou seja, é o facto de não estarmos perante antíteses puras, antíteses construídas com base num eixo semântico estável, que lhes confere essa ressonância humorística. Creio que bastará a análise de um caso para que este aspeto se torne claro. Considerarei um exemplo colhido no último texto queirosiano a figurar n’As Farpas, publicado no número de setembro/outubro de 1872. O ponto de partida deste artigo é a discussão que se instalara nos jornais da época em torno de um caso ocorrido na esfera militar: certo soldado assassinara um oficial do seu regimento; uma das fações que se enfrentavam na imprensa advogava, em nome da preservação da disciplina militar, a condenação à morte do homicida; a outra defendia que o soldado fosse poupado. No seu artigo, Eça empenha-se em desmontar a argumentação daqueles que defendem a condenação, e fá-lo através da articulação de uma série de expedientes contra-argumentativos que tem na sua génese uma operação de dissociação do conceito de disciplina militar. Dissociar um conceito é, em primeira instância, uma forma de evitar incorrer numa incompatibilidade. A dissociação, como explicam Perelman e Olbrechts-Tyteca no Tratado, implica a reestruturação de uma noção: redefinindo-se a forma como esta é concebida, nomeadamente operando sobre o elenco de traços considerados essenciais para o seu reconhecimento, torna-se possível retificar o mapa dos casos em que essa noção se aplica e superar deste modo os constrangimentos decorrentes de uma incompatibilidade. Perelman e Olbrechts-Tyteca consideram que na base de toda a dissociação está o par aparência/realidade: Este par estabelece uma hierarquia: num conceito xis, as manifestações não conformes ao termo II serão qualificadas como ilusórias e erróneas. O termo II é, assim, uma construção que «fornece um critério, uma norma que permite distinguir o que é válido do que não é, entre os aspetos do termo I» (Perelman, 1993: 140). Ora Eça, no seu texto, reconhece a validade do conceito de disciplina militar («Entendamo-nos com a disciplina. Ela aparência ou, em geral, termo I realidade termo II. 279 tem em nós dois respeitadores imutáveis» – F: 558), mas pretende rebater aqueles que se baseiam nesse conceito para exigir a condenação do soldado Barnabé. Isto conduzi-lo-ia a uma incompatibilidade, que é evitada precisamente pelo recurso à dissociação. Eça opera, então, uma distinção entre aquilo que considera ser a disciplina militar «legítima» e «verdadeira» – cuja aferição se mede pelo histórico da sua atuação, necessariamente coerente com os princípios que a sustentam – e uma disciplina desvirtuada pela permissividade com que vão sendo tolerados todos os desmandos, todos os crimes e todas as corrupções da instituição militar: Mas o que é necessário é que a disciplina militar, que vem pedir essa vida para garantia da sua conservação, seja verdadeiramente e legitimamente a disciplina militar: isto é – a disciplina perfeita, sem nódoa, virgem de deserções e de revoltas, sem defeções e sem traições, tendo a religião da lei até à superstição, a obediência do dever até à minuciosidade, rigorosa, exemplar, intacta, rígida e prussiana. […] Mas se é uma disciplina exautorada e desmoralizada, desfigurada e poluída por todas as revoltas e todas as desobediências, – que nos vem pedir, para se desafrontar, a execução de um homem – encolhem-se-lhe os ombros. (F: 558-59) Como forma de representar a fratura deste conceito, Eça opta a dado ponto por uma dupla personificação antitética – duas manifestações da disciplina, uma legítima e outra espúria, surgem então carregadas de pormenores, de traços, de qualidades, visando garantir a presença persistente e contrastante de duas imagens separadas no espírito do leitor: Esta aparição da Disciplina, que nunca ninguém vira, é tão singular que o movimento instintivo é olhar para ela. E que desilusão! Vindo pedir sangue – podia supor-se que ela vinha forte, musculosa, asseada, correta, intacta, pudica e grave. Qual! Vem trôpega, caturra, esfarrapada, ensebada, esmoucada, babando-se e pedindo sangue para se reconfortar, como um mendigo escavacado pede um caldo. Um copo de sangue para a disciplina! E todo o mundo se admira que ela não prefira meio de Lavradio! (F: 558) No primeiro dos dois passos citados, a dissociação do conceito de disciplina militar assenta igualmente no confronto de duas sequências antitéticas. Neste caso, os dois polos da antítese partilham, de uma forma geral, o mesmo eixo semântico: «intacta» / «desfigurada», «sem nódoa» / «poluída», «rigorosa» / «exautorada», etc. Como é notório, desta contraposição antitética não resulta qualquer efeito cómico. No segundo passo transcrito, as correspondências antitéticas nucleares, embora ainda relativamente estáveis em termos semânticos, começam a desligar-se ao nível do registo, dada a disjunção entre a gravidade do primeiro termo e a coloquialidade do segundo: «forte» / «trôpega», «intacta» / «esmoucada», «asseada» / «ensebada», «grave» / «babando-se». E isto é suficiente para abrir na antítese um 280 flanco cómico – que não existiria se, no contexto em que esses termos ocorrem, «forte» ou «intacta» se opusessem, por exemplo, a «fraca» ou «quebrada»: a antítese manter-se-ia, mas o efeito caricatural seria neutralizado. Entretanto, toda a construção da imagem da disciplina ideal e legítima que primeiro desfila neste segundo passo tem como ponto de partida o sangue reclamado («Vindo pedir sangue»), que aqui adquire uma dimensão simbólica e sacrificial; já no retrato da disciplina histórica e corrompida, o sangue não serve para a redenção espiritual: ele é pedido para a subsistência do corpo e é desqualificado por símiles que acentuam a sua degradação («um caldo», «meio de Lavradio»). É neste elemento que se concentra o principal foco de humor de todo o passo, porque é nele que o desvio entre a referência inicial e o termo que preenche a sua ocorrência degradada é mais acentuado. Algo semelhante, aliás, ocorre também no primeiro artigo d’As Farpas, verificando-se o mesmo efeito cómico: «Uma plebe demagoga e ignara fala em beber o sangue da nobreza, mas ficaria monarquicamente satisfeita se a nobreza, em vez de oferecer a veia braquial, mandasse abrir Cartaxo» (F: 21). Bergson chamaria justamente a atenção para os efeitos cómicos resultantes de se operar este salto entre o «sentido físico» de uma palavra e o seu «sentido moral» (1993: 84). Isto é, o humor não está associado às antíteses puras, mas àquelas que promovem um cruzamento de planos: o eixo que liga os termos em contraste sofre nesses casos uma torção, gerando-se a correspondência de duas realidades desconformes; de um modo geral, o efeito humorístico tende a ser proporcional ao desvio operado. Assim, uma vez que está em causa a proposta de relacionar elementos pertencentes a séries distintas, este mecanismo de construção do humor vincula-se às teorias da incongruência; no entanto, visto que o desvio desse eixo aponta invariavelmente numa direção que é lesiva da reputação de certa entidade, esse mecanismo é também tributário das teorias que relacionam o humor com a hostilidade. O desenho do mundo (sobretudo o desenho do país) que o humor d’As Farpas nos oferece é, como se vê, fortemente marcado por um princípio de distorção assente numa densa rede de contrastes. O humor, a despeito do espírito ligeiro que se lhe associa, é na verdade um expediente fundamental para a composição do quadro da decadência portuguesa que Eça e Ramalho apresentam aos seus leitores. Mais do que um estado, a decadência é um processo, uma trajetória. A antítese cómica característica d’As Farpas, ao contrapor, como procurei demonstrar, uma referência a uma ocorrência, permite-nos avaliar a amplitude da 281 queda – e, porque é de uma queda que se trata, a referência precede sempre, na sintagmática do texto, a ocorrência. O leitor depara-se, por isso, invariavelmente com um desenho descendente – um percurso de deceção. Este percurso de deceção reconhece-se também naqueles casos em que o conflito aberto, o fosso rasgado entre os termos colocados sob a tensão da antítese, dá lugar a sequências de construção menos marcada, dir-se-ia de pendor menos acentuado, ou de queda menos anunciada – mas que traçam ainda assim o mesmo movimento descendente, inscrito na curva final: Um dia o Centro promotor das classes laboriosas sentiu o ímpeto todo moderno e nervoso de sair de uma obscuridade antiga e de uma modéstia tradicional. Apeteceu as palpitações do perigo, a popularidade do telegrama, a prosa descritiva do sr. Melício, correspondente. (F:174) – Pois bem, meus senhores, sim, arroteemos, mas então, aproveitemos este grande impulso nacional, esta energia das forças vivas! E de passagem – conquistemos o Santo Sepulcro, e mandemos varrer o largo do Loreto! (F: 314) Declaro que renego e me arrependo do facto culpado e terrível de ter, em companhia criminosa, esquecido todos os deveres e sob a influência do espírito mau – tocado o Barba Azul no meu clarinete! (F: 342) Em qualquer dos passos transcritos, está em causa o desfecho ridículo, a pequenez tornada mais pequena por emergir como corolário de algo que, exibindo a sua grandeza, parecia anunciar algo grandioso. Dada a relação contrastiva entre o desfecho e a introdução, encontramo-nos ainda claramente no domínio da antítese; no entanto, há n’As Farpas situações em que o princípio antitético se desloca domínio da oposição semântica (no caso da antítese cómica, como vimos, esta oposição resulta da interseção de distintos planos de categorização do real) para a própria estrutura formal do enunciado. No seu Dictionnaire de Poétique et de Rhétorique, Henri Morier refere-se a um género particular de antítese que consiste numa «[o]pposition de masse entre l’ampleur de l’exposé et la sécheresse de la conclusion» (1981: 115). Este tipo de antítese preserva, n’As Farpas, uma estreita articulação entre as suas características formais e a realidade conceptual que pretende exprimir: de um lado, um desequilíbrio notório entre a amplitude considerável do discurso consagrado à enunciação de uma questão e a concisão com que Eça remata essa abertura extensa; do outro, a desadequação entre a complexidade de um problema tal como ele é exposto e a singeleza – e consequente inadequação – da solução apresentada. O exemplo formalmente mais depurado deste tipo de antítese encontra-se na derradeira página que Eça escreveu para As Farpas, onde ela está contida numa única frase. Uma prótase hipertrofiada prolonga-se numa 282 sucessiva acumulação de aspetos que concorrem para estabelecer a natureza múltipla, complexa e espinhosa do problema em causa, ao passo que a apódose se resume a quatro palavras, contrastando com o texto precedente quer em termos de amplitude, quer pela natureza desadequada da proposta que apresenta: De modo que temos o exército sem espírito militar, sem instrução, sem manobras, sem hábitos de marcha e de acampamento, sem vigor físico, sem fé patriótica, os arsenais sem armas, a artilharia sem peças, os quartéis sem condições, as escriturações sem regularidade, os quadros sem gente, os estados maiores sem talento, os coronéis sem fidelidade, os soldados sem disciplina – e qual o remédio para isto tudo? – Matar o soldado Barnabé! (F: 559) Eça opõe a longa série de aspetos em que se manifesta o estado precário do exército à frase mínima «Matar o soldado Barnabé», explorando o contraste resultante da inconsequência lógica entre a natureza de cada um dos problemas apresentados e a solução proposta. Visto que todos os elementos da enumeração são marcados por um signo de falta, a enunciação do problema particular que está contido em cada um deles coincide nos termos essenciais com a enunciação da sua solução: se um exército não tem manobras, são necessárias manobras; se não tem artilharia, é necessária artilharia, etc. – e a morte do soldado Barnabé aparece assim no final como uma resposta absurda para um problema que foi descrito nas suas múltiplas vertentes, nenhuma delas apontando para o desfecho proposto. Nos últimos casos acima abordados, estamos perante mecanismos humorísticos que apresentam muitas afinidades com um processo que João Medina (2003) identifica e associa à produção de efeitos cómicos nos romances queirosianos: o anticlímax. Medina observa que, na ficção de Eça de Queirós, determinados momentos em que se verifica um acumular de tensões dramáticas culminam no repentino esvaziamento dessas tensões, quebradas pela emergência de um aspeto vulgar do quotidiano mais comezinho. Trata-se, nas suas palavras, de «fazer rebentar um balão cheio de gás retórico» (2003: 160) – isto é, de desconstruir uma tese, uma teoria, uma pose, uma mistificação, fazendo-as contrastar com a insofismável realidade que subitamente se impõe, em toda a sua crueza antirretórica. O processo que João Medina rastreia em diversos romances (A Capital!, Os Maias, A Relíquia, O Primo Basílio) é tecnicamente semelhante àquele que Eça usa n’As Farpas, numa escala menor, sempre que uma sequência enfática tem como termo final um elemento contrastante com essa ênfase 283 crescente – isto é, um elemento anómalo na série em causa; um elemento que burla uma expectativa construída e que se reveste, por isso, em regra de um efeito antipatético. 4.7. Interseções retóricas do humor queirosiano n’As Farpas Creio que os dois processos de construção do cómico acima expostos – por um lado a exploração de uma lógica do absurdo inscrita na realidade, e por outro o recurso à antítese como dispositivo de sinalização de um estado de decadência instalado nessa mesma realidade – captam a essência das manifestações do humor queirosiano n’As Farpas. São dois expedientes complementares concorrendo para um objetivo comum: atingir as convenções que sustentam o statu quo cultural, social, ideológico, político – e fazê-las cair do seu pedestal. Ao paradigma da lógica distorcida pertencem, à partida, os casos que se constroem a partir de mecanismos de articulação sintagmática. Alguns argumentos de matriz lógica, como a redução ao absurdo, fornecem um modelo de construção especialmente vocacionado para a extração de consequências absurdas a partir de uma proposição insuspeita (F: 48, 190, 237- 38, 242, 341, 349, etc.). A exploração de ligações de transitividade (Perelman & Olbrechts- Tyteca, 2006: 249-253; Perelman, 1993: 88-9) anómalas e excêntricas368, o desenho de relações de reciprocidade (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 242-249; Perelman, 1993: 86- 8) assentes em simetrias manifestamente desprovidas de sentido369, a comparação (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 265-272; Perelman, 1993: 92-5) desconcertante de elementos situados em pontos abissalmente distantes no eixo de determinada hierarquia370 ou o 368 «Porque enfim – se eu não posso ser cônsul por ter feito uma conferência – se essa conferência foi a condenação do romantismo, segue-se que eu não posso ser cônsul por ter condenado o romantismo!! Ora realmente, eu não sabia que para ser cônsul – era necessário ser romântico! Eu não vira entre as habilitações que o programa requeria esta: “Certidão do regedor de que o concorrente recita todas as noites, ao luar, o Noivado do Sepulcro, do chorado Soares de Passos”. Eu não sabia disto!» (F: 252). 369 «Que a câmara medite e se lembre – porque a sua inteligência é para muito – que se ela der o exemplo funesto de substituir as construções pelas feras – pode levar o habitante a substituir as feras pelas instituições. E no dia seguinte àquele em que a câmara para mandar abrir um chafariz, comprar, em substituição, um elefante – qualquer sujeito, em vez de dizer ao criado: / – Ó António, põe o selim no russo … / pode esquecer-se a ponto de gritar: / – ÓAntónio, aparelha a câmara» (F: 291). 370 «O caso foi muito falado nesse tempo; foi mais celebrado que a descoberta da Índia. Essa só teve Camões que naufragou; – a viagem da Estefânia teve o sr. O. Vasconcelos – que arribou! Tanto é semelhante o destino dos que cultivam o ideal!» (F: 119). 284 insistente confronto das entidades visadas com as suas próprias contradições, isto é, com a teia de incompatibidades (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 215-231; Perelman, 1993: 74- 9) em que se enredam as suas ações e as suas palavras371, constituem expedientes que ilustram bem o modo como a categoria perelmaniana dos argumentos quase lógicos fornece diversos esquemas a partir dos quais As Farpas vão configurando os aspetos risíveis de um mundo impregnado de distorções. Mas o domínio dos argumentos fundados sobre a estrutura do real é também um campo propício a este paradigma, uma vez que é o campo das relações de sucessão, isto é, dos raciocínios que procuram determinar as causas ou as consequências de um dado fenómeno. Normalmente apontado ao âmbito das consequências, como acima procurei expor, o diagnóstico da lógica distorcida instalada na realidade portuguesa não deixa, ainda assim, de identificar essa mesma distorção no plano das causas. Em termos de amplitude textual, os exemplos desta situação oscilam entre a observação quase lateral372 e o corpo praticamente total do artigo: é o caso patente no texto de abertura da edição de agosto de 1871, que analisa as razões invocadas pelos deputados para não aprovarem a reforma da Carta Constitucional, todas elas absolutamente desajustadas das exigências de um paradigma da justificação consistente com os princípios da lógica373. Ao paradigma da antítese desqualificante, por seu lado, pertencem os trânsitos paradigmáticos, as atrações e repulsões que ocorrem num eixo em cujos polos Eça coloca 371 «Assim, por exemplo, o ministério Fulano propõe em cortes, que – atentos os serviços da ostra, o governo seja autorizado a declarar que se considera para com a ostra como um verdadeiro pai! / Então os jornais Fulanistas exclamam: / “O Governo acaba de se declarar pai da ostra. É uma medida de grande alcance! É uma garantia para a ordem, é um penhor solene de zelo pelos serviços públicos. Quando um governo assim procede, pode-se dizer que ampara com mão segura o leme do Estado, e que caminha na senda do progresso!” / Mas no dia imediato, por qualquer coisa, o ministério Fulano cai. Sobe o ministério Sicrano, e logo em seguida propõe em cortes: – que de ora em diante, atentas grandes vantagens para a causa pública, o governo se declare para todos os efeitos em relação à ostra, mais que um pai, uma verdadeira mãe! / Dizem os mesmos jornais Fulanistas: “O ministério ominoso, que com mão tão incerta dirige o leme da coisa pública, declarou-se mãe da ostra. É mostrar um profundo desprezo pela ordem e pela economia! Quando um ministério assim pratica é que vai no caminho da anarquia, e nos leva direitos ao abismo”» (F: 23-4). 372 Por exemplo, no artigo do n.º 3 (julho de 1871) dedicado ao exército, quando Eça coloca a hipótese de usar este corpo subaproveitado para suprir as necessidades de manutenção da ordem pública em certas cidades: «Nada mais natural que aproveitar os vagares do regimento – para patrulhar a cidade. Não! o regimento deita- se às 9 horas, para não apanhar o ar da noite» (F: 109). 373 Conforme se depreende das declarações de alguns deputados, estes «se votaram contra a reforma da Carta – é porque entendem que a Carta deve ser reformada» (F: 131). Partindo desta proposição inicial ilógica, Eça passa em revista as razões invocadas por diversos deputados para sustentar a posição que lhe subjaz. Uma vez que qualquer justificação de uma posição ilógica é necessariamente ilógica, aquilo a que vamos assistindo a partir de determinado ponto é a um desdobramento da contradição inicial do artigo, sob a forma de diversas causais incongruentes: como o país precisa de diversas reformas, o país não precisa de reforma nenhuma; não é oportuno reformar a carta porque o país precisa de bons livros; o momento atual não é o mais indicado para que a carta seja reformada porque está muito calor, etc. 285 dois termos ou dois conceitos em confronto. Cabem aqui, para além dos exemplos de binarismo exclusivo («x não é y, é z») que dominam a generalidade dos exemplos abordados, também as sequências a que preside uma lógica de contaminação, a qual se resolve, em regra, no enfraquecimento da entidade que dá origem à série. Uma formulação como «A agitação do mundo tudo sacode» (F: 177) é inquestionavelmente legítima e contextualmente credível – quer esse contexto tenha como moldura abrangente um século tumultuoso como poucos no campo da ciência, da arte, da religião ou da política, quer esse enquadramento encolha até à medida de um país atravessado por sucessivas crises económicas, políticas e sociais, quer a moldura se reduza ainda à escala de uma publicação cujo primeiro artigo assinala desde logo os «temerosos pontos de interrogação» que por todo o lado se erguem em torno do cidadão atento ao seu tempo (F: 25). Mas, uma vez que a sequência ilustrativa desta proposição é «A agitação do mundo tudo sacode. Instituições! chapeleiras! privilégios! lavatórios! Tudo oscila!» (F: 177), então nem as instituições nem os privilégios sobrevivem ao efeito corruptor dos termos contíguos, e com isso reescreve-se em tom faceto aquilo que inicialmente parecia poder estar investido de seriedade374. Poder-se-ia, por conseguinte, depreender à partida que o paradigma da lógica distorcida se vincula mais fortemente ao plano argumentativo, ao passo que o paradigma da antítese desqualificante se enquadra sobretudo no âmbito da retórica. A verdade, no entanto, é que estes dois domínios se intercetam com frequência. Quando Eça produz um oxímoro como «em Portugal tudo faz sono – até a anarquia!» (F: 57)», os dois princípios em questão, o antitético e o absurdo, surgem harmonizados. O princípio da lógica distorcida que preside à vida nacional consegue operar também isso: a conciliação de elementos opostos. O oxímoro é, por isso, uma figura normalizada pelas distorções nacionais: mais do que uma figura de estilo, é uma figura do estilo nacional, investida de sentido dentro da lógica irracional que domina todos os quadrantes da realidade portuguesa. Num artigo do número de julho de 1871, a propósito do abandono a que Portugal vota as suas colónias, Eça denuncia o facto de as possessões portuguesas em África não serem mais do que o depósito dos cidadãos que a metrópole condena ao degredo por crimes cometidos, e que a sociedade local é por essa razão constituída por uma larga percentagem de criminosos. A distorção que esta prática introduz no tecido social de qualquer uma das colónias africanas permite conferir sentido a 374 O processo de erosão da dignidade simbólica da urna eleitoral (F: 63), contaminada pela desqualificação dos objetos que a representam e substituem (o caixote, a vasilha), ou o enfraquecimento contextual do estatuto dos redatores d’As Farpas, que num artigo dirigido ao Imperador do Brasil passam subitamente de «historiadores dos seus feitos» a «fornecedores de mais maçãs» (F: 384), enquadram-se também no mesmo paradigma. 286 uma sequência como a seguinte, que traduz a preocupação dos comerciantes de Angola ou de Moçambique perante um eventual atraso na chegada dos deportados: «– Isto vai mal! Não há caixeiros de confiança! Os ladrões desta vez tardam!» (F: 116). Quando o oxímoro é expressão de uma realidade na qual as antíteses são neutralizadas, isso significa que o absurdo e a irracionalidade tomaram definitivamente conta dessa realidade. Vergílio Ferreira observa no seu estudo sobre o humor queirosiano que os processos do cómico na obra de Eça são muito diversos (Ferreira, 1943: 42; cf. tb. Ferreira, 1988: 329), e As Farpas, sendo um projeto programaticamente vinculado ao registo humorístico, traduzem de forma privilegiada essa variedade. Não cabe no âmbito deste trabalho proceder à cartografia exaustiva dos recursos queirosianos neste domínio. É inevitável que a proposta hermenêutica de dois paradigmas que compreendam na sua mecânica, específica ou combinada, as principais manifestações do humor queirosiano deixe de fora alguns casos particulares. No entanto, mais do que uma chave para desmontar todas as engrenagens do humor d’As Farpas, está em causa nesta proposta uma tentativa de fixar os principais vetores da funcionalidade retórica desse humor. O humor, como já várias vezes referi, não é n’As Farpas apenas um divertimento – é um dispositivo através do qual se capta da realidade um desenho risonho, mas igualmente inquietante, e esse desenho, sob a variedade de motivos abrangidos, é assinalavelmente consistente. A imagem que vemos formar-se caso após caso, pilhéria após pilhéria, é a de uma realidade crivada de manifestações de corrupção e decadência, irracionalidade e absurdo. Na órbita dos dois processos genéricos acima assinalados, outros mais específicos concorrem para a configuração dessa imagem. Poderíamos falar, por exemplo, da literalização, uma reescrita do sentido das coisas que as coloca também sob o signo do absurdo375; poderíamos falar da personificação376 (personificar uma instituição, como 375 Por exemplo, no artigo sobre o Centro Promotor das Classes Laboriosas (n.º 5; setembro de 1871), Eça desconsidera um gesto da direção desta associação, que, em protesto contra a tentativa de ingerência do Estado nas suas atividades, decide retirar da sede o retrato do Ministro do Reino, António Rodrigues Sampaio. Ao rasurar a dimensão simbólica da atitude do Centro – isto é, ao literalizar um gesto simbólico –, Eça transforma um ato investido de sentido numa sequência ilógica: «A vossa justiça indigna-se – despregando pregos! Isto leva-nos a acreditar que o vosso carácter se afirma – jogando o pião! Criançolas! pequerruchos! grandes homens do centro! Diabretes! Traquinas! Ah! a vossa maneira de protestar é cómoda para os homens – mas terrível para a mobília!» (F: 177). A literalização, como se vê, apropria-se de um conceito simbólico revestido de dignidade e intencionalidade e, arrancando-lhe a roupagem emblemática, devolve-nos apenas o gesto material, inútil e desprovido de sentido: ela opera, por conseguinte, o esvaziamento da entidade sobre a qual incide – ou, pelo menos, o seu apoucamento. 287 literalizar um conceito, é reduzi-lo a uma escala que o desvirtua); poderíamos igualmente deter-nos na materialização do «brio patriótico» (F: 186), que é preciso sacudir do pó e da caliça num dado momento de crise nacional, ou da «Hidra da anarquia» (F: 355), o «bicho» a quem As Farpas dirigem uma carta publicada no número de janeiro de 1872. Literalizar um gesto, materializar um conceito ou personificar uma instituição são manobras de esvaziamento, de banalização e descredibilização daquilo que é objeto dessa operação. Regra geral, Eça prefere explorar nódulos absurdos instalados na realidade e projetá-los numa escala ampliada, de forma a tornar visível o grau de distorção envolvido no facto inicial, mas mobiliza, naturalmente, também outros recursos, que acabam por concorrer para o desenho de uma realidade fixada nas suas distorções internas, nas suas poses ridículas, na sua pequenez essencial. Em última instância, poder-se-ia afirmar, como faz Vergílio Ferreira, que o humor queirosiano presente n’As Farpas se constrói, de facto, globalmente a partir de uma série de efeitos de contraste. Quase sempre esse contraste compreende num dos seus polos uma face da decadência do Portugal da Regeneração, a figuração de um Portugal medíocre e pomposo, do qual Eça pretende tornar claro o desvio, mais do que em relação a um passado glorioso ou a uma referência de desenvolvimento importada do estrangeiro, sobretudo à lógica, ao bom senso, a uma ideia de justiça. 4.7.1. Humor, retórica: ambiguidades Em 1884, a Revue Universelle Internationale publica a tradução francesa de O Mandarim, não propriamente por iniciativa de Eça, mas de Oliveira Martins. Para esta edição, Eça escreve uma carta-prefácio que, a despeito de não ter integrado qualquer edição da obra publicada em vida do escritor (virá a ser incluída apenas na 5.ª edição, de 1907), constitui um importante documento crítico. Aí Eça recupera as grandes dicotomias que informam o seu 376 Eça personifica tudo, desde valores, como a disciplina militar (F: 558-59), até embarcações – muitas embarcações (F: 117-19, 186, 329, 490-91). Mas personifica sobretudo instituições: o parlamento (F: 21, 22, 48, 56…), a polícia (F: 23), a literatura (F: 25, 26), os partidos (F: 44-5), o exército (F: 23), os jornais (F: 22, 90, 316-20), o poder local (F: 343), as colónias (F: 186), etc. 288 entendimento do que é o realismo enquanto movimento de negação e refutação do romantismo – no seu texto sucedem-se, por isso, as antíteses que opõem «sonho» a «realidade», «invenção» a «observação», «bela frase» a «noção exata», «emoções excessivas» a «ideias justas», «fausto plástico da frase» a «forma sóbria», etc. Segundo Eça, o problema do realismo (chamemos-lhe assim) não decorre apenas da sua extrema exigência no que diz respeito aos processos metodológicos e formais que lhe estão associados, por oposição ao modo ameno como o romantismo lida com essas questões; o realismo é, para além disso, uma proposta que conflitua com o temperamento característico dos povos meridionais. Assim, Eça recupera nas páginas deste texto uma ideia que já expusera n’As Farpas, onde, recorde-se, escreve que o público português, acima de qualquer outra coisa, «ama o bel-esprit: o que lhe agrada é a oratória e a frase. Moda peninsular» (F: 41). Na carta-prefácio a O Mandarim, referir-se-á aos portugueses em temos afins: «une belle phrase nous plaira toujours mieux qu ’une notion exacte»; «toujours nous considérerons la fantaisie et l’éloquence comme les deux signes, et les seuls vrais, de l’homme supérieur»; «ce qui nous charme, ce sont des émotions excessives traduites avec un grand faste plastique de langage» (197). Do outro lado da barricada conceptual que o texto define situam-se a realidade, a análise, a experimentação, a certeza objetiva, a verdade. Nada disto é propriamente novo – mesmo tendo em conta que a obra prefaciada é aí vista como uma válvula de escape das tensões inerentes aos postulados do realismo e do naturalismo: Eça fala da «incómoda submissão à verdade», da «tortura da análise» e da «impertinente tirania da realidade» (199) de que o seu espírito se permitira descansar um momento para escrever uma obra de fantasia, mas às quais teria de regressar, resignado, depois desse parêntese. Há, no entanto, no desenho de divisão das águas literárias que este texto propõe, um pormenor que me parece especialmente interessante. Escreve Eça, ao estabelecer quais os domínios pertencentes à literatura analítica, positiva e experimental, separando-os dos domínios próprios da literatura fantasiosa, emocional e retórica: Des esprits ainsi formés doivent ressentir nécessairement de l’éloignement pour tout ce qui est réalité, analyse, expérimentation, certitude objective. Ce qui les attire, c’est la fantaisie, sous toutes ses formes, depuis la chanson jusqu’à la caricature; aussi, en art, nous avons surtout produit des lyriques et des satiristes. Ou nous restons les yeux levés vers les étoiles, laissant monter vaguement le murmure de nos cœurs; ou, si nous laissons tomber un regard sur le monde environnant, c’est pour en rire avec amertume. Nous sommes des hommes d’émotion, pas de raisonnement. (Man: 197- 98) 289 Estas linhas permitem-nos voltar a colocar – porque elas próprias o fazem, e de forma reiterada – a questão do estatuto do humor no quadro dos procedimentos do realismo e do naturalismo. Se a caricatura é essencialmente fantasia, se o modo satírico é associado ao lírico, se o riso é assumido como um fenómeno da esfera da emoção e não do âmbito do raciocínio, em que medida são As Farpas um projeto realista? A carta-perfil de Ramalho, é certo, postula essa filiação sem margem para dúvidas; por outro lado, não deixa de considerar o humor uma alternativa à argumentação – e convém que não nos esqueçamos também da oposição entre humor e razão que n’O Distrito de Évora se estabelece. O aspeto em que parece existir acordo quando consideramos estas três referências (O Distrito, a carta-perfil de Ramalho e o prefácio a O Mandarim) diz respeito ao facto de em todas elas haver um reconhecimento explícito de que o registo humorístico é especialmente eficaz junto de um público alargado – o que em si mesmo também não contribui para situar o humor no quadrante do realismo e do naturalismo, uma vez que o discurso que estes movimentos produzem sobre as suas próprias criações tende antes a enfatizar a resistência que estas invariavelmente provocam junto do público. Afirmar que o humor é uma construção intrinsecamente retórica não passará hoje de uma constatação da ordem da evidência. Mas o humor é já objeto de abordagens bastante circunstanciadas em várias retóricas do Iluminismo, como a de George Campbell, cujas reflexões sobre esta matéria são referidas no ponto 4.5. É pouco provável que Eça rejeitasse de forma taxativa essa filiação – ao passo que rejeitaria seguramente a ideia de que o âmbito conceptual da retórica se pudesse vir a instalar no domínio do próprio discurso científico (cf. Gross, 1996), ou, em última instância, que esse conceito pudesse recobrir toda e qualquer produção discursiva, como decorre da definição que dele propõem, por exemplo, Sonja Foss, Karen Foss e Robert Trapp: «the uniquely human ability to use symbols to communicate with one another» (apud Júnior, 2004: 23). Nietzsche, um filósofo rigorosamente contemporâneo de Eça, tem uma visão penetrante da natureza irredutivelmente retórica da linguagem. Num texto do início da década de 70, Nietzsche defende que «[n]ão existe de maneira nenhuma a “naturalidade” não-retórica da linguagem» e que «a linguagem ela mesma é o resultado de artes puramente retóricas» (1999: 44-5). Deste modo, o realismo assentaria num pressuposto falacioso: «A chamada arte objetiva é a mais das vezes uma arte desleal». A retórica, essa, seria «mais leal, porque reconhece que visa enganar» (1999: 97). Jorge de Sena referir-se-ia mais tarde 290 precisamente à ineficácia das grandes máquinas realistas para apreender a realidade (1966: 12), até porque o funcionamento dessas máquinas assenta sobre um princípio (retórico) de distorção: «qualquer desejo de realismo é necessariamente (…) uma distorção intencional da realidade», uma vez que está sempre em causa a «seleção que da realidade fazemos para representá-la» e o «instrumental técnico da comunicação» (1981: 89). Se porventura fosse colocado perante semelhantes objeções, pelo menos no auge do período de mais intenso proselitismo naturalista, Eça responderia seguramente que esta corrente não seleciona a realidade (a sua ambição é representá-la inteira), e que o seu instrumental técnico assenta sobretudo numa metodologia científica, secundada por uma linguagem que garante que os resultados obtidos a partir dessa metodologia não são objeto de distorções retóricas – aquela «langue exacte, sèche, comme celle du code civil» (Man: 199), a que se refere no prefácio a O Mandarim. Aquilo que Eça entende por retórica é substancialmente diferente. Retórica é, para Eça, antes de mais, a série de lugares-comuns capazes de fazer avançar um discurso vazio de conteúdo, é a artificialidade da expressão que distorce a verdadeira natureza da matéria abordada, é a palavra empolada, enfática, declamatória, apontada às emoções, que instaura a prevalência do sentimento sobre a reflexão – é, no fundo, o revestimento equívoco com que a linguagem recobre a realidade, interpondo a sua espessura deformante entre o sujeito e o mundo. O seu conceito de retórica está, por isso, em primeira instância alinhado com os postulados do realismo e do naturalismo – que assentam antes de mais na convicção de que existe uma linguagem referencial, apta a dizer o mundo; a retórica instala-se sob a forma de desvio em relação a essa função primordial. A matriz científica do naturalismo, os seus desígnios ideológicos, bem como uma acentuada vocação pedagógica, ou pelo menos instrutiva, exigem precisamente essa linguagem capaz de dizer o mundo, de o comunicar e de o explicar sem distorções. Mas não me parece plausível que Eça não tivesse plena consciência da natureza fortemente ambígua de algumas das técnicas de que se serve para armar o seu discurso de ilustração e persuasão do leitor d’As Farpas: um dos polos desse estatuto ambíguo permite filiar sem grandes reservas tais recursos no âmbito dos expedientes daquilo que o próprio classificaria como uma retórica equívoca. Basta a esse respeito recordar as duras palavras que Eça dedica n’As Farpas ao «sermão obsceno», por meio das quais censura determinados movimentos expositivos que ele próprio utiliza abundantemente nos textos da mesma 291 publicação. Ou, então, as considerações que tece, no último dos «Bilhetes de Paris», acerca da correlação entre a proximidade temporal e espacial de um objeto e o envolvimento afetivo que relativamente a ele se pode gerar num sujeito – considerações essas suscetíveis de iluminar toda a intencionalidade com que as páginas d’As Farpas procuram promover esse mesmo envolvimento por parte dos seus leitores. Creio, no entanto, que o mais orgânico foco de eclosão de uma certa ambiguidade que, no fundo, As Farpas manifestam em relação à retórica se encontra precisamente na esfera do humor. Há essencialmente dois argumentos que As Farpas invocam para justificar o recurso ao humor enquanto instrumento legítimo do realismo. O primeiro consiste na alegação de que o registo humorístico d’As Farpas se limita a transcrever a realidade portuguesa: o humor não distorce a representação dos aspetos da vida nacional sobre os quais incide; esses aspetos encontram-se eles próprios tomados por um fenómeno de deformação que os torna por si só risíveis. O segundo argumento é uma espécie de retificação do anterior: o humor opera, sim, através de uma distorção, mas esta não é mais do que um prolongamento da deformação já inscrita na realidade. O que a distorção humorística d’As Farpas faz é figurar a realidade em causa num ponto correspondente a um estádio futuro do processo de degradação que a atingiu, uma vez que o fenómeno de deformação aí detetado tem uma natureza degenerativa. O que legitima este último procedimento é o facto de ele tornar evidente não só a deturpação do sistema mas também o processo dinâmico de corrupção nele instalado e a ameaça que este representa. Uma das convicções fundadoras d’As Farpas é que os seus leitores têm uma capacidade limitada de compreender a realidade que os rodeia, dado que que esta, uma vez instalado o processo de degradação que a atingiu, se foi também recobrindo de um complexo sistema de artificialidades, de fórmulas, de retóricas equívocas, que representam um obstáculo à sua perscrutação. Assim, a distorção que o humor d’As Farpas imprime nas instâncias sobre as quais incide o seu foco constitui a operação necessária para que esse revestimento equívoco se quebre e se torne visível toda a degradação existente sob as formas consagradas. Neste sentido, o humor, sendo embora uma distorção, seria uma distorção útil, um dispositivo ao serviço de uma missão de esclarecimento e consciencialização dos leitores, e estaria por isso justificado o seu lugar central na estratégia comunicacional d’As Farpas. Mas Eça sabe que o registo humorístico não traduz a exigência crítica, analítica, experimental, 292 científica, e também expressiva, do realismo e do naturalismo. As reservas que exprime em relação ao humor n’O Distrito de Évora parecem ser objeto de uma revisão decisiva, poucos anos depois, ao conceber As Farpas, juntamente com Ramalho; no entanto, a carta-prefácio a O Mandarim parece apontar noutro sentido. A sátira e o riso são vias sedutoras e eficazes, beneficiam de um acolhimento benévolo – mas são neste texto notoriamente colocadas à margem do conjunto de operações que sustentam o projeto naturalista: o estudo, a análise, a crítica, a experimentação, tudo subordinado a uma «áspera e severa pesquisa da verdade». O facto de o humor ser aqui encostado ao domínio da emoção, do envolvimento afetivo, abre pelo menos a possibilidade de uma revisão retrospetiva do seu estatuto num projeto como As Farpas, revisão que o aproximaria, nesse caso, do estatuto de uma retórica útil. O posicionamento doutrinário de Eça (e, naturalmente, do eixo formado por realismo e naturalismo) em relação à retórica tem as suas raízes mais remotas mergulhadas na crítica platónica. Na prática, contudo, Eça por vezes parece aproximar-se das teses aristotélicas sobre a sua utilidade. Segundo o filósofo estagirita, a retórica legitima-se, em primeiro lugar, pela justiça da causa que serve (Retórica: 1355a) – e só um critério semelhante pode estar na base de uma mudança de opinião sobre o estatuto do humor como aquela que ocorre entre O Distrito de Évora e As Farpas. Em segundo lugar, Aristóteles observa que certos auditórios não podem ser convencidos através da ciência, e que nestes casos é preciso recorrer à retórica (ibidem). Não é muito diferente o que escreve Eça a respeito do humor na carta-perfil de Ramalho: a argumentação é eficaz junto das elites, mas usada junto da maior parte da população seria inútil e inconsequente – e é a essa população maioritária que, afinal, se destina o humor. A condição de certo modo panfletária d’As Farpas é, à partida, pouco articulável com uma depuração retórica que cumpra inteiramente os desígnios doutrinários do realismo. Quando, no número inaugural, anuncia para breve a abertura das Conferências do Casino, Eça afirma que estas são «a revolução sob a sua forma científica» (F: 40); no número seguinte, ao comentar o silêncio imposto pelo Estado aos conferencistas, manifesta o seu desejo de ver essa revolução «preparada na região das ideias e da ciência» (F: 79). Como se sabe, o programa das Conferências assume a intenção de promover «a transformação social, moral e política dos povos» (apud Reis, 1990: 91), e Antero refere-se à necessidade de «produzir uma agitação intelectual» na sociedade capaz de acordar a «massa adormecida do público» (apud Salgado Júnior, 1930: 132), necessidade essa a que as Conferências 293 procuravam responder. As Farpas podem não ser a revolução preparada na região das ideias e da ciência mas são seguramente um instrumento de agitação, senão intelectual pelo menos cultural, suscetível de acordar essa massa adormecida. É assim que Eça as concebe: como «panfleto revolucionário», ou como «folhetim da Revolução» (Cor, I: 48), escreve na carta a Emídio Garcia em que lhe apresenta a nova publicação. Uma classificação como esta confere ao projeto de Eça e Ramalho um estatuto também ele de certa forma ambíguo: ou de expressão menor de um alto desígnio, ou de veículo desse desígnio suscetível de o comunicar junto de um estrato alargado da população. A balança penderá seguramente para a segunda hipótese – mas convém não esquecer a forma como As Farpas depreciam nas suas páginas o registo panfletário e a sua «indignação dramática» (F: 17), bem como, de resto, o próprio folhetim enquanto lugar emblemático de uma imprensa inútil377. O que As Farpas se propõem fazer passa também, por isso, por recriar formas eventualmente desgastadas mas eficazes, insuflando-lhes um novo espírito e pondo-as ao serviço de um valor superior, que as investe de legitimidade. É neste quadro que me parece que deve ser compreendido o lugar ambíguo que a retórica ocupa nas farpas queirosianas: tematicamente muito castigada, ela emerge, contudo, de múltiplas formas, em diversos graus e com diferentes alcances à superfície dos textos – até porque dificilmente se poderá conceber um panfleto ou um folhetim sem alguma retórica. 377 Cf., e. g., o «folhetim monótono continuado da véspera» (F: 322) a que Eça se refere no artigo de abertura do número de janeiro de 1872. 5. Considerações finais 297 Uma leitura um pouco mais epidérmica das farpas queirosianas poderá porventura levar o leitor que a faça a considerar que o repúdio aí manifestado pela retórica se traduz, de facto, na prevalência de um modo de comunicação não-retórico. Quando utilizo o termo «não-retórico» não estou, naturalmente, a referir-me a uma noção de retórica centrada numa teoria das figuras e no respetivo alcance literário, como a do Grupo μ, uma vez que o perfil estilístico das farpas escritas por Eça de Queirós tem, nesta perspetiva, uma marca retórica bastante notória. Também não me refiro ao conceito de retórica proposto por Chaïm Perelman, dado que nele se diluem as fronteiras entre os campos da retórica e da argumentação – e essas são duas águas bem separadas no mapa conceptual queirosiano. Retórica, para Eça, é distorção da realidade, é manipulação emocional, é suspensão da racionalidade – e os artigos publicados n’As Farpas por um lado condenam de forma implacável esse registo, por outro procuram ostentar um perfil comunicacional que seja a demonstração prática dessa condenação: tratando-se de textos com uma forte densidade argumentativa, estes reclamam-se reiteradamente tributários de uma matriz de racionalidade lógica. Como refiro na introdução a este trabalho, o facto de esta vertente parecer assentar numa rede de procedimentos ilustrativos daquilo que Perelman classifica como «argumentos quase lógicos» despertou-me, a dado momento, uma curiosidade particular. No entanto, qualquer tentativa que fizesse de fixar o foco da atenção nesse desenho específico dos textos queirosianos era invariavelmente perturbada pela sistemática intromissão de elementos de outra ordem naquele reduto, que assim via desalinhada a sua aparente estabilidade. As zonas em que uma tinta afetiva penetra no aparato geométrico que os textos de Eça gostam de exibir acabariam por ir progressivamente polarizando o meu interesse. Tornava-se claro que o ângulo mais fechado daquela perspetiva inicial resultaria numa compreensão empobrecida do perfil comunicacional do objeto em causa; era necessário tentar compreender justamente os processos através dos quais se instala uma retórica ambígua, uma retórica em última 298 instância tingida de pathos, nos interstícios de um programa de desretoricização do discurso como é aquele que As Farpas apresentam. Quando Eça escreve o artigo de abertura do primeiro número desta publicação, associa a respetiva génese ao momento em que o seu espírito e o de Ramalho se revelaram capazes de divisar o perfil definido dos factos que os rodeavam, superando assim a perceção daquela «penumbra confusa» na qual eles tendem a diluir-se. É essa aptidão adquirida que legitima a intervenção d’As Farpas na esfera mediática. Alcançar a compreensão efetiva de um objeto traduz-se, em última instância, nessa capacidade de o desenhar com precisão, e é nesse pressuposto que As Farpas se propõem comunicar a sua compreensão do mundo. De certo modo, as conclusões do meu trabalho apontam num sentido diverso: elas não geram uma imagem nítida do traçado das fronteiras entre argumentação e retórica, entre racionalidade e condicionamento afetivo, nas farpas queirosianas, precisamente porque essas fronteiras são, de facto, marcadas sobretudo pela imprecisão, pela fluidez, pelo cruzamento de fluxos procedentes de cada um destes paradigmas. O título da minha tese sugere que nas farpas queirosianas convivem duas pulsões de sentidos opostos: uma pulsão retórica e uma pulsão antirretórica. Quanto a esta última, não haveria à partida grandes dúvidas. A posição hipercrítica d’As Farpas em relação à retórica está alinhada na guerra que o realismo e o naturalismo movem contra essa instituição secular – ou, pelo menos, contra a contaminação da linguagem e do pensamento por elementos retóricos que, não traduzindo em si mesmos a essência absoluta da instituição, são as excrescências nefastas a que ficaram reduzidos o seu legado e a sua influência. Por isso As Farpas elegem como desígnio central do seu programa de intervenção o combate às retóricas que dominam o espaço público discursivo (as retóricas institucionais), denunciando, desmontando e corrigindo as suas práticas de mediação distorcida da realidade. Pelo seu sistemático repúdio da retórica, pela sua reiterada vinculação à lógica e ao bom senso, por se proporem alcançar um acolhimento favorável junto de um auditório constituído por indivíduos que têm como único traço em comum a razão, As Farpas parecem apresentar-se aos seus leitores como um projeto capaz de comunicar exclusivamente através de raciocínios fundados em factos e em verdades – e por isso tudo apontaria para que estivesse fora do âmbito do seu espectro de registos qualquer componente de natureza emocional. Na perspetiva de Eça, a emoção pertence justamente à órbita da retórica – o polo 299 que congrega tudo o que é do domínio do transporte afetivo, da comoção irracional, da adesão epidérmica. No entanto, há que reconhecê-lo, As Farpas pagam o seu tributo à lógica, ao raciocínio rigoroso, ao modo de expressão exato e objetivo, sobretudo fazendo a propaganda desses modelos de referência e denunciando os desvios que relativamente a eles se manifestam na forma como os principais agentes sociais do seu tempo agem, pensam e se exprimem. Mas, tratando-se este de um projeto programaticamente antirretórico, ele próprio não deixa de estar, afinal, tingido de retórica – mesmo que aproximemos o entendimento do que é retórico da noção que Eça teria deste conceito. Por um lado, as farpas queirosianas atacam a retórica, nomeadamente a retórica do romantismo (convém não esquecer que esta designação extravasa o âmbito literário, abrangendo um conjunto muito amplo de práticas discursivas que a sensibilidade romântica cultua, celebra e instaura como referências de gosto), e, reclamando a sua vinculação ao paradigma do rigor, da lógica, da verdade, Eça gosta de sublinhar, muitas vezes de forma ostensiva, a submissão dos seus próprios raciocínios, dos seus desenvolvimentos expositivos, dos seus movimentos argumentativos, a essa matriz. Poderíamos falar, a este respeito, de uma retórica da racionalidade, visto estarmos perante um discurso que, mais do que adotar um determinado critério, aposta na exibição das marcas superficiais dessa pseudoadesão. Por outro lado, esta proclamada inscrição d’As Farpas numa matriz de racionalidade lógica e de vinculação à verdade traduz- se na mobilização de recursos frequentemente ambíguos: aquilo que parece propor-se como exercício analítico de decomposição exaustiva de determinada questão pode revelar-se, afinal, um procedimento do âmbito da amplificatio; o compromisso de mostrar determinada realidade ao leitor situa-se entre a exigência de uma referencialidade ‘fotográfica’ suscetível de corresponder à convicção de que a via fundadora do conhecimento assenta na visão e a intenção de provocar um efeito de comoção, ou seja, uma resposta afetiva. O capítulo consagrado ao humor acabaria por se revelar de especial importância para consolidar a tese de que o discurso d’As Farpas, nomeadamente das farpas queirosianas, se instala por vezes numa zona de ambiguidade retórica que Eça e Ramalho dificilmente reconheceriam frequentar, pelo menos nas páginas desta publicação. As minhas impressões iniciais levavam-me a crer que o humor d’As Farpas funcionaria como uma espécie de arquifigura argumentativa, construída essencialmente a partir da distorção de dispositivos argumentativos válidos, e dispus-me, até certo ponto, a ceder ao impulso algo estruturalista 300 de mapear essa rede de vínculos e distorções. Mas o humor, como Eça reconhecerá em 1878, referindo-se aos textos d’As Farpas, é aí concebido como uma alternativa à argumentação – o que, por si só, abre a possibilidade de que a órbita do humor gravite, afinal, em torno do polo alternativo da retórica. Por outro lado, as considerações extremamente críticas que Eça tece n’O Distrito de Évora sobre o recurso ao registo humorístico por parte de certa imprensa, ou os termos em que ele se refere à caricatura e à sátira no prefácio à tradução francesa de O Mandarim, reforçam a viabilidade de uma revisão do estatuto do humor num projeto como As Farpas, estatuto esse aproximável, então, daquilo que poderá ser classificado como uma retórica útil, capaz de colocar o riso ao serviço de um objetivo de reconfiguração da ordem do mundo. Francis Jacques, num artigo sugestivamente intitulado «Logique ou rhétorique de l'argumentation?», observa a dado passo que, para Aristóteles, o que define a dialética não é tanto o rigor lógico do raciocínio mas as relações humanas («les rapports humains») e a exigência de comunicação que as envolve (1979: 50). No texto que encabeça as Cartas Inéditas de Fradique Mendes, o proto-heterónimo queirosiano não se afasta muito desta ideia: Ora, para que serve a palavra, Sturmm? Para tornar a ideia percetível e transmissível nas relações humanas – como o casaco serve para tornar o homem apresentável e viável através das ocupações sociais. Mas é a palavra empregada sempre em rigorosa concordância de valor com a ideia? Não, meu Sturmm. (CIFM: 44) Sturmm, recorde-se, é o alfaiate que se revelou incapaz de talhar a sobrecasaca cingida que Fradique lhe encomendara, tendo-lhe remetido, num embrulho de papel pardo, uma sobrecasaca genérica, a sobrecasaca que veste toda a gente. Fradique censura-lhe esta negligência, estabelecendo entre a indumentária e a elocutio uma analogia, de resto, clássica378. Nos parágrafos seguintes da sua carta, torna-se claro que os desvios àquela «rigorosa concordância» entre o valor da palavra e a ideia são, naturalmente, os lugares onde se inscreve a retórica: Quando a ideia é chata ou trivial, alteia-se, revestindo-a de palavras gordas e aparatosas – como todas as que se usam em política. 378 «Dialectica res nudas proponit: rhetorica vero addit elocutionem quasi vestitum», escreve Filipe Melanchthon nos seus Elementa Rhetorica (apud Ong, 2004: 356, n. 49). Ou seja: a dialética apresenta a matéria nua: a retórica veste-a através da elocutio. 301 Quando a ideia é grosseira ou bestial, embeleza-se e poetiza-se, recobrindo-a de palavras macias, afagantes, canoras – como todas as que se usam em amor. Por outro lado, escolhem-se palavras de uma retumbância especial para reforçar a veemência da ideia – como nos rasgos à Mirabeau – ou rebuscam-se as que pela estranheza plástica ajuntam uma sensação física à emoção intelectual – como nos versos de Baudelaire. Temos pois que a palavra opera sobre a ideia, ou disfarçando-a ou acentuando-a. Vai-me V. seguindo, perspicaz Sturmm? (CIFM: 44-5) Fradique parece inicialmente fazer aqui uma enumeração ilustrativa dos casos em que se verifica uma dissonância entre a palavra e a ideia, dado que entre elas, como começa por afirmar, nem sempre existe total correspondência. Mas o último parágrafo encerra alguma ambiguidade: ele resume o fenómeno diversamente ilustrado nos exemplos anteriores ou usa-os para produzir uma conclusão indutiva de alcance universal? O que neste passo me parece interessante, pese embora nos encontremos aqui num contexto a vários títulos distinto daquele que constitui o epicentro deste trabalho – outro enquadramento comunicacional, outras coordenadas ideológicas, outras premissas estéticas –, é o facto de a analogia fradiquiana poder albergar o postulado da natureza incontornavelmente retórica da palavra, que ou disfarça, ou acentua a ideia, sem aparente possibilidade de a reproduzir com exatidão. Fradique, em grande medida uma projeção autoral elevada a uma escala hiperbólica, parece assim imprimir nas suas palavras uma manifestação de ceticismo relativamente à viabilidade de uma comunicação não-retórica, nomeadamente em contexto social – o que corresponderia, na sua analogia, a um dorso desprovido de sobrecasaca, ou a uma sobrecasaca saída do atelier de dois famosos alfaiates de certo conto de Hans Christian Andersen. Bibliografia 305 Edições das farpas queirosianas utilizadas*379 QUEIRÓS, Eça de & ORTIGÃO, Ramalho 1871-1872 As Farpas. Crónica Mensal da Política[,] das Letras e dos Costumes, ano I, maio a dezembro; ano II, janeiro a setembro/outubro, Lisboa, Typographia Universal. 2004 As Farpas. Crónica Mensal da Política, das Letras e dos Costumes, coord. Maria Filomena Mónica, Cascais, Principia. QUEIRÓS, Eça de [1890]-1891 Uma Campanha Alegre, 2 vols., Lisboa, Companhia Nacional Editora. s/d Uma Campanha Alegre, Lisboa, Livros do Brasil. 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