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Abstract(s)
Este estudo consiste na problematização dos sistemas retórico-comunicacionais do amor e da libertinagem na obra do escritor francês Claude Prosper Jolyot de Crébillon (1707-1777). Este projecto pode, aliás, ser sintetizado numa expressão célebre que o autor coloca na pena de uma das suas principais personagens, lorde Chester: “moi, c’est le cœur que je développe”. As linhas orientadoras deste programa de investigação – retórica e comunicação – encontram-se também elas no centro do corpus escolhido, constituindo a sua “mise à nu”, o “programa” da obra de Crébillon. A conjugação destas orientações teóricas com este corpus procura salientar o interesse e, de certo modo, a actualidade da sua escrita, através da divulgação de um autor injustamente mal conhecido entre nós, vítima sobretudo de “más leituras” ao longo do século XIX. De facto, Crébillon tem sido recebido pelas sucessivas comunidades de leitores de modo diferenciado: apreciado por muitos dos seus contemporâneos (tendo mesmo suplantado o êxito de seu pai, o tragediógrafo rival de Voltaire, Prosper Jolyot de Crébillon), remetido, em seguida, para os lugares mais recônditos das estantes das bibliotecas (quer por falsos moralismos, quer pela censura do seu estilo “tortuoso”), a sua obra ficou, pois, esquecida praticamente até meados do século XX, altura em que um crescente número de investigadores a resgatou ao sono de décadas e a revivificou para nosso prazer.
Neste contexto, a hipótese aqui apresentada pretende evidenciar o interesse suscitado por um autor setecentista que, à semelhança doutros como Richardson e Marivaux, decide empreender uma “viagem filosófica” de exploração lúcida – mas nele predominantemente lúdica – das zonas mais recônditas dos mecanismos psicológicos do sentimento e do desejo, ao mesmo tempo que se aventura igualmente pela experimentação dos possíveis discursivos e narrativos. Através da desmontagem dos jogos retóricos da galanteria e da libertinagem da sociedade aristocrática da Regência e do reinado de Luís XV, realiza-se a demanda do verdadeiro amor, objecto raro contrariamente ao que as aparências pretendem fazer crer. Escrita do prazer e de prazer, uma vez que a sua temática geral gravita em torno da problemática dos jogos de sedução (amorosos, galantes e libertinos). No entanto, o seu maior interesse reside na concepção da libertinagem como um sistema romanesco, cuja técnica o autor manipula e diversifica com muita inteligência, de forma a expor as máscaras veladas e enigmáticas de Eros. Para isso, utiliza igualmente um estilo muito próprio, ao mesmo tempo elegante e sinuoso, com uma eficácia brilhante na análise dos sentimentos e da psicologia das personagens, ou melhor, na desconstrução dos códigos retóricos da paixão amorosa e da sedução galante e libertina. Deste modo, o nosso trabalho focaliza os sistemas retórico-comunicacionais do amor e da libertinagem, encarados sob o prisma do espírito do jogo. Jogo do desejo (amoroso, galante ou libertino) como força gravitacional que faz mover as personagens do universo crébilloniano; jogos de linguagem(ns) colocados ao serviço dessas estratégias de sedução; jogos ficcionais desenrolando-se a vários níveis, das personagens às instâncias enunciativas e à experimentação/problematização dos códigos narrativos tão ao gosto da ficção do século XVIII, envolvendo o jogo do desejo e o desejo do jogo que funciona como um pacto de prazer entre Autor Modelo e Leitor Modelo (U. Eco).
Neste sentido, a nossa tese apresenta dois momentos: numa primeira parte, delineia-se a perspectivação teórico-metodológica a partir dos conceitos-base contidos no título.
Em primeiro lugar, a hipótese lúdica. Partindo de alguns ensaios teorizadores da problemática do jogo (Huizinga, Caillois, Henriot, entre outros), pretende-se relevar os aspectos pertinentes para a abordagem do jogo do desejo nos moldes já enunciados. Considera-se, assim, o jogo como uma actividade que conjuga o acaso (o aleatório) com as regras (a necessidade, embora arbitrária) definidoras e estratégicas do código do jogo da sedução. Por outro lado, a problemática do jogo estende-se, em nosso entender, às relações entre Retórica, Argumentação e Comunicação, ou seja, o jogo linguístico e literário visto como império do discurso persuasivo. Para este aspecto serão consideradas as relações entre Poética e Retórica no século XVIII, bem como as recentes orientações teóricas nesta área (e na da comunicação), no âmbito dos Estudos Literários. Desde logo, a necessidade de uma abordagem do texto literário que tenha em conta os seus níveis múltiplos, onde se entretecem códigos diversos, enformadores de leituras plurais, variáveis no tempo e no espaço, de acordo com as modificações do gosto e dos cânones literários (o caso do “dilema do romance” no século XVIII). Estas leituras plurais sublinham a “abertura da obra” para uma “cooperação interpretativa” com o(s) leitor(es), mas ficam, porém, limitadas pela “intenção da obra”, isto é, de acordo com as propostas teóricas de Eco, a produção de um Leitor Modelo capaz de colocar hipóteses interpretativas que não contrariem a sua coerência global, tendo em conta igualmente o seu contexto de produção, ou seja, as condições de significação.
A segunda parte deste trabalho inicia-se com uma síntese dos paradigmas mais marcantes na constituição dos códigos do discurso amoroso na Literatura Francesa anterior a Crébillon – o amor como fogo e jogo. São consideradas as fontes antigas principais, isto é, Platão e Ovídio e a sua importância na constituição dos códigos literários do amor cortês, do neoplatonismo e petrarquismo, do hedonismo renascentista, da tensão estabelecida no Barroco entre sensualismo e idealismo, bem como da ambiguidade da retórica amorosa do preciosismo e o style du cœur em conjugação com a imensa desconfiança originária do pessimismo clássico, em relação à concepção desestruturante e aniquiladora do sujeito passional. Em seguida, surgem os jogos de sedução e a sedução do jogo amoroso nos diversos textos narrativos de Crébillon, onde se descobre uma concepção da libertinagem galante como conjunção entre os códigos precioso e clássico e a filosofia das Luzes, preconizadora do livre pensamento, vitorioso sobre todos os preconceitos morais e religiosos. Institui-se, assim, uma retórica da libertinagem, ao mesmo tempo código verbal e comportamental, isto é, o jogo do desejo caracterizador do microcosmo social da aristocracia parisiense da Regência de Filipe de Orleães e do reinado de Luís XV. O jogo da sedução, intrinsecamente retórico-comunicacional no contexto das relações mundanas e amorosas representadas no universo das obras de Crébillon, surge aqui também como sedução do jogo literário que problematiza os códigos retóricos, hermenêuticos e comunicacionais do sistema vigente, sobretudo no domínio do romance e sua contaminação por outros géneros (narrativo, como o conto, e dramático). Se, por um lado, o jogo libertino se funda numa ética de liberdade absoluta, de desconstrução irónica das convenções e dos preconceitos morais e afectivos, por outro, a poética crébilloniana, inserida num determinado enquadramento problematizador dos cânones literários, funda-se numa estética de distanciamento irónico, quer em relação às questões morais quer às convenções romanescas, retomadas mas parodiadas, provocando a sagacidade do Leitor Modelo.
Como vimos, o ponto de fuga da obra de Claude Crébillon situa-se no cruzamento dos jogos amorosos e do sistema romanesco. Por um lado, assistimos à desmontagem da retórica do discurso amoroso, galante e libertino. Diversos aspectos surgem-nos, então, como elementos organizadores desta obra: a reflexão sobre a problemática amorosa como comunicação (im)possível (procura-se um ideal de correspondência amorosa do par, mas ela revela-se quase utópica), uma reflexão sobre a tensão que opõe o sistema da paixão ao sistema da libertinagem, a forma como se associa a esta observação arguta uma brilhante exposição das máscaras retóricas galantes e libertinas, ou seja, como se revelam os paradoxos de um discurso depurado e idealista do amor, mas que serve como mera estratégia de sedução e de manipulação para a obtenção dos efeitos mais despudoradamente sensualistas, nos casos extremos. Por outro, a poética crébilloniana caracteriza-se pela incerteza, pela ambiguidade e pelo distanciamento irónico. Revelando uma mestria dos códigos da arte do discurso e da civilidade, todo o seu engenho se coloca ao serviço da experimentação dos possíveis narrativos e discursivos, levando a uma reflexão sobre as categorias do literário. A sintaxe aparentemente contorcida e tortuosa de “Girgiro l’entortillé” funciona, de forma magistral, quer na análise mais exaustiva dos meandros psicológicos e intencionais das personagens, quer na adequação a um jogo discursivo pautado por propósitos de sedução, procurando a cumplicidade do interlocutor (intradiegético e o próprio Leitor Modelo) ou o engano da vítima. Pelo que ficou dito, pode concluir-se que a poética crébilloniana revela o jogo do desejo nos seus aspectos retórico-comunicacionais, ao mesmo tempo que, através justamente desses processos literários, releva de uma concepção da leitura que poderíamos hoje classificar como desejo de cooperação e cumplicidade, de jogo entre Autor Modelo e Leitor Modelo. Esta poética irónica da indecidibilidade do sentido antecipa, de certo modo, uma concepção moderna do trabalho da escrita e dos problemas/prazeres provocados no e pelo acto de leitura-interpretação, verdadeiramente activo e gerador da pluralidade dos sentidos. A escrita do e de prazer determina, assim, uma leitura que é uma verdadeira leitura de prazer.
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Fundação Calouste Gulbenkian
Fundação para a Ciência e a Tecnologia
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